Autopoiese: o intrigante conceito filosófico por trás da definição de vida
Entenda a ideia do filósofo chileno Humberto Maturana que pautou os critérios da Nasa para especular sobre a biologia de outros planetas.
Imagine uma fábrica imensa, com setores desconexos. Há uma linha de moldagem de tijolos, outra que funde vigas, outra que corta azulejos. Fornalhas queimam carvão para gerar energia e liberam fumaça num labirinto de dutos e chaminés. Operários de cada seção se cruzam num ritmo frenético, tropeçam e se trombam. A movimentação parece aleatória, em princípio, mas após algum tempo torna-se perceptível que há alguma ordem ali – que todos colaboram para um objetivo, seja lá qual for.
Debaixo dos seus pés, os azulejos estufam e racham, mas são prontamente substituídos por peças novas. As paredes se desmancham, mas os pedreiros usam os tijolos recém-produzidos para reconstruí-las. Vigas recém-fundidas, ainda incandescentes, reforçam as estruturas frescas. É uma corrida contra o tempo: a fábrica como um todo parece convencida a se despedaçar, e seus operários lutam para mantê-la de pé.
Tudo que sai da linha de montagem é empregado nessa missão. Toda matéria-prima que adentra o prédio, em última instância, acaba na infraestrutura da própria fábrica. Não sobra nada para vender – pois nada é feito com este intuito. Não há carros, eletrodomésticos ou brinquedos que serão encaixotados e enviados às lojas. O objetivo agora está claro: a fábrica constrói a si mesma. Sua única função é não desabar.
Esta fábrica é o seu corpo. O nome da peculiar atividade econômica que se desenrola lá dentro é vida. Quando as máquinas param, o corpo se desfaz. Bactérias invadem o cadáver sem resistência do sistema imunológico. Os glóbulos vermelhos interrompem o fornecimento de oxigênio às células. A temperatura média não se mantém mais em estáveis 36,5 °C. Sódio e potássio não se diluem mais na medida certa.
Nas palavras do escritor Karl Ove Knausgård, “é um cenário desolador e estranho, como uma fábrica que trabalhadores tivessem sido obrigados a evacuar às pressas, os veículos parados a projetar a luz amarela dos faróis na escuridão da floresta”.
Enquanto as máquinas funcionam, porém, renovação é a regra. Se você tirasse uma foto da fábrica em um determinado dia, e a fotografasse novamente um mês depois, do mesmo ângulo, teria em mãos duas imagens idênticas. Cada tijolo estaria no mesmo lugar. Mas você teria consciência de quem não está vendo exatamente os mesmos tijolos – pois a fábrica está em constante reconstrução. Aqueles seriam tijolos novos, ocupando a mesma posição dos antigos. De maneira que a estrutura jamais perde sua identidade visual, não importa quantas vezes seja reconstruída.
Com seu corpo acontece a mesma coisa. Células da pele caem e são repostas mensalmente. As da parede do estômago se renovam em intervalos de dois a nove dias. Os neurônios do córtex cerebral – a área responsável pela memória, consciência e todo o resto que te torna humano – estão entre as únicas células do corpo que não são trocadas periodicamente (ainda que um punhado de estudos diga que não é bem assim). 40 mil células mortas caem no chão por minuto, graças ao mero fato de que você existe. Novas as substituem como se nada tivesse acontecido. E você continua igual.
Pouquíssimas células que estavam em seu corpo quando você nasceu ainda estão nele hoje; mesmo assim, você reconhece a si próprio nas fotos de infância. Você nota, em sua aparência, coisas mais antigas do que si próprio: talvez os olhos de sua mãe, as sobrancelhas de seu pai, o queixo de seu avô.
E, apesar dessa continuidade visível entre infância e vida adulta – apesar do fato de que você existe hoje e já existia anos atrás – seria possível substituir cada átomo do seu corpo por outros átomos sem afetar sua saúde de nenhuma forma. Se houvesse tecnologia para tal, poderíamos construir uma cópia exata de você usando carbono extraído de carvão de churrasco, água engarrafada, hidrogênio das nuvens de Júpiter. Não faria diferença alguma.
Há duas coisas em jogo, até aqui. De um lado, a parte que permanece: seu rosto, a sua identidade – tudo que está salvo como um arquivo de computador em suas moléculas de DNA. As coisas que te tornam o que você é. As coisas que são legadas aos seus filhos. Essas são uma parte da definição de vida: a hereditariedade.
A hereditariedade está sujeita a erros – e este talvez seja seu aspecto mais importante. Ocorrem mutações, essas mutações geram variações. Essas variações podem gerar indivíduos mais ou menos aptos a sobreviver em um certo habitat, e a sobrevivência dos mais aptos se chama seleção natural.
Portanto, sem hereditariedade, não há seleção natural. E sem seleção natural, não há vida. Em 2011, um estudo que analisou 123 definições dicionarizadas de vida atrás de palavras-chave. Depois, juntou o vocabulário mais recorrente em uma frase. Não deu outra: “vida é autorreprodução com variações.”
Se uma parte da definição de vida é a hereditariedade – isto é, o que fica – a outra parte é a que muda. A parte dinâmica. O seu corpo é um enorme tubo de ensaio, em que se desenrolam sem parar reações químicas de dois tipos: as que quebram matéria orgânica para produzir energia e as que usam energia para produzir matéria orgânica. As duas, juntas, são o metabolismo. Comer, beber, respirar, excretar.
Quando os processos que liberam e absorvem energia estão equilibrados, você entra em um estranho equilíbrio dinâmico, a homeostase. É um estado que só se mantém estável porque está em movimento. Como a fábrica do começo do texto, que fabrica a si mesma. Em 1972, o biólogo chileno Humberto Maturana propôs o conceito de autopoiesis (poiesis, em grego, significa “criação”, portanto, “criação de si mesmo”). Nas palavras de Maturana, seres vivos são máquinas que, “por meio de suas interações e transformações, regeneram continuamente a rede de processos que as produziram.”
Junte conceitos e palavras complicadas como hereditariedade, metabolismo, homeostase e autopoiesis – o que você leu até aqui, em suma – e dá para chegar à definição de vida adotada oficialmente pela Nasa desde 1992: “sistema químico autossustentável capaz de passar por seleção darwiniana”.
Para a Nasa, definir a vida é particularmente importante: se houver micróbios em alguma das luas de Júpiter ou Saturno – ou em qualquer outro canto do Universo –, eles podem ser os primeiros a encontrá-los. E, neste momento, talvez se descubra que vida não tem nada a ver com moléculas de carbono que usam água líquida como solvente. Talvez se descubra que exóticas moléculas de silício dissolvidas em nitrogênio líquido são igualmente capazes de viver.
Nas palavras de Steven Benner – um dos responsáveis por cunhar a definição –, “nós nos dedicamos a estudar a vida no Cosmos; a vida como a conhecemos assim como a vida extraterrestre que não conhecemos e esperamos encontrar. Mas o que, exatamente, estamos procurando?”
A experiência cotidiana nos diz que o mundo está dividido entre coisas vivas e inanimadas – que há um muro de Berlim intransponível entre estes dois estados; que a origem da vida foi o instante em que alguma coisa, seja lá qual for, pulou esse muro.
Não é bem assim. Na natureza, pular muros não é habitual. É muito mais comum que tudo se dê de forma lenta e gradual. Entre a vida e o mundo inanimado há uma porção de estados intermediários – uma escada que torna possível subir no muro aos poucos, de forma realista.
Podemos pensar em coisas que estão em degraus intermediários dessa escada. Por exemplo, o fogo. Ele é, em muitos aspectos, semelhante à vida. Corte seu suprimento de oxigênio e ele cessa. Ele deve ser alimentado, e apaga quando o combustível se esvai. Como um animal faminto, um incêndio florestal se satisfaz ao consumir outros seres vivos.
Nas palavras do biólogo Richard Dawkins, “Como faziam com os lobos, nossos ancestrais podiam capturar um filhote de fogo e domesticá-lo com um útil animal de estimação, alimentá-lo regularmente e limpar suas excreções de cinza”.
O fogo marca uma caixinha da definição de vida: reprodução. Mas não marca outra caixinha, a da hereditariedade. Ele não transmite informação genética a seus descendentes.
Um vírus sofre do problema oposto: ele contém informação genética, pois é feito de moléculas de RNA ou DNA, e essas moléculas são capazes de parasitar células e usar seu maquinário de produção de proteínas para seus próprios interesses. Por outro lado, um vírus é incapaz de se reproduzir por conta própria: quando não há um ser vivo por perto, ele é só uma tirinha inerte de material genético.
Pense em um vírus como o oposto do fogo: o fogo se reproduz por conta própria, mas são agentes externos, como o tipo e quantidade de combustível, que definem suas características (cor ou tamanho da chama). Já os vírus têm características hereditárias, transmitidas às suas cópias. Mas eles precisam de uma ajudinha externa para se reproduzir.
Todo ser vivo é feito da única coisa de que algo pode ser feito: conjuntinhos de átomos, ou moléculas. A água é composta de moléculas (H2O). A amônia é composta de moléculas (NH3). O colágeno, uma proteína, é uma molécula, ainda que mais longa que as outras duas duas (C65H102N18O21). As mesmas moléculas podem participar de um sistema vivo ou inanimado. O que interessa no sistema vivo é a maneira como uma molécula interage com outras moléculas, e não a molécula por si só.
Pegue, por exemplo, uma molécula de HCN, o cianeto de hidrogênio. Ele se forma aos montes na poeira interestelar. É tóxico para qualquer forma de vida que respira oxigênio. Foi usado extensivamente como arma química na 1ª Guerra Mundial. Mesmo assim, junte cinco moléculas de HCN e você consegue uma molécula de H5C5N5 – vulgo adenina, uma peça química central para moléculas com o DNA e o ATP (a fonte de energia nº 1 de suas células: está para você como uma bateria de lítio é para um celular).
Em outras palavras, sua hereditariedade e seu metabolismo dependem de um hardware cujas peças, encaixadas de outra forma, são um meio eficiente de te matar.
Explicar a origem da vida, portanto, consiste em explicar como uma molécula se tornou capaz de armazenar informação genética. Como uma molécula se tornou capaz de se reproduzir. Como uma molécula passou a reger outras moléculas em processos metabólicos. Como uma molécula criou uma membrana dentro da qual esses processos poderiam ocorrer isolados do meio externo (criando, assim, a noção de indivíduo, separado do ambiente).
Também consiste em explicar como moléculas presentes no planeta Terra na época de sua origem poderiam se juntar para gerar essa molécula; esse replicador primordial. Tudo isso, é claro, precisa ocorrer sem bruxaria, passo a passo, dentro das regras limitadas da natureza. É difícil reconstituir esse momento histórico único, mas a ciência tem dado passos importantes nessa direção. Mas isso é assunto para outro texto.