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Nimu Borum, a criança de mil anos atrás que escapou de incêndio em museu mineiro

Bibi Nhatarâmiak, a primeira bioarqueóloga indígena do país, investiga o sepultamento de uma pequena nativa que teve os ossos pintados de vermelho e colocados numa casca de árvore no Brasil pré-cabralino – e sobreviveu ao fogo no Museu de Historia Natural da UFMG em 2020.

Por Bela Lobato
Atualizado em 24 ago 2024, 10h13 - Publicado em 23 ago 2024, 19h00
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  • Estrutura funerária de criança indígena passa por tomografia no Hospital
     (TV UFMG/Reprodução)

    Em 2004, uma equipe de arqueólogos explorava uma gruta na região de Diamantina, em Minas Gerais. Eles já haviam encontrado outros vestígios humanos nas proximidades, mas não tinham certeza de que achariam algo ali, em um sítio que é conhecido como Lapa do Caboclo. Nessas situações, os pesquisadores começam escolhendo e demarcando uma área pequena aleatoriamente para começar a escavação.

    A equipe teve uma surpresa: no primeiro metro quadrado que demarcaram, a apenas 30 cm de profundidade, encontraram um objeto misterioso e claramente feito por humanos. Limpando e escavando com cuidado, constataram que era uma estrutura funerária de 70 cm feita de casca de árvore, couro e palha.

    Dentro, estavam cuidadosamente colocados ossos humanos pequenos, pintados de vermelho. Foi assim que encontraram Nimu Borum, como foi batizada essa criança que viveu em algum momento entre 650 e 1300 anos atrás, antes da chegada dos portugueses ao atual território brasileiro. 

    Logo em seguida, naquele mesmo sítio, seis outros sepultamentos de ossos pintados e guardados em cascas de árvores foram encontrados e levados para o Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG (MHNJB).

    Esse tipo de sepultamento é chamado de secundário, porque ocorre em duas partes. Primeiro, os corpos foram “descarnados”, ou seja, a sua carne foi retirada ou se decompôs. Depois, os ossos foram coletados e tratados. Nos achados da Lapa do Caboclo, outros pesquisadores sugerem que, dada a intensidade da cor vermelha, os ossos teriam sido imersos no pigmento, e não simplesmente pintados. Depois disso, foram posicionados no “estojo” feito do couro de um animal desconhecido, de palha e da casca de uma árvore, que é da espécie conhecida popularmente como pau santo ou rosa-do-cerrado (Kielmeyera speciosa).

    A criança Nimu passou mais de uma década sob um acrílico transparente, em exposição no MHNJB, enquanto os outros sepultamentos ficaram guardados na Reserva Técnica.

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    Estrutura funerária de criança indígena
    A escavação do sepultamento de Nimu Borum, em 2004. (TV UFMG/Reprodução)

     

    Em 2020, dois anos depois do incêndio que atingiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, o MHNJB também viu uma parte do seu patrimônio queimar. O incêndio foi causado pelo superaquecimento de um aparelho de ar-condicionado e atingiu principalmente as salas com itens de arqueologia e zoologia. “Era uma das melhores edificações do museu, com controle de temperatura e controle de umidade do ar. Ela atendia a todas as necessidades de manutenção e monitoramento do acervo”, ressalta Mariana Lacerda, que era diretora do museu à época, em entrevista para a UFMG.

    Muito do que estava na Reserva Técnica, inclusive os outros cinco sepultamentos, virou cinzas. Mas Nimu, na exposição, sobreviveu. 

    Nimu ainda não tinha esse nome na verdade, ela nunca tinha sido estudada detalhadamente até o início do mestrado da arqueóloga Bibi Nhatarâmiak Borum-Kren. Bibi é uma mulher indígena da etnia Borum-Kren, povo originário da região de Ouro Preto, próxima a Belo Horizonte. 

    Ela publicou recentemente sua dissertação, chamada “Nimu Borum: Nan Brukuku Tchone”. Escrito no idioma Borum, o título significa: a criança avermelhada que veio da árvore.

    Estrutura funerária de criança indígena
    Os ossos avermelhados de Nimu Borum. (TV UMFG/Reprodução)

     

    A bioarqueologia feita por uma mulher indígena

    A pesquisadora já conhecia Nimu muito antes do início da sua pesquisa. Quando era criança, Bibi convivia com uma das arqueólogas envolvidas na escavação de 2004, Lílian Panachuk, que é amiga de sua família. Desde pequena, se intrigava com a história que Lílian contava sobre aquela criança que havia sido encontrada. 

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    Bibi conta à Super que, aos sete anos, resolveu que também se tornaria arqueóloga, porque queria “trabalhar e conversar com os ossos”.

    O sonho virou realidade, e Bibi se dedica hoje à bioarqueologia, divisão que se dedica a investigar os restos humanos encontrados em escavações e, a partir deles, descobrir mais sobre a ancestralidade, a dieta, as doenças e os hábitos culturais daquelas pessoas. 

    Entretanto, sendo a primeira bioarqueóloga indígena do Brasil, Bibi propõe outras formas de pesquisar. “O princípio da bioarquelogia era contar as histórias de pessoas através dos ossos, mas, com o tempo, a bioarqueologia se tornou uma objetificação de pessoas, e é isso que eu tenho criticado”, ela explica.

    “Porque vão lá, tiram a gente de dentro da terra, colocam a gente dentro de caixa, esquecem a gente lá. E aí depois, passa muito tempo, acontece o que aconteceu no Museu Nacional, no Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG. A gente queima nesses lugares.”

    É por isso, aliás, que a pesquisadora não usa termos como “restos mortais” para falar dos achados, e sim, “pessoas-ossos”. “Nenhum parente indígena deixou de ser gente porque estava em ossos, sua história deve ser contada com respeito e cuidado”, ela explica em sua dissertação. 

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    A tomografia do sepultamento

    Para sua pesquisa, pela primeira vez o Hospital das Clínicas da UFMG realizou uma tomografia computadorizada de uma estrutura funerária. As imagens permitiram ver o que há no interior da casca da árvore, já que o sepultamento nunca foi completamente aberto.

    Estrutura funerária de criança indígena passa por tomografia no Hospital
    Bibi assistindo as primeiras imagens da tomografia computadorizada, no Hospital das Clínicas da UFMG. (TV UFMG/Reprodução)

     

    As imagens da tomografia foram transformadas em um modelo 3D do sepultamento, o que permitiu ver novos pedaços do quebra-cabeça da história de Nimu. Com as imagens detalhadas da arcada dentária, sua idade foi estimada em 10 anos – anteriormente, acreditava-se que ela tinha entre 3 e 5 anos. Também foi possível estudar a posição e o estado dos ossos da criança: eles não estavam distribuídos conforme suas posições originais no corpo. 

    O nome Nimu Borum

    Foi durante esse processo, quando uma grande equipe de médicos acompanhou a tomografia com curiosidade, que Nimu recebeu seu nome. Bibi conta que o médico responsável perguntou a ela qual era o nome da criança, e que se ela não tivesse nome, seria cadastrada sob um número. A criança ainda não tinha nome, mas Bibi achou que seria muito violento tratá-la como um objeto, um número. A história é contada detalhadamente em sua dissertação: 

    “Eu estava com o kuandik [um instrumento protetivo semelhante a um chocalho] na mão, cocar na cabeça, meus seres sagrados que são parte de mim, apertei o kuandik na mão e pedi baixinho para que os espíritos que estivessem ali presentes me ajudassem a acolher aquela criança ancestral com um nome.”

    “Eles sabiam tanto quanto eu como seria violento e doloroso se ela entrasse no sistema como um número; tantos anos dentro da antropologia física passamos sendo número, categorias e partes. Vivem se esquecendo que nós, bichos do mato, somos gente.”

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    Naquele momento, Bibi pegou o teclado do médico e digitou o nome que a criança acabava de ganhar. “A criança não era mais um material arqueológico para a arqueologia. Ela era agora Nimu Borum.”

    O nome representa o acolhimento de Nimu no povo de Bibi, os Borum. Ela pondera que é possível que os dois povos possam ter uma mesma origem, já que antepassados dos Borum viveram na região onde Nimu foi encontrada.

    A pesquisa continuará no doutorado de Bibi

    Em setembro, Bibi inicia o seu doutorado, em que vai continuar estudando a história de Nimu. Ela conta que só recebeu a liberação espiritual para abrir a casca de árvore recentemente, e que deve, ela mesma, fabricar todos os artefatos necessários para esse processo. 

    Ela ainda não tem certeza se a sua pesquisa de doutorado incluirá a datação específica dos ossos e o exame de DNA antigo, já que os dois processos exigem a retirada destrutiva de material. “Isso não é uma decisão particularmente minha, porque teria que destruir uma parte de Nimu. Ainda são coisas que eu estou discutindo com os parentes indígenas e com a minha orientadora para ver por onde a gente vai caminhar nesse quesito. É complexo.”

    A datação que existe hoje, de entre 650 e 1300 anos, foi feita a partir da casca do pau santo. Outras datações mostram que a região da Lapa do Caboclo, onde Nimu foi encontrada, abriga humanos há pelo menos 10,5 mil anos. 

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    Caso se faça exames nos ossos, as análises poderão revelar com mais precisão há quanto tempo Nimu viveu, e detalhes sobre sua ancestralidade, sua saúde, idade e até mesmo o sexo, já que não é certeza que ela tenha sido uma menina.

    Para Bibi, uma das partes mais importantes do seu trabalho é o diálogo constante com a sua e outras comunidades indígenas. Além do aconselhamento que recebe para a sua pesquisa, a arqueóloga se preocupa que o seu texto seja acessível e compreensível para todos. Ela conta que espera que sua pesquisa seja uma forma de “trazer a história de Nimu para dentro do movimento indígena como uma referência.”

     “Porque Nimu é uma uma antepassada muito poderosa, com muita encantaria. Ela é uma criança encantada, e é isso que eu quero continuar mantendo na minha tese, o respeito que eu tenho por ela, por tudo que ela me ensina, por tudo que eu aprendo com ela e com as outras pessoas que estão comigo nessa caminhada”, conta Bibi.

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