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O poder das fibras

Elas formam o esqueleto dos vegetais. Como alimento, não servem rigorosamente para nada. Mas previnem doenças graves e ajudam até a manter a linha. Trinta gramas por dia é tudo que se precisa.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h48 - Publicado em 30 jun 1990, 22h00

Marcelo Macca

Em 1984, enquanto fazia os preparativos para a travessia do Atlântico, o navegador Amyr Klink tinha uma preocupação muito particular: sua constipação intestinal crônica. Se o problema do intestino preso já lhe causava tanto desconforto em terra, que aborrecimento não seria tê-lo a bordo do diminuto barco no qual passaria três meses entre o céu e o mar? O êxito de tal aventura dependia, acima de tudo, de saúde e de boa disposição física, dia após dia. “A solução foi uma dieta equilibrada, rica igualmente em todos os tipos de alimentos, incluindo fibras”, conta a nutricionista Flora Spolidoro, atual secretária de Ação Social do governo federal, principal responsável pela alimentação de Klink tanto na travessia a remo do Atlântico como agora na invernagem polar na Antártida.

O que é bom para os retiros marítimos de Klink tem sido igualmente bom para a rotina de milhões de pessoas nos quatro cantos do mundo. Depois de praticamente eliminadas da dieta ocidental a partir da segunda metade do século, as fibras agora vêm sendo reconhecidas como santo remédio para muitos males de não pouca gravidade e ainda como agentes de prevenção para tantos outros. Aliás, foi justamente a virtual expulsão das fibras da mesa de refeições dos países industrializados, em conseqüência da produção em massa de alimentos refinados associada ao consumo crescente de carne vermelha, afirma um coro de pesquisadores, médicos e nutricionistas, a principal causa de disseminação de algumas das chamadas “doenças da civilização”, como a constipação intestinal, a diverticulose e a diverticulite, as hemorróidas, os problemas cardiovasculares e o câncer de cólon.

O interesse pelas fibras alimentares ressurgiu na década de 70, graças principalmente às pesquisas do médico britânico Dennis Burkitt. Ele passou vinte anos na África, trabalhando como cirurgião no interior de países como Uganda e o Quênia. Foi a observação dos hábitos alimentares dos africanos e do fato de não ocorrerem entre eles várias doenças do trato digestivo, muito comuns nos países ocidentais, que o levou a formular sua hipótese sobre o papel das fibras. De fato, a dieta dos africanos das zonas rurais é excepcionalmente rica em fibras comidas em cereais integrais, farelos, frutas, legumes e verduras — um cardápio muito diferente da alimentação típica do mundo desenvolvido, carregada de produtos refinados e gorduras. Assim pensou Burkitt, era muito provável que na África negra houvesse uma relação entre a ingestão de fibras e a ausência daquelas doenças. Realmente havia.

As primeiras observações de Burkitt levaram em consideração a quantidade e a consistência das fezes produzidas por africanos e europeus. Afinal, segundo sua hipótese, tais características dos excrementos eliminados diariamente por uma pessoa poderiam estar diretamente relacionadas à freqüência de doenças como a diverticulose e o câncer de cólon. Para testar essa teoria, o cirurgião teve naturalmente de se submeter a uma nada atraente pesquisa de campo. Nisto, por sinal, o dedicado Burkitt já tinha sido precedido há mais de 200 anos por um ilustre habitante das llhas Britânicas, que embora não fosse médico também se interessou pelo assunto — o escritor satírico irlandês Jonathan Swift (1667-1745), conhecido autor das Viagens de Gulliver.

Em 1733, Swift publicou anonimamente um livro chamado Human Ordure (Excremento humano). Nele, Swift faz uma detalhada classificação das fezes eliminadas por seus compatriotas da época. O escritor chegou a sugerir nomes em latim para os vários tipos de fezes, como merdae spherulatae, segundo ele a variedade mais nociva de dejetos: redondos e duros. Burkitt concorda. Observando o resultado da atividade intestinal de africanos e europeus, o pesquisador notou, em relação à quantidade, que um africano adulto produzia de 400 a 500 gramas de fezes por dia, enquanto um europeu eliminava somente um máximo de 120 gramas. Quanto à consistência, as fezes dos africanos se caracterizavam por serem moles, enquanto as dos europeus tendiam a ser mais rígidas.

Mas que isso teria a ver com as fibras alimentares? Simplesmente que a dieta carente de fibras dificulta os movimentos do intestino grosso e resulta em fezes mais duras. Hoje é convicção virtualmente unânime de nutricionistas e médicos que estaria aí a origem de todo um rol de males. Mas há fibras e fibras. Elas existem em tecidos e em carnes.

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Estas últimas são formadas por uma substância chamada colágeno e são digeridas. O que as distinguem das fibras alimentares? “Estas constituem o material que forma as paredes ou membranas celulares das plantas”, esclarece a nutricionista Maria Lúcia Ferrari Cavalcanti, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. “São a parte dos vegetais não digerida nem aproveitada de forma alguma pelo organismo humano.” Em outras palavras, as fibras formam o esqueleto das plantas. Sem elas, um talo de grama ou uma árvore não parariam em pé.

Apesar de serem identificadas pelo mesmo nome genérico, as fibras constituem uma mistura de três tipos de substâncias: a celulose, as pentoses e a lignina. As duas primeiras são carboidratos, isto é, açúcares: a celulose é um polissacarídio — açúcares com cadeias moleculares mais longas — formado por uma seqüência de moléculas de glicose; já as pentoses são um grupo de monossacarídios, que inclui ainda a pectina e as gomas, substâncias usadas em geléias e gelatinas. A lignina, enfim, é um polímero, composto formado por aglomerações de grande número de moléculas.

Toda essa mistura pode ser comparada às estruturas de ferro e concreto usadas na construção civil. A celulose corresponderia às barras de ferro verticais, as pentoses seriam as barras transversais, as pectinas e gomas representariam o cimento e a lignina seria o maciço revestimento externo. Essas substâncias podem ser solúveis e insolúveis. Solúveis são as que se dissolvem num meio aquoso, formando um gel ou uma massa viscosa. São as pectinas e as gomas, o cimento das células vegetais. As insolúveis, ao contrário têm a capacidade de absorver a água e aumentar o próprio volume, como esponjas. São a celulose, algumas pentoses e a lignina. “Essas duas propriedades das fibras é que as tornam alimentos indispensáveis para o homem”, indica a nutricionista Maria Lúcia. No sistema digestivo, uma parte delas vai absorver água e aumentar de volume enquanto a outra vai provocar a formação do gel. Não sendo digeridas nem absorvidas pelo organismo, sua presença faz aumentar a quantidade de resíduo alimentar no intestino, proporcionando massa para as fezes e estimulando a movimentação intestinal. Esse é o grande paradoxo das fibras: não alimentam nada mas são essenciais à saúde.

A capacidade de as fibras absorverem água faz também com que os excrementos fiquem mais macios, ajudando a reduzir o esforço na hora de ir ao banheiro. Ou seja, as fibras são laxantes naturais. “A propriedade laxativa de alimentos como o farelo de trigo, rico em fibras, é conhecido desde os tempos de Hipócrates”, lembra Maria Lúcia, referindo-se ao célebre médico grego que viveu entre os séculos IV e V a.C. “Mas o estímulo oferecido pelas fibras ao intestino também pode prevenir o aparecimento de problemas, como a diverticulose.” Esta consiste na formação de pequenas bolsas (divertículos) na parede do intestino grosso, devido ao endurecimento dos músculos intestinais e a pressões irregulares a que são submetidos. Intestino lento e fezes pequenas e duras são associadas à formação dos divertículos. Tais bolsas podem reter resíduos de fezes e assim desencadear um processo inflamatório, a diverticulite, a mesma que há cinco anos obrigou o presidente eleito Tancredo Neves a se internar no Hospital de Base de Brasília, na véspera da posse, iniciando o processo que o levaria à morte. Diverticulose e diverticulite são problemas praticamente desconhecidos entre as populações que consomem grandes quantidades de fibras. Nos países de estilo de vida ocidental, comumente atingem os mais idosos; previsivelmente, sua freqüência é bem menor entre os vegetarianos.

As evidências indicam que as fibras podem também prevenir e ajudar no tratamento de hemorróidas — varizes nas veias do anus, cuja origem parece relacionada à constipação intestinal e à eliminação de fezes muito duras. A cirurgiã Angelita Habr-Gama, especialista em aparelho digestivo do Hospital das Clínicas de São Paulo e professora da Faculdade de Medicina da USP, inclui as fibras alimentares no tratamento de seus pacientes portadores de hemorróidas e diverticulose. “Elas são de grande ajuda”, diagnostica.

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Pesquisas recentes mostram igualmente uma relação entre as fibras e a prevenção do câncer de cólon (parte do intestino grosso). Uma dieta rica em fibras cortaria em 40% o risco de se contrair esse câncer, cujas causas são desconhecidas. Acredita-se que a doença resulte do contato da parede intestinal com substâncias cancerígenas produzidas por bactérias existentes no cólon. O meio intestinal oferece condições de sobrevivência a uma variada flora bacteriana, que vive da fermentação dos resíduos alimentares e cuja presença faz bem ao organismo. As vezes, porém, a fermentação produz substâncias nocivas, que eventualmente podem provocar a mutação e o crescimento desenfreado de células. Se uma pessoa come fibras em quantidade suficiente, seu funcionamento intestinal fica mais rápido; logo, menos tempo aquelas substâncias permanecerão em contato com a parede intestinal, diminuindo assim os riscos do câncer — raro, não por acaso, entre os vegetarianos.

As fibras também podem ser utilizadas no controle da obesidade e em regimes alimentares. “Como elas não são digeridas pelo organismo, não fornecem calorias”, diz o endocrinologista paulista Alfredo Halpern. Uma gigantesca pesquisa na China sobre os hábitos alimentares de 6 500 pessoas, que acaba de ser divulgada, revela que os chineses consomem 20% mais calorias do que os americanos, porém estes são 25% mais gordos. Ocorre que os chineses ingerem apenas 1/3 da quantidade de gordura consumida pelos americanos — e o dobro da quantidade de fibras. Sua capacidade de reter a água e inchar também favorece as dietas, pois provoca a sensação de saciedade mesmo quando se come pouco.

Fibras e diabete também têm sido objeto de pesquisas. O diabete, doença muito comum nos países industrializados, se caracteriza por uma quantidade excessiva de glicose (açúcar) no sangue, por causa de uma deficiência do hormônio insulina. Um trabalho realizado já em 1948 por médicos franceses indicou que as fibras talvez pudessem ser usadas no tratamento de diabéticos. A hipótese é que a dissolução das pectinas e das gomas e a conseqüente formação do gel retardariam a digestão dos alimentos e sua absorção pelo organismo. O gel formaria uma barreira entre os alimentos e as enzimas digestivas ou entre as moléculas simples de glicose e as paredes do intestino, responsáveis pela absorção. A digestão e a absorção retardadas fariam com que a glicose entrasse aos poucos na circulação sangüínea, sem o risco de uma elevação brusca de seu nível.

As doenças cardiovasculares, de seu lado, são consideradas um dos principais males da civilização. Se é verdade que “um homem é tão velho quanto suas artérias”, como se diz, existem povos mais jovens do que outros. Entre os africanos, os japoneses e os mediterrâneos, por exemplo, a aterosclerose (endurecimento das artérias causado por depósitos gordurosos em seu interior) ocorre muito menos e mais tarde do que entre os americanos e os habitantes do norte da Europa. Do mesmo modo, os casos de infarto do miocárdio são menos freqüentes entre os primeiros. Mais uma vez as fibras? A questão alimenta discussões sem fim entre os especialistas, muitos dos quais se recusam a isolar uma única explicação. Mas algumas pesquisas cuidadosas indicam que a resposta é sim.

Um estudo realizado na Universidade de Leiden, na Holanda, em 1982, mostrou que o índice de mortalidade por doenças cardiovasculares é quatro vezes menor entre homens cuja dieta é rica em fibras. Outro trabalho, realizado em 1987 na Universidade da Califórnia, em San Diego, concluiu que o risco de infarto é significativamente menor entre as pessoas que consomem pelo menos 16 gramas de fibras diariamente. Além disso, 6 gramas a mais nessa dieta representa uma diminuição do fator de risco da ordem de 25%. As doenças cardiovasculares, como se sabe, estão associadas a altas taxas de colesterol no sangue. Imagina-se que neste caso as fibras teriam um papel semelhante ao que parecem desempenhar em relação ao diabete. O gel formado pelas fibras solúveis dificultaria a absorção do colesterol no intestino. Outros pesquisadores afirmam que as fibras insolúveis também fariam a sua parte, de modo a eliminar rapidamente o colesterol nas fezes.

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Por mais polêmica que possa ser qualquer coisa que se diga sobre o que faz e o que não faz baixar o nível de colesterol no organismo, a importância das fibras na alimentação está definitivamente consagrada. O essencial, de todo modo, é manter uma dieta rica em todos os tipos de alimentos “Não adianta incluir as fibras em detrimento de outras coisas” adverte a secretária de Ação Social Flora Spolidoro. “O segredo da boa saúde é uma dieta equilibrada.” O Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos recomenda a ingestão diária de 30 gramas de fibras. O brasileiro das grandes cidades, ao que tudo indica, ainda precisa chegar lá. Segundo dados do Estudo Nacional de Despesa Familiar (Endef), do IBGE, o consumo médio de fibras por pessoa em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre é de aproximadamente 20 gramas. Fibras são o prato do dia em nutrição e as pesquisas estão apenas no início. “Em 1912, foi descoberta a primeira substância a ser chamada vitamina”, compara a nutricionista Maria Lúcia Cavalcanti. “Hoje, oitenta anos depois conhecemos um número surpreendente delas, assim como suas funções, não menos surpreendentes. Com as fibras será a mesma coisa.”

 

 

Para saber mais:

A dura jornada de um sanduíche boca adentro

(SUPER número 6, ano 3)

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A fibra de cada um

Teor em gramas em cada 100 g de alimento

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CEREAIS

Farelo de trigo 44,0

Farelo de aveia 26,4

Milho de pipoca

estourado 16,5

Aveia, grão

integral, cru 14,0

Farinha de trigo

integral 9,6

Pão integral 8,5

Arroz integral, cru 7,2

Pão preto 5,1

Milho verde cozido 4,7

Farinha de trigo

refinada 3,0

Pão branco 2,7

Arroz integral cozido 2,4

Arroz polido cozido 0,8

 

 

 

OLEAGINOSAS

Amêndoa 14,3

Coco 13,6

Castanha-do-pará 9,0

Amendoim 8,1

 

 

 

LEGUMES, VERDURAS

Feijão cozido 7,4

Espinafre cozido 6,3

Ervilhas cozidas 5,2

Lentilhas cozidas 3,7

Cenoura cozida 3,0

Cenoura crua 2,9

Brócolis cozidos 2,9

Batata assada com

casca 2,5

Batata cozida 2,0

Repolho cozido 1,8

Couve-flor cozida 1,8

Alface 1,5

 

 

 

FRUTAS

Amora 7,3

Uva passa 6,8

Banana 3,4

Pêra 3,3

Morango 2,2

Ameixa 2,1

Maçã 2,0

Laranja 2,0

Tomate 1,5

Abacaxi 1,2

 

 

 

 

Roteiro de um bom bocado

Do garfo ao intestino, o alimento faz uma viagem com muitas escalas. A primeira, naturalmente, é a boca, onde a digestão já começa: produzida por glândulas, a saliva não serve apenas para amolecer a comida; ela contém componentes chamados enzimas, capazes de digerir substâncias como o amido, encontrado na batata e no arroz. Digerir quer dizer transformar substâncias complexas em simples, de modo que o organismo possa aproveitá-las. O amido, por exemplo, não pode ser aproveitado como tal. No entanto, transformado em glicose, seu composto mais simples, é absorvido sem problemas.

Da boca, o alimento passa ao esôfago, o tubo longo e fino que vai da garganta até o abdômen. É o túnel pelo qual a comida mastigada alcança o estômago. Ali, graças à profusão de sucos gástricos e à grande quantidade de enzimas, se dá a digestão propriamente dita. O bolo alimentar assim formado toma o rumo do intestino delgado onde vai sofrer a ação de outros sucos digestivos, estes enviados pelo fígado e pelo pâncreas. As secreções produzidas por esses órgãos contêm enzimas especiais capazes de digerir proteínas e gorduras. O intestino delgado é também a estação onde os alimentos já digeridos são absorvidos pelo organismo, sendo embarcados na circulação sangüínea. Os resíduos não aproveitados nesse processo todo — que incluem as fibras vegetais — passam então ao intestino grosso ou cólon, onde ficarão até ser expelidos.

 

 

 

 

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