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Paleontólogos definem novas estratégias para impedir o comércio ilegal dos nossos fósseis

Em 2022, atuação do Ministério Público Federal (MPF) levou à repatriação de um fóssil brasileiro com mais de 100 milhões de anos, datado do período Cretáceo. A peça estava sendo comercializada de modo ilícito em um site de leilões, na Itália.

Por Renato Pirani Ghilardi*
Atualizado em 19 mar 2024, 16h01 - Publicado em 19 mar 2024, 16h00

*Renato Pirani Ghilardi é professor de paleontologia da Faculdade de Ciências e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia, Universidade Estadual Paulista (Unesp). O texto abaixo saiu originalmente no site The Conversation, que publica artigos escritos por pesquisadores. Vale a visita.

Quando a palavra fóssil aparece no noticiário, muita gente pensa em animais gigantescos, como os Tiranossauros ou os Brontossauros. Fósseis desse porte não são encontrados em solo brasileiro, mas os nossos exemplares são tão incríveis quanto os que vemos nos filmes.

Pouco conhecidos por falta de mais divulgação, os nossos fósseis ganharam destaque nos jornais e televisões do país e de fora no final do ano passado.

Em 23 de dezembro, quase mil exemplares foram devolvidos ao Brasil pela França, entre pterossauros, peixes, plantas e insetos.

O acordo de repatriamento desse material levou uma década para se tornar realidade e foi a maior repatriação em volume de bens culturais da história do Brasil. A grande maioria desse lote repatriado no final de 2023 saiu daqui por contrabando.

Alguns exemplares sequestrados têm valor incalculável. Outros rendem quantias polpudas aos criminosos. É muito conhecido no meio o caso da recuperação, pela Aduana francesa, em 2006, de treze fósseis de mesossauros permianos brasileiros escondidos dentro de Bíblias. O material foi orçado, na época, em US$ 500 mil.

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Obviamente, isso não acontece somente no Brasil. O ator norte-americano Nicolas Cage foi obrigado a devolver ao governo da Mongólia o crânio de um dinossauro mongol comprado por US$ 276 mil porque o fóssil tinha saído do país de forma ilícita.

Mercado ilícito e rentável

Não se tem ideia do volume de material fóssil tirado clandestinamente do Brasil e nem desde quando isso ocorre. Um dos motivos é que, pelas regras vigentes, se um fóssil saiu antes de 1942, quando foi publicada a primeira lei do setor, não é possível classificar esse ato como uma infração.

Talvez o caso mais notório seja o do fóssil do Tetrapodophys, descrito inicialmente em 2015 na revista Science como uma das primeiras serpentes a possuir quatro patas. Artigos posteriores questionam essa classificação. Mas fato é que esse fóssil foi encontrado na Bacia do Araripe e surrupiado do país. Não foi devolvido sob a alegação de que foi adquirido antes de 1942.

Essa brecha na legislação faz com que alguns museus particulares no exterior digam que seus exemplares brasileiros foram adquiridos antes dessa data. Ocorre que a grande maioria desses materiais foi parar em instituições e mesmo em museus públicos de outros países depois de 1942 e de forma inexplicada.

O decreto-lei 4.146/1942 determinou que os depósitos fossilíferos são propriedade da nação e estabeleceu a necessidade de autorização para extração. Mas foi a Constituição Federal de 1988 que considerou os sítios paleontológicos como patrimônio cultural da nação. Desde então, algumas leis foram criadas. A mais recente, de 2016, formula procedimentos para a extração de fósseis.

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De modo geral, as pesquisas paleontológicas com participação de estrangeiros no país são bem regulamentadas. Segundo as nossas leis, um fóssil só pode sair do Brasil se estiver vinculado a uma pesquisa. Se o pesquisador for estrangeiro, precisa formalizar uma extensa documentação junto ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Mas isso não tem impedido a grande saída de fósseis de modo ilegal, ou seja, o tráfico.

Acredita-se que a principal rota de grande parte dos fósseis levados clandestinamente do Brasil é marítima. Eles são acondicionados em contêineres embarcados em navios. Nos portos brasileiros, as cargas são catalogadas como rochas ornamentais.

Por mais uma falha na legislação, as rochas calcárias contendo fósseis podem ser classificadas como rochas ornamentais, vendidas e tiradas do país. Com elas, levam milhares de fósseis que são parte do patrimônio paleontológico brasileiro. O real destino deles? Difícil dizer.

Boa parte do material contrabandeado de um dos nossos maiores pontos fossilíferos, a Bacia do Araripe, no nordeste do país, segue esse roteiro. Os fósseis encontrados nessa bacia sedimentar têm preservação excepcional, permitindo muitas vezes que as partes moles dos animais e as suas cores fiquem preservadas. Para ter ideia do tamanho do problema, segundo estudo da entidade britânica Royal Service, 88% dos fósseis do Araripe estão no exterior.

A volta do Ubirajara jubatus

Não faz muito tempo, um fóssil da Bacia do Araripe despertou a atenção mundial. O pequeno dinossauro Ubirajara jubatus (nomen nudum) foi descrito em 13 de dezembro de 2020 no artigo “A maned theropod dinosaur from Gondwana with elaborate integumentary structures”, na conceituada revista Cretaceous Research.

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A princípio, Ubirajara foi recebido com muito interesse pela comunidade científica por suas características únicas, como a plumagem na região dorsal, onde formaria uma juba, e dois pares de penas ou plumas de maiores dimensões saindo dos ombros.

Entretanto, também saltou aos olhos o fato de que um fóssil da Bacia do Araripe, no Brasil, não deveria estar em um museu alemão, onde os pesquisadores que o descreveram afirmaram que estava. A instituição era o Museu de História Natural de Karlsruhe (SMNK)

Imediatamente, a Sociedade Brasileira de Paleontologia entrou em contato com o editor-chefe da revista científica para comunicar a surpresa pela publicação de material fossilífero brasileiro sem, aparentemente, documentação pertinente para a saída de material fóssil do país.

Os autores do trabalho tinham em mãos documentação referente a uma “autorização” do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM, atual Agência Nacional de Mineração/ANM) datada de 1995. Havia, porém, uma notória falha descritiva do material autorizado que, no papel, estava referenciado apenas como “duas caixas”. Duas caixas?

Ainda que os pesquisadores tivessem a autorização do DNPM, a exportação de um fóssil brasileiro continuaria ilegal se não estivesse respaldada também por uma autorização do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Isso está definido na portaria no. 55, de 14 de março de 1990, do MCTI.

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A mesma legislação estabelece que todos os espécimes tipo fósseis, como é o caso do Ubirajara jubatus (SMNK PAL 29241), devem permanecer no país. Compreendendo a ilegalidade do fóssil em sua publicação, a revista Cretaceous Research suspendeu a publicação impressa do manuscrito e considerou retirá-lo da ScienceDirect.

De início, o processo foi dificultado pela incapacidade de pesquisadores estrangeiros em admitir o erro legal associado à publicação do fóssil.

Essas medidas, juntamente com diversas ações de pesquisadores e apaixonados pela paleontologia que inundaram a internet com a hashtag #ubirajarabelongstobrasil, fizeram com que o museu alemão tentasse se retratar devolvendo o exemplar ao Brasil.

Após muita negociação, no dia 4 de junho de 2023, o exemplar voltou ao Brasil numa cerimônia de intercâmbio entre os dois governos. Agora, está depositado no Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, na região do Cariri, no Ceará, onde foi coletado.

Apesar das discussões surgidas a partir dessa devolução, com profissionais achando que os caminhos de pesquisa com os estrangeiros iriam se fechar, vários fósseis foram repatriados. Em especial, artrópodes como a aranha Cretapalpus vittari, que foi devolvida em outubro de 2021 pela Universidade do Kansas, nos Estados Unidos, e peixes de coleções europeias.

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Ubirajara não foi o primeiro fóssil repatriado. Em 2016, uma coleção inteira de macro invertebrados marinhos fósseis, chamada Coleção Caster, com cerca de uma tonelada de material, foi devolvida pelo Museu of Natural History and Science of Cincinatti, nos Estados Unidos, ao Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Foi a primeira devolução a voltar a partir de negociações feitas por profissionais paleontólogos.

Reação organizada ao colonialismo científico

Nós, cientistas, sabemos que a Ciência não tem fronteiras, mas precisamos nos resguardar do que chamamos de colonialismo científico – modo em que cientistas de países desenvolvidos geram conhecimento explorando os recursos naturais de países em desenvolvimento.

Não é raro alguns estrangeiros acharem que não há leis em nossos países que tratem sobre a saída de fósseis ou, ainda, considerarem que não há condições científicas para os fósseis ficarem em nossos países.

Em oposição ao isso, as associações paleontológicas da América Latina (Brasil, Argentina, Chile, México, Peru e Equador) se juntaram para demonstrar que há muita ciência de ponta sendo feita em nossos países e que devem respeitar as leis que resguardam nossos patrimônios naturais e culturais.

A ideia é que as nossas associações participem de congressos e eventos para divulgar e mudar a linha de pensamento das pessoas sobre a ciência que fazemos. Outra intervenção é atuar junto às publicações científicas para revisar as normas e expandir a utilização de material fossilífero.

Mais uma iniciativa importante foi a criação da Red List Brasil em 2023. Elaborada pelo International Council of Museums (ICOM), a lista relaciona fósseis, mapas, livros e peças etnográficas entre os bens culturais sob maior risco de tráfico. Ela é distribuída às autoridades policiais e alfandegárias de todo mundo e está disponível na internet. Seu objetivo é prevenir a saída desses bens do país e sua circulação internacional ilegal.

A participação de paleontólogos brasileiros no Catálogo da Vida (Catalogue of Life), um banco de dados de espécies do mundo, mantido por taxonomistas globais, é outra medida que contribui para o fomento de novas políticas públicas de proteção de materiais fósseis mais delicados ou raros.

Outro campo em que precisamos avançar é a regulamentação da profissão do Paleontólogo. Tramita lentamente na Congresso um projeto de lei (791/2019) que trará segurança ao profissional que resguarda o patrimônio paleontológico e história que ele nos conta. A proposta foi redistribuída às comissões no ano passado.

Na prática, o conjunto das ações da Sociedade Brasileira de Paleontologia e os desafios a serem enfrentados para proteger e preservar o nosso patrimônio natural e cultural precisam ser mais divulgados e conhecidos pelos brasileiros.

Em janeiro deste ano, um grupo de pesquisadores do qual fiz parte publicou um artigo na revista Nature Ecology & Evolution sobre o papel das sociedades. No texto “Scientific societies have a part to play in repatriating fossils”, mostramos que a repatriação de fósseis é uma questão central para a paleontologia e um posicionamento fundamental para fazer frente ao colonialismo científico.

Na recuperação do Ubirajara jubatus, por exemplo, houve uma operação conjunta entre forças policiais brasileiras e francesa e uma importante colaboração entre o MCTI, Ministério da Educação, Ministério das Relações Exteriores, Conselho Internacional de Museus, museus de paleontologia e universidades federais e estaduais. É dessa integração de forças que precisamos para enfrentar os nossos desafios.The Conversation

Este artigo foi republicado do The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original.

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