Profetas do possível
A previsão do futuro deixa a tenda dos videntes e entra para o domínio da Ciência, que usa os instrumentos da razão para preparar um amanhã melhor.
Sérgio Buarque de Gusmão
Até que ponto é possível prever o futuro? Desde a Antiguidade, o desafio de antecipar o dia de amanhã tem sido o ganha-pão dos bruxos, dos místicos e dos adivinhos. Ainda hoje, quando o planeta passa por mudanças cada vez mais rápidas e imprevisíveis, há quem acredite que é possível dominar as incertezas da existência por meio das cartas do tarô e da posição dos astros. Esse tipo de profecia nada tem a ver com a Ciência.
Os cientistas também apontam seus olhos para o futuro, só que de uma maneira diferente. Eles avaliam o estágio do saber de sua própria época para projetar as descobertas que se pode esperar. Observam a natureza para reinventá-la a serviço do homem. Foi o que fez Leonardo da Vinci (1452-1519), um dos maiores gênios da humanidade, ao desenhar, no século XVI, um esboço do helicóptero – e com um prudente acessório, o pára-quedas, não previsto no primeiro protótipo moderno, montado em 1907 pelo francês Paul Cornu. O escritor francês Júlio Verne foi um mestre em fazer previsões com base na Ciência (veja texto na página 52). Os vaticínios de Da Vinci e Verne se escoravam nas melhores ferramentas da futurologia: a curiosidade e o conhecimento.
Na segunda metade do século XX, a futurologia deixou de ser um passatempo de amadores para converter-se em complexo exercício de especialistas que carregam no currículo até prêmios Nobel. Adivinhação agora se chama prospectiva. Em vez de estrelas, os novos videntes olham para as planilhas. Não consultam os búzios, mas as linhas do comportamento. A prospectiva não acredita que o porvir já esteja escrito em algum lugar. Limita-se a expor os diversos futuros possíveis. A realização ou não dessas previsões dependerá, em grande parte, das escolhas humanas.
A aventura de intervir na linha do tempo
Com a velha futurologia, a prospectiva guarda em comum a utopia de que o mundo sempre pode ser aperfeiçoado. “Um futuro planejado será melhor do que aquele que deixamos acontecer por acaso”, diz Edward Cornish, ex-repórter da revista americana National Geographic que em 1967 fundou uma bola de cristal moderna: a Sociedade do Futuro Mundial, entidade com sede nos Estados Unidos que reúne cerca de 30 000 integrantes em oitenta países.
Como ela, centenas de instituições governamentais, acadêmicas ou privadas espalham-se pelo planeta com o objetivo de resolver no futuro os problemas do presente. Da conhecida Rand Corporation, que trabalha para o governo e grandes empresas americanas, a entidades oficiais na Inglaterra, Canadá, Alemanha e Japão, todos arregimentam cérebros privilegiados para garimpar no calendário fatos que ainda não aconteceram.
São programas de prognóstico e de intervenção na linha do tempo. “Não falamos mais em predizer o futuro, mas sim em avaliação política das ações e processos”, ensina o futurólogo Mijako Mesarovic, nascido na ex-Iugoslávia mas professor da Case Western Reserve University, nos Estados Unidos.
A geopolítica já não se satisfaz com chutes científicos ou planejamento de incertezas. Entram nesse terreno palpites como o do filósofo e matemáti-co britânico Bertrand Russel (1872-1970), uma das grandes sumidades do milênio, que previu que a União Soviética ia virar capitalista e os EUA, socialistas. O primeira metade da profecia já está realizada, mas a segunda permanece mais improvável do que nunca.
Atualmente os estrategistas se interrogam sobre a China, que funde liberdade econômica com ditadura política para erguer uma superpotência. A Rand prevê que ela será um gigante tecnológico do porte do Japão. Aí, sim, o mundo saberá o que é um tigre asiático.
Um simples acaso pode mudar tudo
Um obstáculo no caminho de qualquer prognóstico racional é o acaso, o imponderável, as coisas impossíveis de prever. “As descobertas mais importantes freqüentemente são aquelas que não foram previstas ou nem sequer insinuadas”, admite o astrônomo americano Freeman Dyson, professor do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Princeton. Muitas delas foram tesouros largados pelo destino no caminho dos pesquisadores.
Um episódio célebre é o do descobrimento da penicilina, em 1928, pelo biólogo escocês Alexander Fleming (1881-1955). Ele estava pesquisando o comportamento de fungos, no laboratório do Hospital Saint Mary, em Londres, quando o futuro vôou do andar de cima para o de baixo. Células do cogumelo Penicillium notatum foram levadas pelo vento até um caldo de cultura de estafilococos e o resultado foi exatamente o mesmo de quando, atualmente, tomamos penicilina para combater uma infecção. A partir do acaso, uma lufada de sorte no laboratório, o homem foi capaz de industrializar os antibióticos e combater as bactérias.
Quando o tiro erra o alvo
Profecias de ontem, piadas de hoje
O presente tem debochado de muitos sábios que duvidaram das artimanhas do futuro. Pode-se ler no calendário da futurologia a anotação “ainda não foi desta vez” em datas de previsões espetaculares como a vacina contra o câncer, aviões movidos a energia nuclear, auto-estradas sobre colchões de ar, robôs neurastênicos, cidades flutuantes. A revista científica Nature sentenciou em 1928 que as viagens espaciais eram um delírio. O físico neozelandês Ernest Rutheford, prêmio Nobel de Química de 1908, morreu em 1937 prevendo que a energia do átomo jamais teria utilidade.
O americano Thomas Edison (1847-1931), inventor da lâmpada elétrica, não previu grande futuro para seu motor a explosão. Seu compatriota Hermann Kahn (1922-1983), responsável pela popularização da palavra futurologia, previa que, em 1990, a humanidade já seria capaz de controlar fatores da natureza como o calor e as chuvas. Pelas profeciais de Kahn, que virou persona non grata no Brasil ao propor a transformação da Amazônia num gigantesco lago, os casais a esta altura já poderiam escolher a cor da pele dos filhos, como quem escolhe o carrinho-de-bebê.
Os prospectólogos da atualidade também levam um baile dos fatos. Um dos mais ativos, o canadense Frank Ogden, é consultor de empresas e governos, mas sua conexão com o futuro tem falhado em previsões com a de que no final do milênio os humanos se casarão com andróides especialmente projetados para o matrimônio. A bem da verdade, Ogden ainda tem três anos a seu favor.
A bem da Ciência, é melhor deixar certas ousadias para a ficção, como as viagens interplanetárias de fim de semana no disco voador particular da família Jetson.
Um desafio cheio de riscos e de promessas
Empresas globais vislumbram os mercados do próximo milênio a partir da mudança de mentalidade dos consumidores. A escassez de recursos naturais e o crescimento do movimento ambientalista forçam a indústria automobilística a projetar carros limpos movidos a combustível renovável. A redução dos custos e do tempo para as tarefas nas empresas e nos lares estimula soluções à la Jetson, a família do desenho animado criado pela Hanna-Barbera em 1962, um ano depois de o russo Yuri Gagarin passear no espaço.
Quem ainda se delicia com as peripécias futurísticas do casal George e Jane Jetson na TV entende que o que atrapalha as previsões é o calendário e a realidade. Temos robôs domésticos, mas não ainda sofisticados. Temos veículos espaciais, mas não na garagem de casa. Como estas, muitas previsões foram remetidas de volta para o passado (veja quadro na página 9).
“A Aids será curada em 1997”, anunciaram, em 1988, os futurólogos da Agência de Ciência e Desenvolvimento do Japão. Àquela altura, com o HIV já sendo dissecado em laboratórios do mundo inteiro, era de se esperar – como ainda esperamos – o iminente anúncio da cura e da vacina contra o mal do século.
Os japoneses não contavam, no entanto, com o fator vida. O vírus é mutante, dribla os ata-ques inflingidos pelo homem. Se fosse inerte, como seu parceiro causador da paralisia infantil, já estaria sob controle. A vida reescreve previsões e atitudes tomadas para viabilizá-las. Na década de 70, o choque do petróleo caro e esgotável fez o mundo pensar em alternativas. No Brasil, foi criado o Proálcool, do qual já nem se fala. E o petróleo continua muito mais barato do qualquer dos concorrentes concebidos naquela época.
Nada disso reduz a impor-tância dos futurólogos. O Windows, a linguagem que revolucionou o uso dos computadores na década de 90, nasceu de um típico esforço de prospectiva. Em 1972, a Xerox reuniu pes-quisadores num hotel paradisíaco, na Califórnia. O trabalho deles era imaginar o futuro da informática. Não tinham prazo nem roteiro. Eles sabiam que os computadores eram máquinas fascinantes, mas difíceis de manejar e de se popularizar. Para fazer um cálculo ou escre-ver um texto, o pobre homem do passado – nos longínquos anos 70 – tinha de digitar comandos cabalísticos. Os futu-rólogos da Xerox criaram a linguagem das janelas que podiam ser abertas ou movimentadas com um mouse.
A Xerox antecipou o futuro, mas não soube tirar proveito da invenção. Logo depois, a mesma idéia tornou Bill Gates, na Microsoft, e Steve Jobs, na Apple, dois dos homens mais ricos do mundo. “Para uma previsão dar certo não basta estar certa”, ensina o americano James L. Morrison. “É necessário que acreditemos nela e trabalhemos para que se realize.”
As eternas utopias
Por mais audaciosas que sejam as previsões científicas, nem todos os nossos sonhos encontram seu lugar nelas. As grandes utopias da humanidade continuam fora do horizonte. Veja alguns exemplos de metas que não entram na agenda de nenhum futurólogo.
Congelamento
Diversas instituições atraem clientes com a promessa de congelar seu corpo logo depois da morte e guardá-lo até uma ressurreição futura. Ninguém sabe se e como isso será possível. Até agora não se conseguiu reanimar sequer os organismos mais simples, como bactérias, menos ainda um humano.
Imortalidade
Graças aos avanços da Genética, a expectativa média de vida pode ultrapassar os 120 anos até o ano 2015. Mas não se vislumbra uma maneira de repor totalmente as células que morrem, no processo que culmina com a falência total do organismo. Teremos de conviver com a morte ainda por muito tempo. Para sempre?
Teletransporte
Já se cogitou uma máquina capaz de decompor você nos miiiiiínimos detalhes e enviar a informação para outro planeta, onde outra máquina o reconstituiria igual ao que é hoje. O renomado físico inglês Roger Penrose contesta, argumentando que é impossível desvendar totalmente órgãos complexos como o cérebro.
Invisibilidade
Para atingir esse estado, você teria de reorganizar as moléculas de seu corpo de tal maneira que a luz poderia atravessá-lo sem perda de energia no caminho. O problema é que, para fazer isso, o corpo perderia todas as suas características atuais. Você simplesmente deixaria de ser você. Será que vale a pena?
Viagens no tempo
Para o passado, impossível. Para o futuro você já pode se deslocar, ao menos na teoria. Teria de deixar a Terra numa nave a uma velocidade próxima à da luz. Lá dentro, o tempo passaria mais devagar. Um passeio que para você só dura um mês leva cinco anos para quem ficou. Mas é um projeto inviável economicamente.