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Qual é procedimento-padrão das cirurgias mediúnicas

Você já pensou em se submeter a uma cirurgia em que o médico não é médico e o bisturi pode ser a própria unha? Prenda o fôlego e saiba como são feitas as operações mediúnicas

Por Fabiana Parajara
Atualizado em 31 out 2016, 18h52 - Publicado em 31 jul 2000, 22h00

Céu azul, dia quente, pessoas de branco por todos os lados. O galpão enfeitado com bandeirolas azuis abriga umas 200 pessoas. Todas parecem rezar. Em cima de um palco um sujeito entoa mensagens de esperança. De repente, uma porta se abre e um homem aparece puxando uma senhora pela mão. É o médium João Teixeira, famoso por curas espirituais que operaria.

Depois de um breve discurso e de uma prece, ele pega uma tesoura longa em uma bandeja que está nas mãos do assistente. Sem nenhum tipo de anestesia e muito pouco delicadamente, empurra o instrumento para dentro do nariz da mulher. Ela levanta o braço com medo. Ele a tranqüiliza. Ouvem-se estalos. A mulher murmura, mas parece não sentir dor. O sangue começa a escorrer do seu nariz. Em segundos, o médium balança a tesoura no ar. Na ponta, um pedaço de carne esponjosa. “Carrega!”, grita, e dois homens retiram a mulher do recinto.

A platéia assiste extasiada ao espetáculo que acontece toda semana no galpão da Casa de Dom Inácio, em Abadiânia, interior de Goiás. O médium João Teixeira atrai gente de muitos lugares. “Eu tinha um problema no nervo ciático. A dor era insuportável na parte baixa das costas. O tratamento médico tradicional não resolvia”, conta Luiz Alberto Gomes Silva, que veio de Brasília. “Achei estranho ser operado pelo nariz. Perguntei para a entidade, o espírito incorporado pelo médium, se o corte não devia ser no local que doía, mas ela disse que não.” Depois disso, Silva garante que a dor praticamente acabou. “Ficou apenas uma sensação estranha, como se tivesse tomado uma leve pancada”, afirma.

O metalúrgico José Walter de Matos veio de Sabará, Minas Gerais. Ele sofreu vários pequenos cortes atrás da orelha antes de o médium enfiar uma tesoura com gaze em seu ouvido. Matos conta que vinha perdendo a audição do lado direito. Até o final da tarde em que foi operado, ainda não escutava bem, mas já havia comprado três garrafas do chá artesanal vendido pela Casa.

O centro Dom Inácio é visitado por centenas de estrangeiros todos os anos. “Eu estava na sala de cirurgia, orando. O João se aproximou de mim e enfiou o bisturi no meu olho”, conta o americano Bob Dinga, 42 anos, professor em Aptos, na California, em Abadiânia pela quinta vez. “Antes, eu não enxergava quase nada, só vultos. Hoje, um dia após a operação, vejo que a sua blusa é azul e o seu cabelo é marrom.” Dinga soletra palavras que lê nos cartazes, rindo como criança. Usar o bisturi não é, no entanto, o procedimento-padrão das cirurgias mediúnicas. Normalmente o médium pergunta ao paciente: “Com ou sem corte?” Cada um decide o que vai ser.

Não pense que essa escolha envolve uma minuciosa avaliação sobre a possibilidade de a cirurgia trazer complicações. Em lugares assim, a limpeza é inadequada e o risco de infecção é muito grande.

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No entanto, o desleixo com as bactérias aparentemente não traz tantos malefícios quanto poderia. “Há pouquíssimos casos registrados de infecção”, diz o pesquisador Stanley Krippner, especialista em fenômenos paranormais da Saybrook Graduate School, da Califórnia. Ele é co-autor do livro Varieties of Anomalous Experiences, sobre curas paranormais em todo o mundo.

Krippner viu uma cirurgia espiritual pela primeira vez na década de 80, no Brasil. O médium era Edson Queiroz, que depois da morte de José Arigó manteve a fama da entidade Doutor Fritz em evidência Em suas operações, Queiroz e Arigó usavam facas e canivetes muitas vezes enferrujados. Em Abadiânia, pelo menos, os bisturis são descartáveis e as tesouras e as pinças são cirúrgicas. Contudo, depois que o corte é feito, os dedos do médium entram em ação. E ele não costuma lavar as mãos antes de operar.

A ausência de dor também intriga a ciência. “As cirurgias são superficiais”, afirma o cirurgião Hércules Bueno, do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, depois de assistir, a convite da SUPER, a algumas operações feitas no centro. Além disso, ao que parece, a analgesia (nome que os médicos dão para a falta de dor) ocorre por sugestão. “Quando o médium manda o paciente concentrar seu pensamento em Deus, ele acaba desviando a atenção dos estímulos dolorosos”, diz Bueno. Haja concentração para suportar cortes e perfurações sem anestesia.

O interior de Goiás é apenas um dos muitos lugares em que essas práticas acontecem. Onde quer que haja notícia de curas milagrosas, forma-se uma enorme fila. E em cada um desses lugares há uma maneira diferente de praticar esse estranho casamento entre a medicina e a fé. A Fundação Espírita Caminho de Luz, em Campos Gerais, no sul de Minas, é uma entidade espiritualista. Eles acreditam em espíritos, mas não seguem dogmas de religiões como o kardecismo ou a umbanda.

Na sede da fundação, o médium Gaudêncio Nunes afirma ser incorporado pelo espírito do doutor Schandhermen Ludwig, um médico alemão que teria morrido na Primeira Guerra Mundial. Ele diz curar catarata raspando com a própria unha o olho do paciente. “Na verdade isso não é catarata. É pterígeo, uma pele que se desenvolve sobre o olho”, diz o oftamologista da Universidade Federal de São Paulo Paulo Augusto de Arruda Mello. “Ele retirou o tecido que estava sobrando. A pessoa passa a enxergar melhor e pensa que se curou de catarata, que se manifesta dentro do globo ocular”, diz. A córnea, mesmo traumatizada, recupera-se logo.

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O médium Nunes também utiliza agulhas de injeção, de 2 centímetros de comprimento. Os pacientes levantam a roupa e as agulhas são enfiadas na pele, em cima dos órgãos doentes. Encerrada a sessão, todos os instrumentos usados são incinerados. O que é um consolo.

Muitos centros se valem de métodos mais suaves, como os passes – a “transmissão de energia” pelas mãos, sem tocar o paciente. Na Legião Branca Mestre Jesus, em Santa Rita do Passa Quatro, em São Paulo, práticas da umbanda se misturam com a doutrina cristã.

No terreiro, sob a imagem de Jesus, queimam-se ervas para atrair boa sorte e isolar energias negativas. Em seguida vêm as preces, em meio à fumaça doce que impregna o ar. Os médiuns “incorporam” as entidades tremendo e mexendo muito o corpo. Nas salas de cirurgia, o paciente é tocado por um crucifixo, enquanto todos oram o pai-nosso.

O Instituto Espírita Cidadão do Mundo, na capital paulista, só faz passes. O espírito que segundo o Instituto cura as pessoas é o do alemão Hoffman Belgrand. (É curioso que os espíritos sejam na maioria de médicos alemães. Não há um simples polonês, um único australiano, um mísero boliviano.)

É claro que a eficiência dessas práticas é controversa. Além da auto-sugestão, muitos acreditam em hipnose. “Pessoalmente, acho que essa seja a hipótese mais provável. A religião e as preces induzem ao transe hipnótico”, diz Sérgio Henriques, psiquiatra do Centro de Estudos da Dor, do Hospital das Clínicas de São Paulo. “Sob o comando do médium, o doente se sente melhor porque a mente dele aceita a idéia de que a dor passou.”

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Uma das pacientes do Instituto Cidadão do Mundo é vítima de poliomielite – a paralisia infantil. No seu tratamento, o médico apenas colocou as mãos sob suas pernas. O cirurgião Jorge Kalil, do Hospital São Luiz, de São Paulo, que acompanhava a reportagem a convite da SUPER, perguntou o que o espírito estava fazendo. “Reforçando a musculatura”, respondeu o que seria a entidade.

“Poliomielite atinge o sistema nervoso, não o muscular” – retrucou o médico. Era o princípio de uma discussão. O médico questionava os conhecimentos de medicina da “entidade”. O médium respondia aos questionamentos com afirmações de fé. Nada de fisiologia. A paciente, então, entrou no debate declarando-se convencida de que seus problemas eram musculares. E mais: creditou ao tratamento espiritual o fim das dores que sentia nos braços. “As pessoas estão aqui atrás de atenção e carinho. Coisas que nem sempre encontram no sistema público de saúde”, diz o cirugião. “Se houver melhora, é psicológica.”

Os próprios médiuns admitem parcialmente essa tese. “Os cortes ajudam a reforçar a fé das pessoas para que elas realmente acreditem que estão sendo curadas”, explica João Teixeira, de Abadiânia. “Por isso, as entidades perguntam se a pessoa quer corte ou não. Quando ela tem fé, a operação é invisível. Mas também há gente que precisa ver a doença saindo do corpo para ter certeza de que está sendo curada.”

Apesar de haver histórias mal contadas, há evidências que, apesar de concretas, refutam qualquer explicação lógica. No Instituto Espírita Cidadão do Mundo, uma menina de apenas 4 anos, vítima de leucemia, teve uma melhora repentina logo depois do primeiro passe. “A médica ficou impressionada. Minha filha vivia doente, com febre contínua e, muitas vezes, estava tão debilitada que nem podia receber a quimioterapia”, conta a mãe, Rosa Pereira dos Santos. “A febre cedeu depois do primeiro passe e há um ano ela não deixa de fazer a quimioterapia na data marcada.” Uma criança dessa idade dificilmente ficaria auto-sugestionada por um passe.

Além disso, há relatos de alguns médiuns que adivinham com precisão o problema das pessoas sem que elas dêem nenhuma pista. Em Abadiânia, o casal Fátima Trindade e Andrew Seidenfeld, recém-chegado dos Estados Unidos, entrou na fila do atendimento sem contar para ninguém por quê. O médium imediatamente levou a mão à barriga de Fátima e pediu que ela não falasse nada. “Vou cuidar de você. Você pode ficar por aqui uma semana? Opero você na próxima quarta-feira”, disse João Teixeira. Ela respondeu que ficaria. Antes de saírem, mais uma surpresa. O “espírito”, que se identificou como José, completou: “Vou curar também o vício dele. Sei que isso a incomoda”. Passado o episódio, Fátima revelou que tinha um cisto no ovário, diagnosticado nos Estados Unidos. Andrew era viciado em maconha e tinha compulsão por sexo. “Sou hiperativo. Às vezes preciso fumar alguma coisa para conseguir me controlar”, diz Andrew. “Naquela hora, o médium parecia ler meu pensamento”, afirma Fátima.

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Os relatos mostram duas coisas. Primeiro, que mesmo quem tem os melhores recursos da Medicina à disposição não hesita em procurar soluções mágicas para seus problemas. Segundo, que nem sempre os que procuram ajuda do além esgotaram todas as tentativas de se curar pela medicina tradicional. A catarata, por exemplo, é uma das queixas mais comuns nas filas dos centros e têm uma solução rápida e segura em qualquer consultório oftamológico.

O Conselho Federal de Medicina tem uma posição clara quanto a esse tipo de prática. “Todos os casos que o órgão acompanhou eram fraudes e estelionato”, afirma Edson de Oliveira Andrade, presidente do conselho. “Nossa função é informar as autoridades sanitárias sobre os abusos, como cortes, administração de remédios ou abandono de tratamento”, completa.

“Um sinal da seriedade de um centro espírita é não cobrar pelo tratamento”, afirma Gerson Monteiro, presidente da União das Sociedades Espíritas do Estado do Rio de Janeiro. Em Campos Gerais, de acordo com vários pacientes, a Fundação Grupo Espírita Caminho de Luz cobra 10 reais por consulta. A instituição nega que receba dinheiro pelos serviços que presta. De qualquer forma, a sala de espera lota todas as quartas-feiras. Primeiro, as pessoas passam por uma consulta, nas quais os “espíritos” diagnosticam, receitam remédios – alopatia comum –, suspendem tratamentos médicos e marcam cirurgias espirituais.

“De diagnósticos a tratamentos, tudo foge aos padrões da Medicina”, afirma o cirurgião Zacarias de Almeida Neto, de Alfenas, Minas Gerais, que foi com a SUPER a Campos Gerais. “O médium não demonstrou conhecimentos médicos profundos. Eles receitam antiinflamatórios e antibióticos sem perguntar se a pessoa tem, por exemplo, problemas alérgicos ou gástricos”, diz. Na sua opinião, “só um acompanhamento dos casos mostraria se as curas ocorrem de fato”. Enquanto essas pesquisas não aparecem, as explicações continuam sendo uma questão de fé.

Do médium para o médico

Mesmo sem sofrer uma incisão, alguns pacientes de tratamentos mediúnicos relatam ter sentido como se ela estivesse acontecendo. Em 1987, a jogadora de basquete Paula, a Magic Paula, recorreu a uma cirurgia espiritual sem corte para tratar um problema no joelho. Procurou o médium Waldemar Coelho, em Leme, interior de São Paulo. “Sentia como se abrissem minha pele e mexessem lá dentro. Só que não doía”, afirma. Dois anos depois, Paula teve problemas no outro joelho. Dessa feita os espíritos não conseguiram resolver e ela acabou no centro cirúrgico de um hospital.

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A jogadora Virna, da Seleção Brasileira de Vôlei, também foi paciente de Coelho. “Em 1993, depois de um jogo em Cuzco, no Peru, minha mão direita começou a doer. A artéria que irriga a mão estava obstruída”, diz. De acordo com a jogadora, os médicos que a examinaram receitaram cirurgia. Apesar de ser católica, Virna resolveu seguir a indicação de colegas de equipe e procurou o médium. “Sabia que era uma operação sem corte, mas senti a pele abrir, o sangue escorrer. Senti até ele dar os pontos e não doeu nada”, diz. Sua mão ficou boa.

Alemão bom de faca

José Pedro de Freitas, ou Zé Arigó, foi um dos primeiros cirugiões-médiuns brasileiros famosos. Seus instrumentos eram facas, canivetes e serrotes, às vezes enferrujados. Suas curas eram atribuídas ao “Doutor Fritz”, o espírito de um médico alemão morto durante a Primeira Guerra. Arigó morreu em 1971, em um violento acidente de carro na Rodovia Fernão Dias. Durante trinta anos de operações, calcula-se que tenha atendido nada menos do que 2 milhões de pessoas.

Mesmo depois da morte de Arigó, o Doutor Fritz continuou operando. O ginecologista pernambucano Edson Queiroz, que passou a receber o espírito da entidade em 1981, como Arigó, sofreu diversos processos, chegando a perder o direito de exercer a profissão. Em 1991, morreu assassinado a facadas.

Rubens de Faria Júnior foi o último médium a atrair multidões com o nome de Doutor Fritz. Hoje, esse carioca de 43 anos não opera mais e também responde a vários processos. “Gasto os meus dias conversando com advogados”, conta. Rubens vive em um condomínio de luxo, na Barra da Tijuca, no Rio. Afirma sobreviver da ajuda de amigos e da remuneração por palestras e cursos que ministra em institutos internacionais de pesquisa sobre fenômenos paranormais. “Foram tantos os problemas que cheguei a pensar em me matar. Hoje só quero provar minha inocência”, diz.

 

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