Que cachorrada!
Manipulação genética causa revolução nos canis: agora as raças podem ser moldadas com base no DNA. Será que isso um dia pode chegar aos humanos?
Texto Pedro Burgos
Eugenia: o termo é definido pelo dicionário como “ciência do aperfeiçoamento da raça”. Lembra os nazistas e a busca de Hitler pela “raça pura” – na visão dele, a ariana. A idéia da eugenia continua sendo praticada no mundo, mas não em humanos. Apesar de muitos deles não gostarem do termo, os criadores de cachorros entendem do riscado. Eles aperfeiçoam as raças, mantêm as características que gostam e separam, descartam ou castram os indivíduos que não se enquadram no padrão.
Agora os criadores de cães têm uma nova ferramenta: testes de DNA. Não mais apenas para conferir o pedigree (espécie de certificado de procedência) mas para detectar se um cão tem as características desejáveis, até mesmo antes de nascer. O whippet, raça magricela da categoria dos galgos, usado em corridas caninas, é a primeira cobaia das novas experiências. Após descobrirem recentemente qual é o gene que faz o bicho mais rápido que outros da mesma raça, os criadores querem criar cães cada vez mais velozes. Cogita-se até fazer uma liga própria para os novos cachorros, talvez os primeiros da era dos supercães. E, se a ciência pode ser aplicada na velha arte da criação canina – bem como em outros animais –, por que não na moldagem de indivíduos humanos? Aí é que mora o perigo.
O lobo domado
Você consegue imaginar um poodle convivendo numa savana junto de leopardos ou um pit bull brigando por alimentos com javalis? Se não dá para visualizar isso na cabeça, há um motivo: os cachorros não existiam na natureza até o homem pegar para criar alguns lobos mais simpáticos. Pode-se dizer que o Canis lupus familiaris – aí inclusas todas as raças – é uma espécie desenhada pelo homem, bem antes do surgimento dos laboratórios ou mesmo de qualquer noção científica.
Diverge-se sobre a data exata (alguns dizem que foi há 15 000 anos, outros há 100 000), mas sabe-se que em algum momento os lobos começaram a se aproximar dos nossos antepassados pré-históricos, provavelmente na Ásia. A teoria mais aceita diz que os bichos gostavam de comer a carniça de animais caçados pelos homens. A maioria dos animais se espantava quando alguém chegava perto, mas alguns poucos não se incomodavam e começaram a rondar as aglomerações humanas. Foram ficando. Os dóceis eram domesticados, os bravos voltavam à selva.
De tanto cruzar lobos bonzinhos entre si, eles já nasciam acostumados com o homem, até porque eram alimentados e bem tratados. Os cães (que ainda não tinham esse nome) desenvolveram uma nova característica, não presente nos lobos: a capacidade de interpretar o comportamento humano. Tendo um animal dócil nas mãos, o homem colocou-o para trabalhar, privilegiando o cruzamento entre cães mais úteis, um darwinismo forçado. “As raças antigas foram criadas porque o homem precisava de alguma função específica. Para isso ele foi cruzando animais com as características desejadas”, explica Dan Wroblewski, veterinário e criador de São Paulo.
Dan cria o border collie, cão que é o resultado do aprimoramento genético desenvolvido ao longo de centenas de anos entre os criadores de gado da Escócia e da Inglaterra. Os fazendeiros foram cruzando raças diferentes até conseguirem apurar a visão, a agilidade e a pronta obediência a comandos de humanos. “Alguns rebanhos na Inglaterra ficam em áreas extensas, de difícil acesso, e só são viáveis por causa do cachorro. Ele tem diversas vantagens: diminui o número de empregados das fazendas, não tem férias e não fica doente”, diz o veterinário.
Outras raças foram desenvolvidas para a caça, para atacar outras pessoas, fazer companhia ou pela simples curiosidade estética e resultaram em animais bastante distintos – alguns de aparência bizarra. Em todo o processo, a mão do homem esteve presente. Ou você acha que do lobo chegaríamos ao pequeno chihuahua sem interferência?
Com a diversidade de cruzamentos e o isolamento geográfico – alguns bichos ficaram por muito tempo restritos a determinadas regiões do mundo – já existem centenas de raças, divididas em 10 grupos segundo uma classificação internacional, dependendo da utilidade original do cão. Nos últimos dois séculos, houve uma profusão de novas raças, mas mais recentemente a ênfase maior é no aprimoramento das já existentes.
O poder do DNA
Atualmente, o “aprimoramento” significa criar cachorros apenas com as características definidas, dentro dos padrões estabelecidos pelas associações de criadores. Se sair em uma ninhada um cachorro fora da cor normal, ou com um comportamento atípico, ele não irá cruzar com outros para não passar adiante um padrão “defeituoso”. “É preciso que esse aprimoramento seja feito dentro de um sistema ético”, afirma Márcia Bertero, criadora paulista que introduziu o pastor australiano no Brasil. “Ouço histórias terríveis de criadores que querem um padrão de beleza e sacrificam cães que nascem fora disso. É um horror.”
Para manter as raças “puras”, alguns países e o estado americano da Califórnia têm leis que determinam a castração de animais vendidos a não-criadores. Ocorre que, em nome dessa pureza, muitos criadores apelam para o cruzamento consangüíneo – o incesto parece não ser tabu para os cães (ou pelo menos para seus criadores) – e várias doenças hereditárias vão sendo perpetuadas. Algumas raças são fadadas à catarata, à displasia ou a algum tipo de câncer.
Mas, com a decodificação do DNA dos cachorros, anunciada em 2005, e a contínua identificação de características hereditárias, tornou-se possível evitar que as doenças sejam passadas para os filhotes. Para tanto, são feitos testes que verificam que cachorros são potenciais reprodutores. Como já acontece com bois e cavalos, também foi possível identificar outras características genéticas além das doenças – para a alegria dos criadores, em sua eterna busca de um animal melhor.
O whippet com o par de genes “certo” consegue correr a mais de 50 km/h, mas com a presença de outro gene, igualmente comum, o cachorro nasce musculoso demais, um pouco gordo – e lento. Com o teste de DNA para provar essa e outras características estéticas, como a cor do pêlo, parece que finalmente o homem vai evitar o acaso da natureza e conseguir o que sempre buscou: as raças perfeitas e iguais. “As tecnologias relacionadas ao cão vêm avançando muito, a genética é manipulada em todos os níveis”, afirma Cláudio de Almeida, árbitro de competições do Kennel Club de São Paulo. “Há rações que fazem as cadelas ter mais filhotes fêmeas, por exemplo. Se houver a possibilidade de o criador ter essa tecnologia do DNA, sem dúvida há o interesse.”
E com os humanos?
Cachorros não são, obviamente, o que faz correr os rios de dinheiro investidos em pesquisa genética. Nos últimos anos, têm sido descobertos quais são os genes que provocam a predisposição humana a várias doenças, principalmente a alguns tipos de câncer e males hereditários. Será que é possível – e desejável – que usemos nas pessoas o mesmo princípio do melhoramento canino de agora? Em tese, um casal em posse desse conhecimento pode escolher o sexo ou a cor dos olhos de um filho antes da concepção.
A comunidade científica afasta a adoção da lógica do canil em famílias humanas. “Em breve o médico vai ter condição de alertar um casal que tiver o gene de uma doença e orientá-lo a não ter filho”, diz Denise de Andrade Oliveira, pesquisadora de melhoramento animal da UFMG. “Mas ainda assim a pessoa pode tomar a decisão de ter o filho ou não. Em animais você pode não acasalar, ou até matar”. Segundo a cientista, a ética na área humana é distinta. “Tem o peso da sociedade, da igreja etc.”, afirma.
Em reportagem sobre o aprimoramento genético dos whippets, o jornal americano The New York Times ouviu cientistas interessados em testar os atletas para tentar descobrir se há algo no DNA que explique pessoas supervelozes, como os cachorros. O que será feito desse conhecimento é uma incógnita. “Estamos próximos a uma mudança radical na maneira que aplicamos a genética na nossa sociedade”, disse Mark Neff, geneticista da Universidade da Califórnia. “É melhor que sejamos confrontados primeiro com os problemas quando eles envolvem nossos bichos de estimação do que quando eles dizem respeito à gente.”
Cãokenstein
Como a mão dos criadores molda as raças de cachorro
Dogo argentino
Um verdadeiro supercão de guarda. Na “receita” da raça estão o dogue alemão (para a altura), o pointer (para o bom faro), o irish wolfhound (para a rapidez) e o bóxer (para a força).
Pharaoh hound
Uma obra de arte. Pensava-se que era uma raça antiga, pois uma cabeça igual aparece em pinturas egípcias. Na verdade, criadores europeus desenvolveram a variedade só pela diversão estética.
Bloodhound
Raça criada há 1 000 anos, mistura de cães com narinas muito abertas. É a raça que tem o melhor olfato e até hoje é usada na polícia para rastrear criminosos – consegue identificar o cheiro humano mais de 4 dias depois.
Springer spaniel
É um bom exemplo de como a criação “incestuosa” pode perpetuar doenças dentro de uma raça. Esse spaniel costuma desenvolver epilepsia, hérnia de disco, displasia da retina e surdez.
Jack Russel terrier
Foi desenvolvido no século 18, com patas curtas, para caçar raposas (ele entrava na toca delas). Recentemente virou moda nos haras do Brasil, pois o cão persegue os ratos que atormentam os cavalos.
Dobermann
Um coletor de impostos alemão ficou 30 anos cruzando raças de cachorros bravos até conseguir o dobermann para intimidar os devedores. Foi usado pelos nazistas e virou sinônimo de cão assassino.
Para saber mais
Associação Cinológica do Brasil.