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Rachaduras nas paredes do Universo

É a maior descoberta do século: astrônomos podem ter encontrado ondas gravitacionais nos limites do cosmos. Trata-se de um belo passo para a física, e de um grande salto para compreendermos a natureza do Universo - ou melhor: a do Multiverso.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h51 - Publicado em 16 set 2014, 01h00

Rodrigo Rezende

Tire os olhos desta tela. Olhe para os lados, para cima, para baixo. Consegue ver o Sol, um pedaço do céu? Ou a vista trava na parede, num móvel da sua casa? Não importa. Em todas as direções para as quais olhou agora, você viu a mesma coisa: o passado. Está aí uma verdade fundamental que costumamos esquecer: a luz que sai dos objetos demora um tempo até chegar aos nossos olhos. Você acha que lê esta frase impressa aqui agora. Mas a imagem dela está no mínimo meio bilionésimo de bilionésimo de segundo no passado. E o Sol lá em cima na realidade não é o Sol. É só uma “fotografia” que viajou 150 milhões de quilômetros e demorou oito minutos para chegar na sua retina. A ideia de que o presente é invisível pode ser estranha, mas até que é simples de entender – a luz que um objeto produz ou reflete leva tempo para chegar até os seus olhos. Mas agora imagine que você é capaz de enxergar infinitamente longe. E que sua visão não é bloqueada por nenhum objeto. Nesta situação, sabe o que veria em todas as direções? Basicamente o mesmo ponto.

OK, essa última ideia não foi tão óbvia assim. Mas raciocine novamente. Se, quanto mais longe olhamos, mais avançamos no passado, ao olhar infinitamente longe só poderíamos ver uma coisa: o ponto mais antigo do cosmos. Ou seja, a “explosão” que criou nosso Universo há 13,8 bilhões de anos, mais conhecida pelo nome de Big Bang. Isso parece bem lógico, não? Só que é impossível de acontecer. Isso porque, na época do Big Bang, não havia nada que um olho pudesse enxergar – ainda que esse olho não fosse humano, e sim um telescópio. É que a luz ainda não existia. Bom, “luz” é só um nome poético que damos para certas ondas eletromagnéticas (as que os nossos olhos conseguem captar). O fato é que não existia onda eletromagnética nenhuma – nem luz visível, nem raios X, nem ultravioleta. Nada. Esse tipo de onda só surgiu 380 mil anos após o nascimento do Universo, quando a temperatura da grande explosão esfriou. Com o resfriamento, os prótons e elétrons soltos no espaço se uniram e formaram átomos. Desse encontro entre as partículas, nasceram as ondas eletromagnéticas. Elas aproveitaram a expansão cósmica e o tamanho reduzido do Universo para se espalhar por todos os pontos do cosmos. Hoje elas formam uma espécie de radiação quase uniforme, que está presente em todos os lugares do Universo, coisa que os astrônomos chamam de radiação cósmica de fundo. Olhe para o infinito e você verá esse mesmo eco do Big Bang, o ponto mais profundo da história do cosmos a que os humanos têm acesso.

Mas onde fica esse limite, essa “parede” visível do Universo? Imagine que toda a história do cosmos tenha apenas um dia, e que estamos agora exatamente 24 horas depois do Big Bang. Neste caso, a parede do Universo (ou radiação cósmica de fundo, como preferir) ficaria apenas 2,5 segundos após a grande “explosão”. Mas, por mais formidável que fosse enxergar tão perto do início, os físicos ainda não estavam satisfeitos. Queriam mais. E havia um motivo importante para isso. Eles desconfiavam que, dentro naqueles 2,5 segundos entre o início de tudo e o nascimento das primeiras ondas eletromagnéticas, havia ocorrido um fenômeno sem paralelo na história do Universo: a inflação cósmica.

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Há 13,8 bilhões de anos, o Universo era pequeno. Cabia com folga na ponta de um alfinete. Muita folga: tudo o que existe hoje estava concentrado num ponto do tamanho de uma partícula subatômica. O Big Bang propriamente dito é a fração de trilionésimo de segundo em que o Universo surgiu do nada até ele ficar do tamanho de uma partícula. O que aconteceu depois disso foi algo bem mais espetaculoso: a partícula começou a crescer numa velocidade inimaginável – muito, muito, muito maior que a da luz. Parece impossível, mas não é. Sim: Einstein descobriu em 1905 que nada pode se mover mais rápido que a luz através do espaço. Mas isso não impede que O PRÓPRIO ESPAÇO se mova mais rápido que a luz. Não impede que as paredes do cosmos cresçam a uma velocidade absurda, porque do lado de fora dessas paredes nem existe um lado de fora, não existe nada, nem vácuo. Em suma: o espaço não se move através do espaço, então para ele não existe limite de velocidade.

Bom, o fato é que, de uma hora para outra, o Universo cresceu tão rápido que, numa fração de batida de asa de beija-flor, ele passou do tamanho de um próton para algo bem grande – com metade do tamanho que ele tem hoje. Isso foi a inflação cósmica.

A existência desse período de crescimento vertiginoso é só uma teoria, mas tão bem aceita que muitos cientistas dedicam a vida a estudá-la, seja resolvendo equações, para estudar a matemática da expansão, seja de um modo mais direto: procurar algum sinal dessa inflação descontrolada impresso na “parede” visível do Universo.

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Foi com esse objetivo em mente que o cientista John Kovac viajou 23 vezes aos confins da Terra. “O Polo Sul é o mais perto que se pode chegar do espaço com os pés no chão”, disse Kovac. Armado com uma série de radiotelescópios ultrassensíveis, o cientista e sua equipe tiraram proveito da atmosfera seca e límpida do polo para fazer uma das maiores descobertas da física moderna: a fronteira visível do Universo não é completamente lisa e uniforme. Ela possui imperfeições e ondulações, como as rachaduras nas paredes da sua casa. Essas ondulações representariam uma espécie de eco da fase inflacionária do Universo. Isso soa como um resultado modesto e discreto. Mas causou furor entre os cientistas.

“Não é todo dia que você acorda e aprende algo novo sobre o primeiro trilionésimo de trilionésimo de trilionésimo de segundo após o Big Bang”, diz o cientista da Universidade Johns Hopkins Marc Kamionkowski. “Não é preciso ser cosmólogo para achar isso bacana”. O entusiasmo se estende à equipe de Kovac. “O mundo da física é lotado de gente que passa a vida procurando coisas que não existem”, afirma o integrante do estudo Clement Pryke. “Nós procurávamos uma agulha no palheiro, e achamos um pé de cabra”. Um pé de cabra serve para abrir portas trancadas. É exatamente isso o que o estudo faz com relação à história do Universo, já que ele chega um milhão de bilhão (repita “de bilhão” quatro vezes) mais próximo do começo do Big Bang que tudo o que já se publicou até hoje. E as perspectivas que o estudo abre para a física de partículas (que trata do muito pequeno) colocam o “maior experimento do mundo” no chinelo. A partir de ondulações na parede do cosmos, pode ser possível estudar o mundo subatômico. Sim, porque, se elas se formaram mesmo durante a inflação cósmica, trata-se de fósseis do tempo em que o Universo todo era do tamanho de uma partícula.

Poder estudar o infinitesimal usando telescópios capazes de enxergar os limites do cosmos já é algo poético o bastante. Mas não fica nisso: o estudo também torna cada vez mais palpáveis ideias teóricas e conceituais ainda consideradas como especulação para a maioria dos cientistas. Duas delas, em especial, ganharam fôlego com a descoberta.

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A primeira ideia é o Santo Graal de dez entre dez físicos: a teoria do tudo. Ainda não existe uma física que realmente explica o mundo. O que existe de fato é uma espécie de muro de Berlim que separa a física em duas partes: o domínio das escalas astronômicas (controlado pela teoria da relatividade de Einstein, que nada mais é do que a versão mais moderna da física tradicional, cujas bases foram fincadas por Isaac Newton no século 17) e o mundo das grandezas infinitesimais (que obedece aos princípios da física quântica). As regras do mundo das coisas grandes não se aplica ao das muito pequenas – neste último, por exemplo, o mesmo objeto pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. No nosso mundo, o das coisas grandes, isso seria mágica – violaria as leis da física. No mundo infinitesimal, não: estar em vários lugares ao mesmo tempo é a lei. Eis o muro entre a física quântica e a relatividade.

Destruir esse muro e fazer da física algo integrado e completo, em que um único “código de leis” baste para explicar o domínio das escalas astronômicas e o dos átomos, era o sonho de Albert Einstein. Mas, para que isso seja possível, é preciso entender como a matéria se comporta quando grandezas astronômicas são comprimidas em espaços subatômicos. E isso acontece exatamente em situações como as que o estudo de Kovac ilumina. Num ponto bem próximo do Big Bang, é possível observar como as quatro forças fundamentais do Universo surgem e se comportam. Três dessas forças fundamentais já são explicadas pela física: o eletromagnetismo (que mantém os ímãs presos na geladeira e que faz sua mão doer se você dá um soco na mesa, graças à repulsão eletromagnética entre os átomos da sua mão e os da madeira), a força nuclear forte (que organiza o núcleo atômico) e a força nuclear fraca (que age na periferia do átomo). “Explicadas”, nesse caso, significa dizer que sabemos que todas elas são formadas por ondas. A própria luz é uma manifestação em forma de onda de uma dessas forças, o eletromagnetismo. Só que uma delas ficou de fora da festa: a gravidade. Ninguém nunca tinha detectado as ondas que deveriam formá-la. No caso, as ondas gravitacionais – algo que foi proposto por Einstein, mas jamais observado na realidade.

Mas isso só até agora, pois as ondas gravitacionais finalmente entraram em cena. Segundo o time de Kovac, as cicatrizes na parede visível do cosmos provavelmente são ondas gravitacionais. O novo estudo é a primeira evidência de que essas entidades também existem fora da cabeça do gênio alemão. E de que a queda do Muro de Berlim da física ficou mais próxima – saber que a gravidade também é formada por ondas é um grande passo nessa direção.

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Já a outra teoria extrapola os limites deste Universo. Imagine que nosso cosmos não está sozinho. Ele é apenas mais um em meio a infinitos Universos. É o que diz a teoria do Multiverso, talvez a mais ousada hipótese científica já concebida. Ousada, porém coerente. Pois não há nada na física que contradiga a existência do Multiverso. Ele está de acordo com os princípios einsteinianos de que vivemos num mundo composto de um tecido único, que engloba o tempo e o espaço juntos. É nesse tecido de espaço-tempo que viajam as ondas gravitacionais. E o espaço-tempo não é uma entidade estática, imutável. Ele cresceu junto com o Big Bang. E foi vítima de oscilações bruscas causadas por ondas gravitacionais que surgiram na época em que o Universo era muito instável. É exatamente a imagem de instabilidade que o cientista da Universidade de Stanford Andrei Linde evoca para dar ideia de como era viver no Universo inflacionário: “Se alguém anda se equilibrando numa ladeira, talvez caia para um lado ou para o outro. Agora, se o sujeito anda bêbado, irá cair de um jeito ou de outro. A inflação causa mais ou menos isso: a instabilidade com relação à expansão do espaço”. Ou seja: no Universo inflacionário, vários “pedaços” do Universo andavam meio trôpegos pelo tecido do espaço-tempo em expansão. E as violentas ondas gravitacionais que eram criadas a todo instante funcionavam como bebida destilada. Alguns pedaços do cosmos tomavam muito dessas ondas. E o porre de gravidade às vezes causava tombos tão fortes que rasgavam a própria “pele” do Universo – o tecido espaço-tempo, em termos técnicos. Esses “pedaços bêbados” se deslocavam e viravam bolhas em expansão: Universos-filhotes que continuavam a se expandir. Aquilo que você vê pela janela à noite é um desses Universos-filhotes. Nosso Universo, se a teoria estiver certa, é só um entre os zilhões de filhos do Big Bang. E inflação cósmica teria funcionado como uma espécie de cegonha cosmológica, entregando cada vez mais Universos ao Multiverso. “Se a inflação cósmica existe, o Multiverso também existe”, afirma Linde, que também é um dos criadores da teoria da inflação.
O achado dos pesquisadores do Polo Sul indica que, sim, a inflação cósmica provavelmente está lá. Logo, talvez tenhamos uma infinitude de Universos irmãos flutuando pelo Multiverso. E não é demais imaginar que, em alguns deles, deve haver seres exatamente no mesmo ponto de evolução científica que nós. E é provável que, assim como nós, eles estejam observando agora mesmo marcas nas paredes do Universo deles. E passando também por um momento singular em sua jornada pela existência: o momento em que conseguem contemplar as estrias deixadas por um parto cósmico.

O Big Bang continua big-bangando

Por Alexandre Versignassi

A radiação cósmica de fundo, estrela desta reportagem, é a maior evidência do Big Bang, como você pode ler aí ao lado, mas não fica nisso: ela também indica que o senso comum não entende o que realmente foi o Big Bang. Pois é. Para começar, a explosão que deu origem ao Universo não foi uma explosão. Ela AINDA É uma explosão. O Big Bang continua big-bangando, porque o cosmos continua expandindo. E cada vez mais rápido. Vivemos dentro de uma “explosão controlada”. Mais importante: o Big Bang não aconteceu em algum lugar distante nas profundezas do cosmos. Ele aconteceu exatamente aí, onde você está agora. Ele aconteceu em Guarulhos, em Júpiter e na sua testa. Ao mesmo tempo. É que, há 13,8 bilhões de anos, tudo o que existe hoje, aqui, no céu, na Crimeia ou na sua cabeça, estava espremido no mesmo ponto. E do lado de fora desse ponto não existia um “lado de fora”. Não existia nada. Todo o espaço e tudo o que preenche o espaço estava contido lá. Tudo mesmo: da energia que forma os átomos do seus cílios ao espaço físico que separa São Paulo do Rio – ou a Via Láctea da Galáxia de Andrômeda. Tudo bem apertado, numa quantidade de espaço que caberia na ponta de um alfinete. O Big Bang foi a expansão dessa quantidade de espaço. E ainda é.

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