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Sakharov – Dos átomos aos homens

O cientista soviético que encarnou a consciência moral de seu país, na defesa dos direitos humanos, foi também um mestre da Física. Ele antecipou em um quarto de século as mais avançadas teorias sobre a matéria e o Universo.

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Atualizado em 31 out 2016, 18h50 - Publicado em 31 ago 1990, 22h00

Luiz Weis e Flávio Dieguez

A coragem política e a integridade do físico soviético Andrei Sakharov, falecido no fim do ano passado fizeram dele o campeão da luta pelos direitos humanos em seu país. A tenacidade com que resistiu a toda sorte de provações, como os sete anos de confinamento numa cidade proibida a estrangeiros, a 400 quilômetros de Moscou, ajudou a transformá-lo numa das mais respeitadas autoridades morais do mundo contemporâneo. Paradoxalmente, o renome do ativista e pensador ainda hoje impede que se enxergue o gênio científico, à altura dos maiores criadores do século. Seu feito mais divulgado foi o de ter resolvido um formidável problema de ordem prática — projetar a bomba de hidrogênio soviética. Mas as páginas menos conhecidas da obra de Sakharov incluem investigações de grande originalidade, relacionadas com a origem da matéria e do Universo.

Formuladas inicialmente há 25 anos, suas idéias acabaram antecipando teorias as mais avançadas, como as que se propõem a unificar as forças fundamentais da natureza—o Santo Graal das pesquisas de ponta em Física. Além disso, foi o precursor dos reatores de fusão nuclear. Sua primeira proeza teórica foi explicar, em 1966, por que não existem estrelas e planetas de antimatéria. Uma espécie de antípoda dos átomos comuns, a antimatéria já era produzida com certa facilidade nos laboratórios — por que então não se podia encontrá-la na natureza? Sakharov sugeriu que, num passado remotíssimo, matéria e antimatéria se aniquilaram mutuamente na que terá sido a maior hecatombe da história universal. A antimatéria foi consumida por completo desaparecendo do Cosmo. Restou um espantoso, embora ínfimo, resíduo de matéria comum, equivalente a 0,5 bilionésimo da massa original do Universo. Todas as galáxias, estrelas e planetas existentes, sustentou Sakharov, teriam sido recicladas a partir desse resíduo primordial. Mas e esse misterioso resíduo, por que sobreviveu? Porque, antes do holocausto cósmico, respondeu o físico, matéria e antimatéria sofreram a ação de um processo que os cientistas não haviam concebido—a desintegração dos prótons, com a diferença de que os prótons de antimatéria se desintegravam um nada mais depressa do que os de matéria. Resultado: em dado instante da gênese do Universo, pressupôs Sakharov a partir de cálculos de apropriada complexidade, para cada bilhão 3 de antiprótons havia um bilhão e um; próton. Hoje, os físicos estão convencidos de que as coisas realmente se passaram assim. Um dos motivos pelos quais esse trabalho de gigante permaneceu à sombra foram as muitas atribulações da vida do cientista.

Desde o nascimento, em 1921, quatro anos depois do terremoto da Revolução comunista, Sakharov cresceu numa cidade, Moscou, onde se respirava uma atmosfera de constante agitação, com todas as tragédias e as esperanças que tais acontecimentos suscitam. Filho de uma bem-sucedida família kulturny, como dizem os russos de pessoas que apreciam a cultura, passou a infância, em clima de relativa tranqüilidade para a época e recebeu uma sólida formação básica. Aos 4 anos, já tentava ler por conta própria, mas só foi freqüentar a escola aos 12. Aprendia em casa com a ajuda do pai, Dimitri, professor de Física e autor de livros didáticos e de divulgação científica, e da mãe, Ekaterina, professora universitária de Ginástica.

O jovem Andrei lia—lia muito. Desde Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas, a Fausto, de Goethe e a Hamlet, de Shakespeare. Mas gostava especialmente da ficção científica de Júlio Verne, da qual diria mais tarde tratar-se de “um tributo ao engenho humano e ao poder da ciência”. Esses anos felizes desabaram com a Segunda Guerra Mundial. Recém-formado, já casado (com a química Klava Vikhereva) e pai de Tânia, sua primeira filha—o casal teve outra menina e um menino—, sofreu com a fome que devastava o país invadido em 1941. Não tinha sequer residência certa: os bombardeios alemães haviam destruído a casa onde ainda vivia com os pais. A própria Universidade de Moscou, onde obtivera o diploma de físico em 1942, teve de ser evacuada e transferida para Ashkhabad, capital da desértica, remota República Turcomana, na Ásia Central.

A carreira de Sakharov começaria bem longe dos meios acadêmicos. Seus talentos seriam aproveitados (escassamente) numa metalúrgica militar em Ulianovsk, às margens do Rio Volga, a quase 1000 quilômetros de Moscou. “Trabalhávamos em dois turnos de onze horas diárias, sete dias por semana”, conta Sakharov em suas memórias, publicadas há poucos meses. Embora tivesse formalmente as funções de engenheiro, nos primeiros meses o físico exerceu uma variedade de tarefas, desde lenhador a chefe de turma na linha de produção. Mesmo assim, sonhava com altas Matemáticas. Enquanto picava repolho, por exemplo, imaginava uma lei capaz de dar conta da forma das fatias cortadas. À noite, sacrificava o pouco tempo de descanso para estudar Física teórica. Querendo exercitar o espírito inventivo naquelas duras condições, acabou criando quatro novos aparelhos destinados a aprimorar o controle de qualidade na metalúrgica.

Alto, magro, sempre curvado, o que o fazia parecer mais velho, sabia ser educado e paciente apesar das ásperas circunstâncias. Dessa experiência provavelmente reteve um hábito “que me ajudava a pensar”, como explicaria: lavar a própria louça depois das refeições, algo que, na radicalmente machista sociedade soviética, ainda é tarefa exclusiva de mulher, mesmo que ela ostente mais títulos acadêmicos que o marido. Passado algum tempo, Sakharov recebeu uma tarefa mais adequada às suas aptidões: pesquisador no laboratório da fábrica. Ali conheceu a mulher com quem voltaria casado a Moscou em 1944. Mas só começou a melhorar de vida cerca de dois anos mais tarde, quando conseguiu um lugar no Instituto de Física da Academia de Ciências, uma das importantes instituições soviéticas de pesquisa. Ali, há trinta anos, antes de qualquer outro país, começou-se a investigar o laser.

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Sakharov pôde, finalmente, estabelecer residência e dedicar-se a estudos de alto nível. Ainda estava dando os primeiros passos nesse novo patamar quando o físico Igor Tamm (Prêmio Nobel em 1958 por sua teoria sobre um novo tipo de radiação, descoberta, por sinal, na URSS) convidou-o a trabalhar no projeto da bomba de hidrogênio. À medida que se ampliava a guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética, Washington e Moscou aceleravam as pesquisas com armas nucleares. Quatro anos depois das bombas A que os americanos lançaram sobre o Japão em 1945, os soviéticos testaram com êxito um artefato semelhante. Mas o alvo das duas superpotências era já mais ambicioso: a bomba H.

A corrida armamentista acabou sendo decisiva para a trajetória de Sakharov—primeiro, como cientista, depois, como dissidente. Ele passou quase vinte anos praticamente confinado numa instalação secreta, embora próxima da capital, muitas vezes isolado da própria família. Sua tarefa era digna dos cérebros mais bem dotados: decifrar os enigmas da fusão termonuclear, a fonte de energia das estrelas—e também das bombas de hidrogênio. Ele estava, portanto, junto do primeiríssimo time científico da URSS, no qual se destacavam pesquisadores como o astrofísico Iacov Zeldovich.

Milhares de vezes mais violenta, a fusão é o oposto da fusão, cujo domínio tornou possível tanto a bomba A como as usinas nucleares para a produção de eletricidade. Nestas, quebram-se átomos pesados, como os de urânio, para aproveitar a energia que os mantinha unidos. Durante a fusão, ocorre o contrário: dois átomos leves, como os de hidrogênio, são comprimidos até seus núcleos se fundirem num só. O processo é mais violento porque os átomos resistem à fusão e, quando cedem, libertam vastas quantidades de energia.

Sabe-se pouco do projeto da bomba H soviética. Mas tem-se como certo que a chave para o seu funcionamento foi uma descoberta de Sakharov, ainda em 1948, até hoje mantida em segredo. Segundo ele mesmo relataria, sem entrar em detalhes, em poucos dias “a misteriosa fonte de energia das estrelas estava ao alcance das minhas mãos”. Seu papel crucial na operação foi atestado pelas congratulações especiais que recebeu do governo soviético no mesmo dia em que a bomba explodiu, 12 de agosto de 1953. (A primeira bomba H americana havia sido detonada em novembro de 1952.) Alguns meses depois, com a idade de 32 anos, tornou-se o mais jovem membro do Olimpo intelectual do país—a Academia de Ciências da União Soviética. Nem esta, nem outras honrarias, porém, perturbaram seu modo de ser. Continuou a vestir-se modestamente e até o fim da vida habitou em Moscou um pequeno apartamento de dois quartos, um dos quais usava como escritório. O governo deu-lhe de presente uma dacha (casa de campo) e pagou-lhe altos salários. No fim dos anos 60, seu saldo bancário equivalia a 150 000 dólares—uma fortuna, para a época e para o país. Doou tudo a instituições de pesquisa e tratamento de câncer em seguida à morte prematura da mulher, com menos de 50 anos, vítima da doença.

Havia enfrentado a tarefa de fazer a bomba com o genuíno entusiasmo de um cientista diante dos desafios da natureza. Não era para menos. A física das explosões nucleares era vista então, como um paraíso para os teóricos. Ela Ihes permitiria, pela primeira vez, equacionar o comportamento da matéria quando sua temperatura alcança milhões de graus centígrados. Além da bomba, os fenômenos nesse campo levariam também aos primeiros reatores de fusão. Eldorado das fontes de energia do futuro, essas máquinas, seguras e limpas, consumiriam o combustível mais abundante do planeta—a água. Todos os três modelos em desenvolvimento no mundo foram sugeridos em primeiro lugar por Sakharov, no início dos anos 50. O problema desses projetos consiste em forçar os átomos a se unir. Nas estrelas, o próprio peso das camadas externas esmaga a matéria subjacente até ocorrer a fusão. Como alternativa, o cientista inventou uma espécie de torniquete magnético de nome tokamak (sigla em russo de “câmara magnética toroidal” ). A idéia básica do físico era privar os átomos dos seus elétrons para torná-los suscetíveis à ação de grandes ímãs. Estes poderiam então confiná- los num espaço cada vez mais apertado de modo a obrigar seus núcleos à fusão.

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O tokamak dominou largamente as pesquisas na áreas em muitos países. A Universidade de São Paulo, por exemplo, tem um desses equipamentos. Mas os dois outros sistemas imaginados por Sakharov também se difundiram amplamente nos últimos anos. Um deles lança mão de raios laser para comprimir os átomos. O outro emprega a fusão a frio, mas é diferente das propostas que têm provocado intensa polêmica—e muitos narizes torcidos—nesse campo: sugere substituir os elétrons dos átomos por uma partícula semelhante, porém mais exótica e mais pesada, chamada múon. Em combinação com o trítio e o deutério, átomos semelhante aos do hidrogênio, o múon forma um átomo 200 vezes menor que os originais. Dessa maneira, aproxima os núcleos atômicos e tende a propiciar a fusão sem necessidade de pressões e temperaturas elevadas. Esse trabalho revelou o empenho de Sakharov em desviar a energia nuclear das aplicações puramente militares. O cientista preocupara-se desde o início com os resíduos tóxicos das bombas—a poeira radioativa que deixava à superfície do planeta um persistente legado de morte. Cedo ou tarde, segundo as suas contas, 10 000 pessoas morreriam em decorrência de uma explosão de um artefato de 1 megaton, equivalente a 1 milhão de toneladas de dinamite. Como o poder total das bombas detonadas até 1957 já alcançava 50 megatons, 500 000 pessoas estavam seriamente ameaçadas. Moscou alardeava a possibilidade de construir bombas de 100 megatons cada e Washington certamente não ficaria atrás. Obstinadamente. como seria a marca de seu comportamento nos embates futuros. Sakharov enfrentou de peito aberto a resistência dos próprios pares e dos dirigentes soviéticos, convencidos de que só uma nítida superioridade nuclear dissuadiria os americanos de atacar a URSS. Menos testes e sempre subterrâneos—eis a palavra de ordem do cientista.

Cada vez mais atritado com o Kremlin, deixou de trabalhar com os militares e voltou ao Instituto de Física, em 1965. Logo em seguida à morte da mulher, em 1968, ligou-se à médica de origem judaica Elena Bonner, uma experiente ativista em favor dos direitos civis. A despeito da viagem sem volta que tinha começado a empreender ao território da política, Sakharov aprofundou sem cessar a investigação do mundo físico. Havia iniciado pela fusão, que se passa no interior dos núcleos atômicos, em espaços da ordem de 1 quadrilionésimo de milímetro. Mais tarde, pesquisou a desintegração do próton, que ocorre numa escala um bilhão de vezes menor que a do núcleo atômico—algo que se pode expressar em fórmulas, mas está definitivamente fora do alcance da compreensão humana e, na natureza, só poderia ser observado na explosão primordial que deu origem ao Universo.

A partir de 1975, passou a perseguir um objetivo ainda mais ambicioso: reescrever as equações de Einstein sobre a gravitação. Sakharov sugeriu serem elas conseqüência dos pressupostos da Física Quântica—uma idéia que traumatizaria o velho Einstein, para quem, como se sabe, a gravitação era o fenômeno fundamental do comportamento da matéria. A empreitada de Sakharov se assemelhou ao esforço teórico do físico inglês Stephen Hawking em relação aos buracos negros—ambos radicados na fronteira mais avançada do conhecimento humano sobre o Universo. As elocubrações de Sakharov prometiam resultados cada vez mais estimulantes. Mas ele não teve tempo de alcançar esse objetivo que a outros poderia parecer tão inacessível a ponto de fazê-los arrepiar carreira a meio caminho. Aos 68 anos, foi impedido de avançar: o coração o matou durante o sono na noite de 14 dezembro de 1989.

O que mais surpreende no percurso político de Andrei Dimitrievich Sakharov não é a transformação do criador da bomba H soviética, portador da condecoração de Herói do Trabalho Socialista, em inimigo do regime. O que chama a atenção são os longos anos durante os quais, mesmo sem ter sido membro do Partido Comunista, ele deu o melhor de si ao sistema que viria a abominar. “Eu estava a par dos crimes horríveis que se cometeram”, admitiria. Três tios e um primo do cientista morreram, em circunstâncias diversas, enquanto estavam presos por alegados delitos políticos. Apesar de tudo, como reconheceria honestamente, “eu me dava por satisfeito absorvendo a ideologia comunista sem questioná-la”. Um ano antes de ser convidado a participar do projeto da bomba, a KGB, a polícia secreta soviética, quis que sua mulher espionasse o que ele fazia. Tendo ela se recusado, o casal foi expulso do apartamento onde morava.

Tais partículas de terror policial não diminuíram porém o entusiasmo com que aceitou a empreitada. Sakharov era movido na época por vastas emoções e pensamentos imperfeitos: a oportunidade de escalar o Everest da nova Física atômica, a convicção de que as armas termonucleares iriam assegurar a paz no mundo, o orgulho nacionalista de estar engajado num combate científico com os Estados Unidos—em suma, a mentalidade típica da guerra fria, a que tampouco estiveram imunes muitos cientistas americanos. Talvez por isso guardasse para si fosse lá o que Ihe pudessem provocar os fatos da vida na URSS daqueles anos de stalinismo, desde a obrigação de submeter à censura prévia artigos para publicações científicas até algo incomparavelmente pior—os trabalhos forçados.

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Com efeito, a “Instalação”, o conjunto secreto de laboratórios, campos de provas e alojamentos onde trabalharia dezoito anos na pesquisa de armas nucleares, tinha sido construída por presos de um campo vizinho. “Todas as manhãs, longas colunas cinzentas de homens vestindo jaquetas forradas, cães de guarda nos calcanhares, passavam por nossas janelas”, conta em suas memórias. Não obstante, quando Stálin morreu, em 1953, Sakharov escreveu à mulher: “Estou sob o impacto da morte de um grande homem. Penso na sua humanidade”. O cientista iria se envergonhar dessas palavras, porém jamais conseguiria explicá-las satisfatoriamente a si mesmo. As primeiras sementes de descontentamento foram plantadas por seus conhecimentos científicos sobre os efeitos da radioatividade e pela consciência moral que o problema Ihe despertava. Cada vez mais contrário aos testes atômicos na atmosfera, suas opiniões levaram-no a um curso de colisão com o governo soviético. Em 1961, por exemplo, ouviu do líder Nikita Kruschev, numa solenidade, que estava “enfiando o nariz onde não devia”. Desde então, embora nada Ihe sucedesse pessoalmente, sua distância do regime só faria aumentar—dessa vez por outros motivos. De um lado, sob Leonid Brejnev, o Kremlin voltou a tratar com dureza os intelectuais dissidentes. De outro, o cientista passara a encarar o mundo com novos olhos.

O resultado foi o manifesto Reflexões sobre o progresso, a coexistência pacífica e a liberdade intelectual, escrito nos primeiros meses de 1968. Logo publicado no exterior, o texto faria Sakharov famoso internacionalmente e representaria o penúltimo passo da caminhada rumo à ruptura com o sistema. Nele, condenou a intolerância e o dogmatismo, advogou a democracia e o pluralismo político. O documento não poderia ter sido mais pertinente: a 21 de agosto daquele ano, tropas soviéticas entraram em Praga para depor o governo que tentava implantar na Checoslováquia o “socialismo de face humana”. Era o que faltava para Sakharov, definitivamente desiludido, voltar-se plenamente à causa dos direitos humanos —e pagar caro por isso.

A passagem do campo da reflexão política para a ação em defesa dos perseguidos do regime foi franqueada também por seu convívio com a militante Elena Bonner, com quem se casaria em 1972. As pressões sobre o cientista-ativista cresceriam na mesma medida de seu engajamento. Em 1975, contemplado com o Prêmio Nobel da Paz, proibiram-no de ir a Oslo, na Noruega, para receber a honraria, entregue afinal a Elena. O pior, no entanto, estava por vir: a invasão do Afeganistão em fins de 1979, inaugurou o mais sofrido período de sua vida, que incluiria até duas greves de fome. Despojado de seus títulos, Sakharov foi confinado em 1980 na cidade de Górki. Ali ficou até a antevéspera de Natal de 1986, sempre sob estrita vigilância da KGB que fazia o possível para infernizar-lhe a vida, a ponto de roubar (mais de uma vez) os manuscritos de suas memórias. Foi Gorbachev quem acabou com o exílio do casal. “Volte a seu trabalho patriótico”, instou o dirigente soviético, ao telefonar a Sakharov para informá-lo de que podia regressar a Moscou.

Embora manifestasse apoio às reformas da perestroika e considerasse Gorbachev um “líder inteligente”, tinha uma noção diferente deste do que deveria ser um trabalho patriótico. Na URSS e no exterior, seus pronunciamentos contra o regime soviético não se alteraram. Eleito para o Congresso dos Deputados do Povo, em 1988, juntou-se ao time de parlamentares que, sob a inócua designação de Grupo Inter-regional, formou-se com a intenção de ser o embrião de um novo partido, tornando-se seu principal membro. Sakharov, sabe-se, era muito mais do que isso. E a simples verdade é que sua morte empobreceu, além da ciência, a vida política na União Soviética.

Para saber mais:

Einstein, o homem que mudou o mundo

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(SUPER número 11, ano 1)

A crise chega à ciência

O sistema científico que produziu um Andrei Sakharov coexiste com um paradoxo que pode ser apresentado em números como convém ao assunto. De cada quatro cientistas do mundo, por exemplo, um é soviético. Mas os americanos ficaram com 137 dos 370 prêmios Nobel já conferidos; os soviéticos, com apenas dez. Proporcionalmente às respectivas populações, no entanto, a URSS diploma todo ano duas vezes mais universitários do que os Estados Unidos. É claro que só a quantidade de troféus não mede o valor real do saber produzido num pais, assim como o grande número de pesquisadores não é em si sinônimo de boa pesquisa.

No passado, o peso da ciência soviética era maior—outra face do mesmo paradoxo. Nas décadas de 30 e 40, apesar do terror stalinista e do horror da guerra, os soviéticos foram os primeiros a estudar a fonte de energia das estrelas; a origem dos átomos químicos durante o nascimento do Universo; os raios laser; os reatores de fusão nuclear; a ação da eletricidade nos metais, base para a futura invenção do computador; e o fenômeno da supercondutividade, que permite transmitir corrente elétrica sem perda de energia. Pesquisas de vanguarda foram conduzidas por cientistas de renome mundial do quilate do físico Lev Landau, falecido em 1968, do químico Nicolai Semenov ou do matemático Izrail Gelfand.

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Atualmente, os mais conhecidos pesquisadores soviéticos são homens já de alguma idade. O próprio Sakharov foi um exemplo disso, assim como o seu amigo, Iacov Zeldovich, um dos grandes mestres da Astrofísica, e o físico Piotr Kapitsa, um dos criadores dos veículos espaciais soviéticos. A URSS ficou nitidamente atrás do Japão e dos Estados Unidos em áreas criticas de ciência e tecnologia como Informática, Telecomunicações e Engenharia Genética. A perda de vigor da ciência soviética acabaria espelhando a crise geral do país—algo que Sakharov não se cansou de denunciar.

Uma pessoa obsessiva

Por José Goldemberg

Tive o primeiro contato pessoal com Andrei Sakharov em janeiro de 1988, em Moscou, durante a instalação do Comitê para a Segurança e o Desenvolvimento Mundial, integrado por cientistas de vários países. Aguardei o encontro com emoção, mas minhas relações com ele foram sempre muito difíceis. Um grande cientista, Sakharov era também um homem obsessivo. Dentro do comitê, por exemplo, preocupava-se o tempo todo com os direitos civis do povo armênio. Mas não achava igualmente importante defender os direitos civis dos povos da América Central. Também fiquei chocado com sua posição em favor de Edward Teller, que dirigiu a construção da bomba de hidrogênio americana, nos anos 50. Na época, Teller enfrentou a oposição de Robert Oppenheimer, que propunha retardar ar a produção da bomba H. Sakharov acreditava que Oppenheimer estava errado. Mas, para derrotá-lo, Teller denunciou-o como comunista numa época de caça às bruxas nos Estados Unidos. Uma atitude indefensável, na minha opinião.

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