Ronaldo Rogério de Freitas Mourão
Em 1760, o escritor e teólogo inglês Thomas Herbert Barker (?-1837), depois de estudar os textos dos autores clássicos, observou que a atual cor branco-azulada da estrela Sirius na constelação do Cão Maior não correspondia à descrita pelo astrônomo grego Cláudio Ptolomeu (viveu entre 90 e 160 d.C.) na sua obra Almagesto, onde cataloga 1 022 estrelas. Ali, Sirius consta entre seis outras designadas hypokirros. Ainda que este nome signifique “amarelo”, cinco das seis estrelas relacionadas eram avermelhadas, como por exemplo Arcturus, Aldebaran, Pollux, Antares e Betelgeuse.
No início da era cristã, o estadista e filósofo romano Sêneca (4 a.C.-65 d.C.) escreveu: “O avermelhado do Cão é mais quente, Marte, bem mais doce e Júpiter não é vermelho”. Tal comparação com Marte e Júpiter é suficiente para sugerir que Sirius possuía uma coloração entre o laranja e o vermelho. Na mesma época, o poeta romano Horácio (65-8 a.C.) escreveu: “A estrela Cão Vermelho protege os seus filhos”. A afirmativa de Horácio não deixa dúvidas. Muitos séculos após, os astrônomos, entre eles o célebre Sir John Herschel (1792-1871), baseados no estudo de Barker, procuraram achar uma explicação para o fenômeno.
Herschel propôs, em 1839, a hipótese de que uma matéria opaca, dissolvida na atmosfera sob a forma de nuvens, ao passar entre o observador e as estrelas poderia fazer variar o brilho e a coloração de modo imprevisível. Segundo Herschel, “parece mais normal que a cor vermelha de Sirius seja provocada pela interposição de um meio material do que imaginar que, em 2 000 anos, um corpo imenso tenha sofrido mudanças tão radicais em sua constituição física”. A discussão permaneceria restrita aos círculos acadêmicos, não fosse a popularização das idéias de Barker na obra Cosmos (1845) do alemão Alexander von Humboldt. “Sirius é o exemplo de uma estrela que mudou de cor no curso da História”, afirmava ele.
Em 1893, quando foi publicada a quinta edição do catálogo Celestial Objects for Common Telescopes, havia uma nota que atribuía a classificação de Sirius como hypokirros por Ptolomeu a um erro de transcrição. A teoria da evolução estelar, aceita na época, postulava que as estrelas ao se resfriarem passavam do branco ao vermelho, e não do vermelho para o branco. Ainda assim, o intervalo de tempo calculado para tal mudança seria da ordem de dezenas de milhões de anos, e não de apenas mil anos.
Alguns astrônomos, no entanto, advertiram que esses argumentos poderiam ser perigosos, pois as teorias mudam muito rapidamente. E estavam certos: a teoria de Russell, de 1913, admite a possibilidade do reaquecimento do vermelho ao branco, por contração. Uma revisão feita em 1927 relacionou o trabalho de vinte autores clássicos e verificou que, na realidade, somente seis fazem referência à cor vermelha; os demais se referem à natureza quente de Sirius, o que pode estar relacionado aos chamados “dias de canícula” (do cão) do verão, estação que se inicia com o aparecimento da estrela do Cão Maior.
A teoria mais aceita hoje em dia é que a pequena companheira de Sirius, a anã branca Sirius B, teria transformado, por fusão, parte do hidrogênio que a circunda em hélio, provocando uma considerável expansão da atmosfera. Isso fez a temperatura cair e a cor tornar-se avermelhada, ficando igual a uma gigante vermelha. Como isso pode acontecer num intervalo de 250 anos, é possível que a coloração vermelha de Sirius, registrada pelos antigos babilônios, gregos e romanos, tenha sido, de fato, real.