Uma luz sobre o Alzheimer
A ciência está cada vez mais perto de encontrar a cura da doença que apaga a mente de mais de 20 milhões de pessoas em todo mundo.
Rodrigo Cavalcante
Certo dia você acorda e não reconhece a mulher deitada ao seu lado na cama. Recebe abraços carinhosos de estranhos que lhe chamam de pai e nem imagina de onde eles tiraram essa idéia maluca. É incapaz de lembrar passagens marcantes da sua vida – até mesmo que um dia você foi presidente dos Estados Unidos.
Essa história é real: Ronald Reagan, o ex-presidente dos Estados Unidos, não se lembra de que foi presidente. Em 1994, ele admitiu publicamente que sofria de Alzheimer, doença que ataca de forma gradativa as células do cérebro, causando perda de memória, confusão mental e mudança de comportamento, até extirpar qualquer vestígio de vida intelectual. No limite, o Alzheimer compromete a habilidade do indivíduo para andar, falar e engolir alimentos.
Em um cérebro normal, os neurônios são como luzes numa casa iluminando os aposentos e os corredores entre os quartos (as conexões nervosas que mantêm nossa mente ativa). O Alzheimer age como alguém desligando todas essas lâmpadas, levando, aos poucos, à completa escuridão. E não há nada que se possa fazer para frear a doença. Após o diagnóstico, os pacientes podem viver anos (em média, de 8 a 14) e morrem geralmente devido a complicações associadas ao mal – como uma pneumonia ou outra infecção. Segundo Maureen Reagan, filha do ex-presidente, o estado do pai piora a cada dia. E a medicina pode fazer pouco além de melhorar a qualidade de vida do paciente, da família e esperar o longo e sofrido adeus.
“Esse quadro deve mudar em cinco ou dez anos”, diz Bredley Hyman, neurologista do Hospital Geral de Massachusetts, o centro de formação dos alunos de Medicina da Universidade de Harvard. Hyman lidera um grupo de cientistas que está testando uma vacina para combater as placas beta-amilóides no cérebro, uma das proteínas responsáveis pela morte dos neurônios do paciente e possivelmente a causa da doença . Para que a vacina pudesse ser testada em animais, os pesquisadores usaram ratos transgênicos, animais programados geneticamente para desenvolver a doença. Os primeiros resultados da vacina foram surpreendentes: as cobaias não apenas deixaram de desenvolver a proteína vilã, como a vacina conseguiu limpar cerca de 70% das placas beta-amilóides existentes.
“Os dados sugerem que o mesmo pode ocorrer no cérebro humano”, diz Hyman, que publicou um artigo sobre a pesquisa na edição de março da revista inglesa Nature Medicine. “Estamos cada vez mais perto de encontrar um tratamento eficaz para bloquear a ação do Alzheimer no cérebro.”
A primeira peça desse quebra-cabeça foi encontrada em 1906 pelo neuropatologista alemão Alouis Alzheimer. Na época, ele analisou no microscópio pequenas amostras do cérebro de Auguste D., paciente que morreu aos 56 anos, depois de estar internada num hospício com crises de agressividade, distúrbios de humor e de memória. O mundo vivia o alvorecer da psicanálise e os médicos acreditavam que a demência de Auguste era fruto de uma psicose, sem nenhuma causa orgânica. Foi quando Alzheimer encontrou estranhas placas e fibras emaranhadas entre os neurônios do cérebro da paciente, provando, pela primeira vez, que ali havia muito mais do que um trauma reprimido. Apesar de a descoberta ter despertado o interesse dos médicos, a doença entrou no rol dos casos raros e curiosos, mas que não merecem ser tratados como prioridade.
Havia boas razões para isso. A maior incidência de Alzheimer ocorre em pessoas acima dos 65 anos. Em 1906, a expectativa média de vida girava em torno dos 50 anos. Não havia bons argumentos para concentrar esforços em uma doença complexa e incurável que atacava o reduzido grupo de pacientes que chegavam até essa idade. Com o aumento da expectativa de vida, esse quadro mudaria logo. Na década de 60, o número de casos explodiu e, hoje, estima-se que cerca de 20 milhões de pessoas em todo o mundo sofram da doença. Se, no futuro, forem confirmadas as previsões do aumento da população idosa, a incidência deve triplicar e, em 2050, esse número poderá chegar a 60 milhões de casos.
“Estamos falando de um problema de saúde pública”, diz Paulo Caramelli, neurologista do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. Ele estima que o Brasil deve ter quase um milhão de pacientes. “Como o diagnóstico é complexo e os pacientes morrem de outros problemas associados à doença, é difícil estimar com precisão esse número.” Nos Estados Unidos, onde a expectativa média de vida é de 77 anos (no Brasil é 67,5), há mais de quatro milhões de portadores da doença. O custo desses pacientes para o governo americano ultrapassa a cifra de 50 bilhões de dólares por ano.
Com um mercado desses, não é à toa que os gigantes da indústria farmacêutica estejam correndo atrás de um tratamento eficaz para a doença. Steve DeKosky, pesquisador da Universidade de Pittsburgh e consultor do laboratório Bristol-Myers, afirma que fabricar o remédio para combater o Alzheimer é o sonho de toda companhia. Sua equipe está testando um componente capaz de bloquear a produção de uma enzima que libera a proteína beta-amilóide. “Todas essas pesquisas vão, afinal, confirmar se a proteína beta-amilóide é a causa ou a conseqüência da doença”, diz o neurologista Paulo Bertolucci, da Universidade Federal de São Paulo. “Apesar de essa proteína ter um papel central na morte dos neurônios, ninguém ainda pode assegurar que é ela quem aciona a doença.”
Outro grupo de cientistas defende que a origem do Alzheimer pode estar em uma proteína chamada TAU. No interior da célula nervosa, ela serve como suporte para pequenos tubos por onde passam os neurotransmissores (mensageiros que transportam informações no cérebro) e outras substâncias vitais para as células. Por algum motivo, essa proteína muda no cérebro de quem tem Alzheimer, emaranhando os tubos que deveria ajudar a organizar .Por que as proteínas passam a agir dessa forma no cérebro? É possível prever as chances que cada pessoa tem de desenvolver a doença no futuro? Para responder a essas perguntas, os pesquisadores também foram à caça dos prováveis genes que acionariam essas alterações químicas no cérebro. Em 1992, um estudo mostrou que 65% dos pacientes de Alzheimer tinham uma variação genética comum, a presença de um gene conhecido como APOE 4 no cromossomo 19. Como essa variação não garante com precisão que a pessoa venha a desenvolver a doença, o exame somente é recomendado, como uma espécie de confirmação do diagnóstico, em pacientes que já apresentam sinais da moléstia.
Sabe-se também que a hereditariedade é um fator decisivo em casos mais raros da doença, quando ela inicia antes de o paciente completar 50 anos – Alzheimer precoce. “Provavelmente, em 2010 será possível prevenir a doença com drogas para o gene defeituoso de cada paciente”, diz Rudolph Tanzi, professor de neurologia da Escola de Medicina de Harvard e autor do livro, ainda inédito no Brasil, Decoding Darkness (Decodificando a escuridão), um bom resumo do trabalho dos cientistas que mapeiam as origens genéticas do mal desde o início da década de 80.
Há dois meses, um grupo de pesquisadores da Califórnia resolveu se antecipar à chegada de novos medicamentos e partiu para um procedimento arriscado: realizaram a primeira cirurgia experimental de terapia genética contra o Alzheimer no cérebro de uma paciente de 60 anos no estágio inicial da doença. O neurologista Mark Tusynski e sua equipe inseriram tecidos geneticamente modificados no cérebro da paciente, com o uso de instrumentos cirúrgicos especialmente desenhados para a operação. Se tudo der certo, a deterioração das células doentes irá diminuir ou até mesmo parar. “Não esperamos que a cirurgia cure a doença”, diz Tusynski. “Mas creio que ela proteja ou até mesmo recupere algumas células nervosas afetadas, aliviando sintomas como a perda de memória.”
Enquanto a terapia genética e os novos medicamentos não chegam, os pacientes têm que se contentar com as poucas drogas disponíveis no mercado. “Elas não impedem a evolução da doença”, diz Paulo Caramelli. “Atuam nos sintomas, preservando as funções cerebrais que ainda não foram atacadas.” Caramelli conta que, a cada nove pacientes que tomam a medicação, três apresentam melhora razoável da memória e da atenção, outros três têm uma melhora discreta e o último terço não tem melhora perceptível.
Além desses medicamentos, o resultado recente de uma pesquisa com 678 freiras americanas sugere que uma das formas de prevenção do mal é manter em alta a vida intelectual. Após analisar em arquivos antigas redações dessas religiosas, escritas quando elas haviam acabado de ingressar no convento, o pesquisador da Universidade de Kentucky, David Snowdon, teve uma surpresa: as autoras das melhores redações eram também as menos afetadas pelos sintomas do Alzheimer. Publicada recentemente no livro Aging With Grace (Envelhecendo Com Graça), ele também diz que as freiras que cultivaram “emoções positivas” durante a vida se tornaram resistentes a problemas de memória e de comportamento.
Resta saber se isso não prova apenas que elas tinham uma mente saudável desde jovens, enquanto as mais suscetíveis ao Alzheimer já apresentavam sinais precoces de que iriam desenvolver a doença no futuro, ou se um estado mental favorável é fundamental para a saúde. “Preservar o estímulo intelectual é importante mesmo depois que os pacientes apresentam sinais da demência”, diz a psicanalista Delia Goldfarb. “Até mesmo para lutar contra a doença acho melhor quando o doente enfrenta o mal com mais consciência dos problemas que vai enfrentar.”
A posição de Delia é polêmica. Como o mal é incurável e o Código de Ética de Medicina no Brasil não obriga o médico a revelar o diagnóstico, muitas famílias preferem omitir o mal do paciente. “É um tema delicado”, diz o neurologista Paulo Bertolucci. “Quando o paciente me pergunta diretamente, eu falo.” Ele diz que uma das dificuldades de revelar o diagnóstico é o fato de que a maioria dos pacientes chega ao consultório numa fase de demência avançada. Como ainda não existe um exame clínico capaz de detectar a doença, o veredito final é dado por exclusão de outras causas, como tumores e derrames cerebrais. “O diagnóstico quase sempre é tardio, uma vez que as pessoas acham, erroneamente, que a demência faz parte da velhice”, diz Vera Caovilla, presidente da Associação Brasileira de Alzheimer (Abraz). “E não ficam atentas aos sinais da doença.”
O próprio pai de Vera, que morreu de Alzheimer aos 72 anos em 1995, demorou quatro anos para ser diagnosticado. “Ele era gemólogo (especialista em pedras preciosas) e não conseguia mais distinguir uma pérola de um diamante”, diz.
Indiretamente, uma das maiores contribuições da pesquisa sobre o Alzheimer é retirar da velhice a imagem de decadência intelectual. Ou seja: não existem velhos gagás. Apenas pessoas doentes. Que, em breve, poderão se curar.
Para saber mais
Na livraria
Decoding Darkness – The Search For The Genetic Causes of Alzheimer’s Disease, Rudolph Tanzi e Ann B. Parson. Perseus Publishing, Estados Unidos, 2000
Na internet
whyfiles.org/117alzheimer/index.html
Cérebro em Pane
Duas proteínas destroem os neurônios do portador de Alzheimer
Proteína Beta-amilóide
Qualquer explicação para a origem da doença passa pela atuação da proteína beta-amilóide no cérebro. Ela atua em forma de placas que envolvem os neurônios e impedem a comunicação entre eles. Com o tempo, as células nervosas se atrofiam e o paciente passa a apresentar distúrbios de memória, de comportamento e de personalidade.
Proteína TAU
No cérebro sadio, a proteína TAU serve de suporte para pequenos canais por onde passam os neurotransmissores e outros nutrientes essenciais aos neurônios
Por algum motivo ainda desconhecido, o Alzheimer altera a configuração dessa proteína, criando um emaranhado que mata as células nervosas