Vida artificial
Cientistas americanos inauguram a era da biologia sintética, em que bactérias projetadas em computador resolverão - ou criarão - os maiores problemas da humanidade
Salvador Nogueira e Bruno Garattoni
A maior descoberta da humanidade desde o fogo. A invenção mais importante (e mais controversa) desde a criação da bomba atômica. O início de uma nova era de prosperidade, saúde e desenvolvimento tecnológico para o homem – ou o começo de sua destruição. Foi assim que jornalistas, cientistas, filósofos e acadêmicos em geral receberam a proeza anunciada pelo geneticista Craig Venter: a criação em laboratório de uma forma de vida sintética. “Ficou provado que o mundo material pode ser manipulado para produzir o que chamamos de vida”, diz Arthur Caplan, professor de bioética da Universidade da Pensilvânia. Até o Vaticano, mesmo fazendo as ressalvas de praxe, elogiou a pesquisa.
À primeira vista, essa forma de vida sintética não impressiona muito. Ela é só uma versão artificial da Mycoplasma mycoides – bactéria que causa doenças em bois e é conhecida desde o século 19. No laboratório, não faz muito mais que se alimentar e se multiplicar. Come como mycoides, vive como mycoides, morre como mycoides, se reproduz como mycoides. Bem, ela é uma mycoides. Qual é a grande novidade, afinal? A novidade é que essa humilde bactéria é o primeiro organismo vivo na face da Terra a funcionar com um genoma produzido artificialmente. Ou seja: o DNA que existe dentro dela foi construído em laboratório, com base num arquivo digital. “É a primeira forma de vida cujos pais são um computador”, disse Craig Venter na entrevista em que apresentou a bactéria ao mundo.
Para gerar essa forma de vida, o DNA sintético teve de ser introduzido numa bactéria que já estava viva – cujo código genético foi substituído pelo genoma artificial. Ninguém conseguiu, ainda, gerar vida a partir de matéria inanimada. Mas a descoberta provou que é possível escrever DNA como se fosse um software, colocá-lo para rodar no hardware da vida (a célula), e disso obter uma nova forma de vida – que foi criada em laboratório e contém elementos definidos pelo homem. Vida artificial. Ou, se você preferir, vida sintética. Ela é filha de computadores. Mas também de um homem.
O Criador
Craig Venter. Genial e polêmico, esse pesquisador americano começou a se destacar nos anos 90, quando inventou um método mais rápido e barato para ler DNA. Então ele decidiu, por conta própria, sequenciar (ler) todo o genoma humano – código enorme, com 3,2 bilhões de letrinhas, que um consórcio internacional de cientistas já estava decifrando havia praticamente uma década. Mesmo saindo com todo esse atraso, Venter empatou com o outro grupo: finalizou a tarefa na mesma época, e gastando 90% a menos. Sua grande sacada foi descobrir que o DNA podia ser quebrado em pedaços e lido em ordem aleatória, o que agilizava o processo. Ele queria cobrar pelo acesso aos dados do DNA humano, o que gerou enorme polêmica na época. O sequenciamento do genoma deu um empurrão crucial à medicina e criou uma indústria de testes (pagando US$ 300, você pode ter seu DNA analisado em busca de predisposição a certas doenças), mas a ideia de Venter não decolou – como o outro grupo de cientistas liberou gratuitamente os dados, ele não teve escolha a não ser fazer o mesmo (não pôde vendê-los).
Mais ou menos nessa época, decidiu apostar em outro ramo: a biologia sintética. Mas, para isso, era preciso produzir um genoma. Em vez de partir do zero, o grupo de Venter decidiu copiar a sequência genética de uma criatura que já existisse na natureza: uma bactéria chamada Mycoplasma genitalium (que, como seu nome sugere, causa infecções genitais). Ela não é nada glamorosa, mas foi escolhida porque tinha o menor genoma conhecido na época, com “apenas” 500 mil letras. O DNA dessa bactéria foi escaneado. E, em janeiro de 2008, a equipe conseguiu montar uma versão sintética dele, manipulando adenina, guanina, timina e citosina – as 4 substâncias químicas que formam o genoma de todos os seres vivos (e cuja versão artificial é produzida por empresas de biologia molecular).
Agora que tinham produzido DNA artificial, os cientistas precisavam resolver a outra parte do desafio: transformá-lo numa criatura viva. Como até hoje ninguém descobriu como gerar vida a partir de matéria inanimada, a solução foi implantar o DNA artificial numa bactéria “hospedeira”, cujo genoma seria suprimido. No começo, não funcionou. A equipe de Venter tentou, tentou e tentou, por mais de um ano, mas o implante nunca dava certo. O processo de fabricação do DNA gerava erros no código genético, que impediam a bactéria de funcionar. Ela simplesmente morria. Venter percebeu que o que supostamente era uma vantagem (a simplicidade genética da M. genitalium) na verdade era um problema – e que uma bactéria maior, com genoma mais extenso, seria menos suscetível aos inevitáveis erros na síntese do DNA. A equipe recomeçou todo o processo, só que com a Mycoplasma mycoides, de genoma maior (1 milhão de letras). Deu certo.
Eles produziram uma versão artificial do DNA da mycoides, implantaram em outra bactéria, e bingo: ela se transformou em mycoides e começou a se reproduzir, gerando descendentes com 100% de DNA artificial. Os cientistas se deram ao luxo, inclusive, de fazer algumas alterações no código genético. Inseriram 4 mil letras no genoma, escrevendo nele – de forma codificada, usando pedaços de adenina, guanina, timina e citosina – uma série de mensagens. Uma passagem do romance Retrato do Artista Quando Jovem, de James Joyce (“Viver, errar, cair, triunfar, recriar a vida a partir da vida”). Um trecho do livro American Prometheus, que fala sobre a criação da bomba atômica pelo físico J. Robert Oppenheimer (“Não veja as coisas como elas são, e sim como elas poderão ser”). E uma frase atribuída ao físico Richard Feynman, outro dos inventores da bomba: “O que não posso criar, não posso compreender”. A fixação de Craig Venter com a bomba atômica não é coincidência. O mundo nunca mais foi o mesmo depois que o homem aprendeu a separar e fundir o átomo. E a biologia artificial promete uma transformação ainda mais profunda.
A nova vida
Por enquanto, a vida sintética é apenas uma demonstração de laboratório. Ela só será realmente útil quando os cientistas conseguirem mexer mais profundamente no DNA artificial. Se quisermos criar bactérias capazes de desempenhar funções úteis, como produzir combustíveis e curar doenças (leia no quadro ao lado), precisaremos dar a elas os meios de fazer isso: os genes. Alguns dos genes necessários já existem na natureza – há micro-organismos capazes de comer plástico e fabricar hidrogênio, por exemplo. Esses genes poderiam ser turbinados e inseridos em criaturas com DNA artificial.
Falta muito para chegar a esse ponto. Mas poucos duvidam de que isso possa acontecer. “A ideia parece razoável”, avalia o geneticista Marcelo Nóbrega, na Universidade de Chicago. “As bactérias se tornariam minirrefinarias de combustível, uma fonte renovável e não poluente de energia.” É tão razoável, na verdade, que o Departamento de Energia dos EUA decidiu investir no instituto de Venter para que ele faça tudo isso acontecer o mais breve possível.
E não custa lembrar que Venter e sua equipe não são os únicos a trabalhar nisso. Um dos rivais mais fortes é o cientista David Berry, líder da empresa biotecnológica LS9, que está desenvolvendo micro-organismos capazes de fabricar um substituto do petróleo. Outro concorrente é a empresa italiana ProtoLife, que quer ir além do esforço de Venter e construir tudo na raça – quer dispensar a bactéria hospedeira e construir uma bolhinha artificial que sirva como embalagem para sua forma de vida sintética. Uma estratégia parecida foi adotada pelo físico Steen Rasmussen, do Laboratório Nacional de Los Alamos, nos EUA. Ele pretende partir de elementos básicos (como uma versão alternativa do DNA chamada PNA, mais ácidos graxos e moléculas sensíveis à luz) e então reuni-los, na esperança de que eles possam, sozinhos, iniciar um metabolismo primitivo. Em vez de fazer o caminho seguido por Venter, que é pegar células já vivas e programá-las com DNA artificial, a ideia aqui é começar de baixo, e fazer uma versão artificial da própria célula. É uma estratégia mais complicada – e mais ambiciosa. “Como estamos começando do zero”, diz Rasmussen, “podemos projetar nossa protocélula para fazer coisas que as células vivas não podem fazer. Poderíamos torná-la capaz de sobreviver em qualquer ambiente: tóxico, radioativo etc.” Segundo ele, essa técnica também é mais segura. “As protocélulas podem ser projetadas para não interagir com o ambiente.” Ou seja: em tese, elas poderiam conter mecanismos de segurança mais avançados (por exemplo, a incapacidade de sobreviver na ausência de um determinado gás que só exista em laborátorio), para garantir que não causassem danos se escapassem ao controle humano. Como medida de segurança, Venter propõe o chamado “genoma mínimo” – quer criar bactérias que possuam pouquíssimo DNA, com 400 genes ou menos, e que por isso sejam frágeis, incapazes de sobreviver fora de condições controladas.
Os micróbios artificiais seriam cultivados em laboratórios, fábricas e usinas construídas especialmente para isso (cuja viabilidade econômica, aliás, será um grande desafio para que essa tecnologia seja usada em larga escala). Mas, cedo ou tarde, é provável que acabem escapando. E as bactérias trocam de genes entre si com mais frequência do que crianças trocam figurinhas da Copa do Mundo. Mesmo que você crie um micróbio incapaz de sobreviver sem ajuda, ele pode acabar entrando em contato com uma bactéria natural, trocar genes com ela, e readquirir essa capacidade. E aí? Caos.
Imagine uma bactéria originalmente programada para biodegradar plástico que escape no mundo. Ou uma que comece a produzir hidrogênio (altamente inflamável) sobre as bocas de nossos fogões. E por aí vai. Não é difícil pensar em tragédias que têm como inspiração a vida sintética.”Ninguém pode estar certo das consequências de fazer novas formas de vida, e devemos esperar o inesperado e o indesejado”, argumenta o filósofo Mark Bedau, da Universidade Reed. O assunto está começando a mobilizar os pensadores do mundo, e já existe quem defenda um controle rígido da biologia sintética – que passaria a ser regulada por agências e tratados semelhantes aos que hoje tentam limitar a proliferação de armas nucleares. A genética está a dois passos de começar uma nova era. Se isso será bom ou ruim? Vamos ter de descobrir na prática.
Entenda como a equipe do americano Craig Venter criou uma célula com DNA sintético
1. Não comece do zero
Ninguém sabe redigir um genoma inteiro a partir do zero. Por isso, os cientistas partiram de uma bactéria que já existe na natureza: a M. mycoides. Ela foi escolhida porque tem um genoma considerado pequeno, com “apenas” 1 milhão de letras (o genoma humano é 3 200 vezes maior).
2. Leia o DNA original
Os cientistas escaneiam o DNA dessa bactéria. Para fazer isso, aplicam enzimas que quebram o DNA em pequenos pedaços – que então são submetidos a um campo magnético, lidos com raio X e digitalizados. É a mesma técnica que Craig Venter usou para decifrar o genoma humano.
3. Altere no computador
Com a sequência genética digitalizada, os cientistas podem editá-la no computador – como se fosse um arquivo de Word. Eles rescreveram trechos do DNA, incluindo 4 mil novas letras genéticas – que incluem informações como o nome da empresa de Venter e trechos de livros.
4. Transforme em molécula
Hora de transformar o código digital em genoma. Para isso, os cientistas manipulam as 4 substâncias químicas que compõem o DNA na natureza – adenina (A), timina (T), guanina (G) e citosina (C). Cada uma delas corresponde a uma letra do genoma artificial – que é montado em blocos de 1 000 letras.
5. Insira num fungo
Os blocos são injetados em fungos, que começaram a juntá-los em pedaços maiores. Os fungos fazem essas emendas aleatoriamente, sem critério. Por isso, os cientistas precisam tentar o procedimento muitas vezes – até que, por pura tentativa e erro, os fungos remontem os pedaços de DNA na ordem correta.
6. Repita o processo
Conforme os fungos vão acertando a montagem do DNA, o genoma vai ficando maior. Primeiro, eles juntaram blocos de 1 000 letras genéticas em grupos de 10 mil. Depois, 100 mil. Por fim, 1 milhão de letras – elas formam um cromossomo sintético que contém o DNA criado pelos cientistas no computador.
7. Implante numa célula
O cromossomo é injetado num ser vivo – no caso, uma bactéria chamada M. capricolum. Sob o controle do genoma artificial, essa bactéria se transforma numa nova espécie, cujas características são definidas pelo DNA artificial. Está criada uma forma de vida sintética.
A criação de novas formas de vida pode revolucionar nossa relação com a biosfera terrestre
Produção de combustíveis
Os organismos sintéticos poderiam ser manipulados para produzir hidrogênio – um combustível altamente eficiente, e cuja queima não polui o ambiente. Na natureza, já existem genes capazes de fazer isso: estão presentes em determinadas bactérias marinhas, que são capazes de “comer” metano e excretar hidrogênio como resultado.
Cura de doenças
A ideia é conceber bactérias que ajudem a combater certos tipos de doenças, como câncer e infecções resistentes a antibióticos. Bastaria criar um microorganismo programado para se alimentar de determinada proteína (que só exista nas células que você deseja destruir, como as cancerosas) e injetá-lo no organismo.
Combate ao aquecimento global
O processo de fotossíntese é a transformação de água, CO2 e luz em oxigênio e açúcar. Com a engenharia genética, talvez seja possível criar micróbios que façam a fotossíntese com mais eficiência do que as plantas – e removam mais CO2 da atmosfera, reduzindo o efeito estufa e brecando o aquecimento global.
Fim do lixo
Os lixões e os oceanos do mundo estão cheios de plástico – que levará centenas de milhares de anos para se degradar e desaparecer. Mas na natureza já existe uma bactéria, a Flavobacterium, capaz de comer um plástico: náilon. A biologia sintética poderia aperfeiçoar essa capacidade, criando um micro-organismo que pudesse digerir todos os tipos de plástico.
Acidente biológico
Se as bactérias comedoras de CO2 escapassem do controle, por exemplo, e consumissem todo esse gás da atmosfera terrestre, a temperatura no planeta cairia para -18 C. Os cientistas dizem que os organismos artificiais serão propositalmente frágeis, incapazes de sobreviver fora de determinadas condições. Mas sempre existe a possibilidade de que eles sofram mutações – e se transformem em pragas incontroláveis.
Guerra e terrorismo
Lembra dos ataques terroristas com a bactéria antraz, que assustaram os EUA em 2001? Com a biologia sintética, será possível aumentar a potência de armas como essa (desenvolvendo um antraz mais facilmente transmissível, por exemplo). Ou então criar vírus artificiais altamente letais e resistentes, contra os quais não exista nenhum tipo de tratamento conhecido.
Para saber mais
The Reality Club
Uma Vida Decodificada
Craig Venter, Editora Campus, 2007.