Decifra-me e eu te reconstruo
Fígados, rins, pulmões, olhos e todos os outros órgãos do corpo são feitos sob as ordens dos genes. Portanto, se soubessem exatamente quais são os genes que dirigem a fabricação de cada órgão, os médicos teriam um poder parecido com o de fazer milagres. Por exemplo: o cidadão abusou do álcool? Arruinou o fígado? Vai a um laboratório e pede um novo. Um técnico procura no estoque o gene certo, coloca num tubo de ensaio e o gene começa a montar um fígado zero-quilômetro. Forte, saudável, pronto para um transplante salvador da pátria.
Foi um gene assim que uma equipe de geneticistas da Universidade de Basel, na Suíça, encontrou, no ano passado. Por um tremendo golpe de sorte, os cientistas foram bater justamente num gene-mestre, aquele que tem o poder de acionar todos os outros genes necessários para se construir um órgão inteiro, do começo ao fim. É o primeiro gene-mestre que se descobre. Identificado pela sigla ey, ele estava num dos cromossomos das moscas – da – fruta. E haja sorte. A função do ey, simplesmente, é comandar a montagem dos olhos, que são complicadíssimos. Vem daí a importância da descoberta. Ninguém tem a menor idéia de como se fabrica um olho. Mas agora nem precisa ter. É só acionar o gene-mestre ele faz tudo sozinho, disparando ordens, ainda secretas, para não se sabem quantos funciona rios-genes. O geneticista Walter Gehring, líder da equipe em Basel, fez um levantamento preliminar sobre o número de funcionários-genes. Não há resposta exata, escreveu ele em seu trabalho, publicado no irúcio do ano na revista americana Science. “Calculo que na formação do olho estão envolvidos no mínimo 2 500 genes”.
A pista foi levantada por uma estudante
Em resumo, o ey abre um atalho monumental em meio à ignorância da ciência. Com ele, fica mais fácil investigar os detalhes da genética dos olhos. É até possível sonhar com uma fábrica de olhos, porque é assim mesmo que nascem as novas tecnologias: a partir de uma descoberta-chave da ciência básica. Nós podemos ter o privilégio de ver essa mudança acontecer. Nesse momento, os geneticistas estão mais ou menos como os viajantes que a mitológica esfinge grega parava nas estradas para lhes propor um enigma e dizer: “Decifra-me ou te devoro”. Só que o gene-mestre está olhando para os geneticistas como quem diz: “Decifra-me e eu te reconstruo”.
O ey não parecia tão importante, no princípio. A pesquisa na Suíça começou da maneira mais inocente: pelas mãos de uma estudante de graduação, chamada Rebecca Quiring. Ela estava tentando selecionar genes cuja função não era ainda conhecida, nos cromos somos da mosca – da – fruta. Não tinha um objetivo muito preciso. Procurava genes que controlam o funcionamento de outros genes. Em meados de 1993, ela achou alguma coisa interessante e mostrou a Uwe Walldorf. Walldorf verificou que o gene já havia sido identificado, anos antes, e era importante. Se ele tivesse um dano sério, nas células embrionárias de uma mosca, o inseto nascia sem os olhos. Por isso, o gene recebeu o nome de ey, abreviatura da palavra inglesa eyeless, que significa sem olhos.
Era a primeira pista de que o ey falava muito alto dentro do organismo Rebecca e Waldorf ficaram animados. Fazendo novas experiências, eles perceberam que a composição química do ey era muito parecida com a de outros genes, igualmente essenciais. Os ratos, por exemplo, têm um gene chamado Small eye. Quer dizer olho pequeno, em português, e seus defeitos são tão sérios quanto os do ey nas moscas – da fruta: fazem os ratos nascerem sem olhos. No homem, a mesma coisa. Há um gene chamado Aniridia, cujas mutações geram mazelas oftalmológicas por todos lados: íris, lente, córnea e retina sofrem deformações graves.
As semelhanças químicas entre o Aniridia, o Smalleye e o ey convenceram Gehring de que o enigma era profundo. E, já que falamos há pouco da esfinge, podemos agora lembrar outra figura da mitologia grega: misturando moscas, ratos e homens a pesquisa estava passando da esfinge para a hidra de Lema, um monstro com partes de leão, serpente e cabra. Gehring desconfiou que precisava apurar mais detalhes do ey e montou uma investigação detalhada.
Até as células de asas viraram olhos
O resultado seria inacreditável se não fosse um fato, que qualquer um pode comprovar numa imagem obtida por microscópio eletrônico: com a ajuda do ey, a equipe suíça conseguiu criar moscas que não acatam a ordem natural das coisas. Algumas tinham 14 olhos: nas patas, em várias partes da cabeça, nas antenas ou mesmo nas finíssimas asas (veja SUPER número 5, ano 9, página 12).
Para testar a alta hierarquia do gene, os cientistas o injetaram em embriões de mosca – num estágio tão precoce do desenvolvimento que as células dos embriões ainda não tinham destino certo, dentro do futuro organismo. Elas estavam apenas vagamente agrupadas em diversas massas, cada massa com o seu destino: olhos, asas, patas e assim por diante. O impressionante, na experiência, foi que não importava onde estavam no embrião: as células que recebiam o ey viravam olhos. Praticamente perfeitos, apesar dos locais inusitados em que apareceram.
“É como se soubéssemos transformar um rim em um fígado”, diz o especialista americano Gerald Rubin, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, Estados Unidos. Rubin sabe muito bem que estamos muito longe disso. Mas ele também tem consciência de que o gene das moscas, tão parecido com o humano, acabará nos ensinando como montar os nossos próprios olhos.
Um gene para todos os olhares
Esta reportagem foi escrita por dois motivos. Um, noticiar a descoberta do gene que, muito provavelmente, comanda todo o trabalho de construção dos olhos, durante o desenvolvimento embrionário dos organismos. a papel desse gene ficou comprovado pelas extraordinárias experiências recentes, realizadas na Universidade de Basel, na Suíça, com as moscas – da – fruta. Mas ele não age apenas nas moscas: sua estrutura química básica está presente também em vermes, águas-vivas, polvos, rãs, ratos e homens. E, possivelmente, em todos os outros animais. Em suma, é daquelas descobertas que, depois’, a gente pode contar para os filhos e os netos que viu acontecer.
O segundo motivo é explicar que, só por ter um gene basicamente igual ao dos insetos, ninguém vai virar protagonista do filme A Mosca (1986), do diretor David Cronenberg. Um dos maiores sucessos de bilheteria dos últimos tempos, o filme é uma reedição de A Mosca da Cabeça Branca (1958), de Kurt Neumann e foi seguido por A Mosca 2 (1989), de Chris Walas. Cronenberg não faz terror: o seu charme é tirar o apetite do público com cenas nojentas de um homem que, aos poucos, se transforma em um inseto. Uma experiência mal-sucedida mistura os genes do cidadão com os de uma mosca, que por acaso estava no laboratório. Não muito tempo depois, o homem começa a sofrer as mutações repugnantes. O mestre comanda operários biológicos.
A história do gene dos olhos pode ser igualmente espantosa, mas não tem nada de repugnante. É apenas natural a gene que manda fazer os olhos é um ancião mais do que venerável: sua idade é estimada em cerca de meio bilhão de anos. Há 500 milhões de anos, um pouco mais, um pouco menos, apareceram as mais antigas moscas. Nem por isso, no entanto, o gene vai confundir um olho humano com o de uma mosca, como acontece no filme de Cronenberg. O gene recém-descoberto não é operário. Não põe a mão na massa. Ele é o próprio chefe dos operários biológicos. Isso é o que se chama um gene –mestre a que ele faz, tanto nas moscas como nos polvos ou nos homens, é desencadear uma seqüência de comandos genéticos que levam ao desenvolvimento do sistema visual.
Há 500 milhões de anos, as ordens do gene-mestre foram obedecidas por genes antigos, presentes em alguma mosca primitiva. E devem ter produzido um olho igualmente primitivo. Daí para a frente, o gene alterou-se muito pouco, passando de um organismo para outro. E suas ordens, sempre as mesmas, foram obedecidas por outros genes, gerando outros olhos. Não se sabe precisamente como isso aconteceu (veja o quadro ao lado). Mas essa é a a melhor maneira de explicar porque a estrutura básica do gene dos olhos mantém sempre a mesma função em tantos bichos, tão diferentes entre si (veja Com os olhos nos olhos, SUPER número 4, ano 9, página 58). a fato de a estrutura básica do gene ter sido preservada é uma prova impressionante da sua importância hierárquica. dentro dos organismos e da sua Antigüidade.
Revela também um aparente paradoxo: o de que os órgãos podem ser mais velhos do que os animais. A invenção do olho, claramente, precedeu o aparecimento do homem. Só para deixar esse ponto bem claro, se o gene que monta olhos humanos fosse colocado em uma mosca, ele funcionaria perfeitamente bem. Apesar de estar em um homem, que apareceu na Terra centenas de milhões de anos depois das moscas, suas ordens são tão antigas e fundamentais, que podem ser compreendidas pelos genes operários do inseto.
Esse teste não foi feito com um homem, mas foi feito com um rato. O que dá na mesma, do ponto de vista evolutivo, já que o rato, comparado à mosca, é relativamente moderno os primeiros roedores surgiram há menos de 100 milhões de anos, assim como os primatas, a ordem à qual pertencemos) .
A herança do rato no patrimônio da mosca
A prova: na Universidade de Basel, o gene que comanda a fabricação dos olhos de rato foi contrabandeado para dentro de células embrionárias da mosca – da – fruta. E quando as moscas nasceram, tinham olhos em todas as partes do embrião em que o gene do rato havia sido colocado: pernas, asas, antenas e assim por diante. Os olhos, nesse caso, só poderiam ser de mosca porque é isso o que os genes-operários da mosca sabem fazer.
Eles entendem as ordens do gene do rato. Mas, como era de se esperar, não sabem fazer olhos de rato. Esses fatos convenceram os pesquisadores de que o gene descoberto nas moscas – da -fruta, conhecido pela sigla ey,ocupa a mais alta posição hierárquica na máquina montada pela natureza para fazer os olhos. É possível que se encontre um gene hierarquicamente superior ao ey, mas ele é o único candidato, até agora, ao posto máximo. Tudo indica que ele é o gene-mestre, capaz de, sozinho, colocar em funcionamento todas as engrenagens orgânicas necessária, para produzir o sistema visual. Claramente, o desafio que espera os geneticistas, daqui para a frente, é desfiar, passo a passo, toda a seqüência de comandos iniciada pelo gene-mestre. E comparar o que acontece nos diversos organismos. Isso deve revelar com mais clareza a estrutura básica do gene-mestre, preservada desde a época em que surgiram as moscas. Como conseqüência, apareceriam as pequenas diferenças existentes entre o gene mestre mais antigo e os mais recentes. Especialmente o gene-mestre humano. Essa é a estratégia que pode nos dar, um dia, a tecnologia de fabricação dos órgãos num tubo de ensaio. Por sorte, a primeira fábrica poderá produzir um dos órgãos mais importantes: o da visão.