Cuidado com esse botão
Inflação alta só é bacana pra quem coleciona notas antigas. Mas existe uma coisa pior que inflação. E quando os sujeitos que controlam o nosso dinheiro resolvem apertar o botão aí em cima, ela pode acontecer. O engraçado é que essa coisa ruim parece ótima à primeira vista. Não só melhor do que inflação. […]
Inflação alta só é bacana pra quem coleciona notas antigas. Mas existe uma coisa pior que inflação. E quando os sujeitos que controlam o nosso dinheiro resolvem apertar o botão aí em cima, ela pode acontecer. O engraçado é que essa coisa ruim parece ótima à primeira vista. Não só melhor do que inflação. Melhor do que brigadeiro, até.
Num mundo onde existe mesmo esse negócio pior que inflação, acontecem coisas bacanas. Tipo: chega o mês do reajuste do aluguel e, em vez daqueles 10% de sempre, vem… 10%. Só que a menos. R$ 2.000 por mês passam para R$ 1.800. Lindo. Aí vem o reajuste do outro ano. Mais -10%, e os R$ 1.800 caem para R$ 1620. Terceiro ano: R$ 1458. Uhú.
Isso aconteceu no mundo real. Foi no auge da Grande Depressão.
Depois da quebra da bolsa em 1929 os preços nos EUA (e no resto do mundo) começaram a cair sem parar. Era a deflação: a coisa pior que a inflação. Entre 1930 e 1933 os preços caíram numa média de 10% ao ano. “Numa média”, já que no final algumas coisas desabaram quase 100% mesmo. O quilo da borracha por exemplo, passou de US$ 0,42 para US$ 0,03.
Isso parece bom num primeiro momento. Mas não. Deflação generalizada é recessão em estado puro. Numa realidade em que os preços caem o tempo todo, uma construtora precisa vender um prédio por um preço menor do que pagou pelo concreto, pelo terreno e pela mão-de-obra. Uma hora ninguém mais levanta prédio… Os engenheiros, pedreiros e corretores de imóveis ficam desempregados. Sem salário, não compram mais nada. O comércio definha. A indústria fecha. Os serviços vão para o buraco. O buraco é fundo, acabou-se o mundo.
No começo dos anos 30, foi quase o que aconteceu mesmo. A recessão nos EUA quase acaba com o mundo. Henry Ford, por exemplo, tinha acabado de montar uma cidade no meio da Amazônia só para extrair borracha das seringueiras – a Fordlândia. Agora, com a borracha quase de graça, o empreendimento começava a deixar de fazer sentido. E a economia do Brasil também. Não por causa da borracha, que não contava grande coisa, mas por causa do café – que contava o que a soja, o minério de ferro, o petróleo e a exportação de travestis para a Suíça contam hoje para o nosso PIB. Quando o quilo do café já tinha caído de US$ 0,56 para US$ 0,16 no mercado americano, Getúlio Vargas mandou queimar 80 milhões de sacas para que a escassez do produto aumentasse o preço lá fora. Não funcionou: o que estava escasso mesmo era o dinheiro :-/
É que quase metade dos bancos dos EUA tinha falido. Com menos bancos para emprestar, o dinheiro rareia. Um terço da grana que circulava na economia americana deixou de existir. Notas não desaparecem, mas só uma fração do dinheiro que existe numa economia está na forma de notas (no Brasil, hoje, é só 4%). O resto consiste basicamente de números nos livros-caixa dos bancos. Quando um banco evapora, esses números somem junto com ele. Tchau. Pior: quando os preços baixam o tempo todo, deixar dinheiro debaixo do colchão não é mal negócio. Pra que comprar hoje se os preços vão estar mais baixos amanhã? E pra que comprar amanhã se depois de amanhã tudo vai ficar mais barato ainda? Ninguém vai deixar de comprar pão por causa disso, lógico. Mas e na hora de trocar de carro? O estímulo para você adiar a compra, numa situação dessas, é absurdo. E com muita gente adiando ad infinitum, as vendas caem. A montadora vai para o buraco. O buraco é fundo… Isso responde a pergunta do molequinho aqui:
“Porque você não dá um emprego pro meu pai?” Bom, “por que o seu pai está desempregado e não pode comprar os produtos que eu faço”. Sad but true. Mas não é só por isso, não. O pai do menino não tinha culpa por estar desempregado. Mas o encarregado de apertar ou não aquele botão lá de cima, a entidade também conhecida como “governo”, tinha.
Explico. A crise que levou à Grande Depressão começou com o estouro de uma bolha – o crash da bolsa de NY. Só que bolsas quebram de vez em quando mesmo. É até por isso que elas têm o potencial de dar tanto dinheiro – quando as bolsas ricocheteiam no fundo do buraco e sobem de novo, sai de baixo (temos muito a falar sobre isso em outros posts). Em suma: quedas bruscas são parte da vida do mercado financeiro. Não destroem economias inteiras. A não ser que o governo deixe.
Na crise de 1929, muitos bancos estavam com muita grana investida em ações. E quebraram junto com a bolsa. Quando vários bancos vão para espaço, os que não tinham nada a ver com o assunto acabam sem ter para quem pedir emprestado quando o cinto aperta. Aí quebram também. É uma bola de neve que, mais hora menos hora, te pega – na hora em que você vai sacar dinheiro e descobre que o banco não existe mais, por exemplo.
Mas até quebradeira de banco é algo que, como diria o Kleber Bambam de 2001, “faz parte”. O que não faz parte é o governo fazer como o Bambam de 2013 e pular fora do barco. Mas foi o que o governo dos EUA fez. Fingiu que o problema não era com ele. O Estado poderia – e deveria – ter imprimido dinheiro novo e colocado no sistema financeiro para que o sujeito comum, filho de deus, tivesse o que sacar depois que o banco dele quebrasse. Era o mínimo.
Mas não. Andrew Mellon, o Secretário do Tesouro (Ministro da Fazenda) da época, apertou o foda-se.
Ele tinha convicção de que os banqueiros e os especuladores que fizeram a bolsa quebrar eram a encarnação do mal. E que a falência deles era pura justiça divina. “Isso expurgará o sistema, que está podre”, disse Mellon. “Os padrões de vida altos serão reduzidos. As pessoas trabalharão mais. Levarão uma vida mais de acordo com a moralidade, e os empreendedores recolherão os destroços dos menos competentes.”
Nisso o governo passou anos de braços cruzados. E todo mundo dançou: os especuladores, os empreendedores, os bons, os maus, os feios… Recessão pega um, pega geral. É uma lei da física. A ideia de “expurgar a podridão do sistema” soa louvável. O que não é louvável é tratar uma crise como se ela fosse uma praga enviada pelo Deus do Antigo Testamento. Uma recessão pesada, afinal, não é um rito de purificação. Ela afunda todo mundo e pronto. Os adoradores de Javé e os de Baal estão sempre no mesmo barco.
Os EUA só saíram mesmo da Grande Depressão depois que o governo imprimiu bilhões de dólares para fomentar um programa de obras públicas chamado Segunda Guerra Mundial. O pleno emprego voltou. E continuou firme depois do fim da guerra.
Vamos voltar para o futuro agora. O que os governos estão fazendo hoje é basicamente simular uma Guerra Mundial: imprimem toneladas de dinheiro para evitar uma nova Grande Depressão. Nos EUA, fabricaram aqueles trilhões de dólares todos (veja no primeiro post). Boa parte disso foi para não deixar o sistema bancário quebrar, como tinha acontecido na Grande Depressão. Outra parte foi para criar empregos com obras públicas. Fizeram um pouco de tudo. Até comprar carro velho compraram – foi o programa “Cash for clunkers”, que dava um cheque de US$ 4.500 por qualquer lata-velha motorizada que alguém tivesse parada em casa. A real é que só faltou jogar dinheiro de helicóptero. Mas no Japão fizeram isso.
Mais do quase isso, aliás. O governo japonês atira tanto dinheiro novo na economia que, se realmente o fizesse de helicóptero, jogando ienes todo dia no centro de Tóquio, não daria tanta grana. O motivo: enquanto os EUA tentam evitar uma deflação, no Japão ela JÁ acontece. Há 20 anos. E piorou depois da crise. A deflação lá começou depois de uma bolha imobiliária. A maior da história. Mas essa é outra conversa. O que importa aqui é que o Japão está endividado porque imprime dinheiro novo num ritmo alucinante. Essa impressão de dinheiro acontece assim: o governo lança títulos públicos e o Banco Central do Japão compra com dinheiro novo, impresso na hora. Então o governo fica em dívida com o BC – em tese, vai ter que pagar pelo dinheiro novo que recebeu quando os títulos vencerem. E com juros (se você não conhece esse sistema, dá uma olhada no primeiro post deste blog). Bom, é assim que funciona na maior parte do mundo. Dinheiro novo = dívida nova.
Mas, ei: Banco Central e governo é tudo a mesma coisa. Os dois são uma só entidade: o Estado. Na prática, é o Estado imprimindo moeda nova e colocando na economia. Como eles fazem isso? O jeito mais direto é gastar em obras públicas, mesmo que seja construindo uma ponte ligando nada a lugar nenhum só para empregar engenheiros, pedreiros, o pessoal da siderúrgica, o da fabricante de concreto. Em suma, é simular um esforço de guerra sem o incômodo de ver soldados morrendo.
Então é isso. Os EUA e o Japão estão se endividando loucamente porque imprimem dinheiro em ritmo de guerra. Já na Grécia e nos outros países pendurados que estão mesmo para quebrar a história é bem diferente. E bem mais perigosa.
O Japão tem uma dívida-monstro em ienes, mas quem fabrica ienes é o Japão. Os EUA devem zilhões de dólares, mas quem faz dólares são eles mesmo. Assim fica mais fácil de conversar. Na Europa não.
A dívida dos pendurados de lá é em euro. E Grécia, Portugal, Espanha e cia não têm impressora de euros. Quem tem é o Banco Central Europeu, do qual os pendurados são sócios minoritários. Não apitam. É como se a dívida deles fosse em moeda estrangeira. Por isso mesmo o fim do euro ainda é uma possibilidade real. Se o euro acaba, cada país volta a fabricar sua própria moeda – os gregos imprimem seus dracmas, os portugueses, seus escudos… E os endividados poderiam usar esse dinheiro novo para impulsionar suas economias quando bem entendessem. Poderiam “simular suas guerras”, como todo país grande faz quando bate a recessão.
O problema é que talvez nem a população queira esse dinheiro. Nem que joguem de helicóptero. O argentinos, por exemplo, praticamente desprezam o peso. Gostam é de fazer poupança em dólar – nem que seja só pra deixar no fundo do armário mesmo. No Brasil dos anos 80 era assim também. Quem ganhava bem, ganhava em dólar. E comprava em dólar. Aí não dá: quando as pessoas preferem fazer negócios em moeda estrangeira, o dinheiro novo que o governo imprime não impulsiona a economia. Só cria inflação: você passa a precisar de cada vez mais moeda nacional para comprar dólar – ou qualquer outra moeda que as pessoas tenham elegido para o papel de dinheiro. Por isso mesmo a inflação na Argentina está batendo quase em 30%…
Epílogo: Ainda existem 36 bilhões de escudos nas casas dos portugueses. Alguns esqueceram de trocar a moeda antiga por euros na época em que ainda dava para fazer isso. Outros guardaram as notas antigas de lembrança. São colecionadores. E nem para para eles o fim do euro seria uma boa: as notas velhas perderiam boa parte da graça quando os escudos novos entrassem em circulação. Taí. Se inflação é uma coisa boa pelo menos para os colecionadores de moeda, recessão não presta nem para isso.