Homem teve Covid-19 três vezes – e o coronavírus sofreu 66 mutações no corpo dele
Paciente de 45 anos, que acabou morrendo, tomava medicamentos imunossupressores - e desenvolveu a doença três vezes ao longo de 154 dias; alterações genéticas do vírus se concentraram na proteína spike, usada para infectar células humanas
Paciente de 45 anos, que acabou morrendo, tomava medicamentos imunossupressores – e desenvolveu a doença três vezes ao longo de 154 dias; alterações genéticas do vírus se concentraram na proteína spike, usada para infectar células humanas
O caso, em que o Sars-CoV-2 surpreende pela persistência e pela rápida evolução, é narrado em um artigo científico publicado no New England Journal of Medicine e assinado por médicos da Harvard Medical School, do MIT e de um hospital de Boston, onde o homem foi internado. Tudo começa quando, acometido de febre, ele procura ajuda médica e é diagnosticado com Covid-19 (um teste do tipo PCR, o mais preciso, indica a presença do novo coronavírus no corpo dele).
O homem é admitido no hospital e recebe cinco dias de remdesivir, um antiviral que tem demonstrado alguma eficácia contra o Sars-CoV-2. No sexto dia, ele tem alta e vai para casa, com a orientação de permanecer isolado. Ele sofria de síndrome antifosfolipídica (SAF), uma doença em que o sistema imunológico ataca proteínas do sangue, levando à formação de coágulos. Por isso, estava tomando anticoagulantes, corticoides e, o mais relevante, medicamentos imunossupressores – que provavelmente afetaram a resposta do seu corpo ao vírus.
No 39o. dia, exames PCR indicam que o homem está curado da Covid. Mas ele continua se queixando de dores abdominais, cansaço e dificuldade em respirar. No 68o. dia, é internado com baixo nível de oxigênio no sangue, e o PCR volta a indicar a presença do vírus no organismo. O homem recebe dez dias de remdesivir, e os exames PCR -que são repetidos várias vezes- dão negativo. Ele está curado, pela segunda vez, da Covid-19.
Mas um mês depois, no 105o. dia, o paciente retorna ao hospital com uma grave infecção de pele, e é internado mais uma vez. No 111o. dia, ele volta a apresentar baixo nível de oxigênio no sangue e precisa de ajuda mecânica para respirar. Os médicos temem que a síndrome antifosfolipídica esteja causando hemorragia nos alvéolos pulmonares, e por isso aumentam as doses dos medicamentos imunossupressores. No 128o. dia, mais de quatro meses após o diagnóstico inicial, exames novamente indicam a presença do Sars-CoV-2 no organismo. O paciente toma remdesivir por cinco dias, e o vírus desaparece.
No 143o. dia, ele volta a se manifestar – e em níveis especialmente altos, que indicam uma terceira rodada de Covid-19. No 150o. dia, o paciente é entubado. Ele morre, de falência respiratória, no 154o. dia após a infecção.
O caso chama a atenção pelas idas e vindas do vírus, e também pelas alterações genéticas que ele sofre ao longo do processo. Os cientistas coletaram amostras do vírus em quatro momentos: infecção inicial (T0, amostras colhidas nos dias 18 e 25), recidiva (T1, nos dias 75 e 81), segunda recidiva (T2, nos dias 128 e 130) e terceira recidiva (T3, nos dias 143, 146 e 152). O RNA das amostras foi sequenciado e revelou duas coisas. O paciente permaneceu infectado pela mesma cepa do vírus durante todo o processo, e o Sars-CoV-2 sofreu uma série de mutações.
Entre a infecção inicial e a recidiva, houve alteração em 11 nucleotídeos (“letras” genéticas) do vírus, e eliminação de outras 9. Na etapa seguinte, entre T1 e T2, foram mais 10 trocas de nucleotídeo e 1 supressão. Entre T2 e T3, ocorreram 11 substituições e 24 remoções – totalizando 66 alterações genéticas no vírus. As mutações são esperadas, e ocorrem por erros na cópia do RNA quando o vírus se replica. Mas sua velocidade nesse caso específico, que os cientistas qualificaram de “evolução viral acelerada”, chamou a atenção – bem como a natureza das alterações, que se concentram em regiões críticas para a infectividade do vírus.
A maioria das mutações ocorreu na região genética relacionada à proteína spike, que o vírus usa para se conectar às células humanas – essa região corresponde a apenas 13% do genoma dele, mas concentrou 57% das alterações. O domínio ligante do receptor (RBD), que é a parte mais importante da proteína spike, reuniu 38% das mutações (sendo que responde por apenas 2% do RNA).
O caso impressiona. Mas vale ressaltar que ele é altamente específico -o paciente tomava medicamentos imunossupressores-, e provavelmente único. Além disso, embora a quantidade de mutações chame a atenção, elas não são necessariamente motivo de preocupação. 66 alterações não é um número grande considerando o tamanho do genoma do Sars-CoV-2, que é formado por aproximadamente 30 mil nucleotídeos. É pouco provável que as mutações, mesmo concentradas na proteína spike e no RBD, possam interferir na eficácia das vacinas que estão sendo desenvolvidas.