A geologia de Lagoa Santa a transformou no berço da arqueologia e paleontologia brasileiras
A dissolução das rochas da região, formadas em um antigo mar, deu origem às muitas cavernas que hospedam fósseis de mamíferos extintos e o crânio mais antigo da América.
Este é o 26º texto do blog Deriva Continental.
O carste é um tipo de relevo que se forma a partir da dissolução de rochas. Esse processo químico cria uma série de características físicas, como cavernas, dolinas (buracos formados pelo colapso de cavernas), lapiás (sulcos na superfície das rochas) e condutos subterrâneos.
Lagoa Santa, na região metropolitana de Belo Horizonte (MG), é um dos melhores exemplos brasileiros desse tipo de ambiente. O que não faltam são cavernas, dolinas de tamanhos e formas variadas e grandes afloramentos rochosos. O local ainda possui uma complexa trama de condutos subterrâneos ligados ao relevo superficial, o que permite acesso ao subsolo.
Os estudos na região começaram por volta de 1840, quando trabalhadores locais encontraram ossadas de animais e humanos – o que chamou a atenção de naturalistas. As primeiras explorações nas cavernas foram realizadas pelo dinamarquês Peter Lund, que, a partir dos seus trabalhos, fez com que Lagoa Santa se tornasse o berço da paleontologia, arqueologia e espeleologia (campo da ciência que estuda cavernas) brasileiras.
Quais as condições para que ocorra a carstificação?
O processo de formação do carste ocorre quando a água da chuva ou de rios superficiais interage com o CO2 da atmosfera ou do solo, gerando uma solução de ácido carbônico (H2CO3) que, ao entrar em contato com as rochas, reage com alguns dos minerais presentes, dissolvendo-os.
As rochas carbonáticas (como calcários e mármores, por exemplo) são formadas principalmente por calcita, mineral de fórmula CaCO3. Ao interagir com o ácido carbônico, estes minerais se dissociam em íons de cálcio ou magnésio (Ca2+ ou Mg2+) e íons carbonato (CO2)3, que ficam em solução na água e são “lavados” para fora, criando as cavidades.
Para que isso aconteça a rocha deve ser altamente permeável, para que a solução de ácido carbônico alcance estratos mais profundos. Essa permeabilidade é comum em rochas com grande porosidade (quando os poros são interconectados) ou quando há grande quantidade de fendas e fissuras na rocha.
Tesouros geológicos, paleontológicos e arqueológicos
Os calcários da região de Lagoa Santa (Formação Sete Lagoas, Grupo Bambuí) guardam um interessante paradoxo geológico: apesar de terem sido formadas em uma época de grande diversificação dos primeiros animais, só apresentam fósseis de microorganismos… Porque não existem fósseis de animais?
A resposta para a controvérsia, que tem intrigado os pesquisadores nas últimas décadas, parece estar na química da água do mar Bambuí, controlada pela Tectônica de Placas.
Entre o fim da era neoproterozoica e o início da era paleozoica (entre 650 e 500 milhões de anos atrás), o supercontinente Gondwana estava se formando a partir da aglutinação de vários continentes menores. Neste processo, o mar Bambuí (onde se depositavam os sedimentos que hoje compõem as rochas da Formação Sete Lagoas) ficou isolado no interior do continente, em meio a montanhas e sem conexão com o oceano. Dessa forma, as alterações no balanço de íons que chegavam à bacia e as mudanças no padrão de circulação da água do mar tornaram o ambiente inóspito para a vida animal complexa.
O registro fóssil das rochas de Lagoa Santa é escasso, mas o mesmo não pode ser dito de suas cavernas. O material paleontológico mais relevante encontrado em Lagoa Santa está relacionado à megafauna: um conjunto de mamíferos de grande porte que conviveram com os humanos até serem extintos no fim do Pleistoceno, cerca de 11 mil anos atrás. Entre eles, destacam-se preguiças gigantes, tigres-dente-de-sabre, lhamas, cavalos, tatus gigante, gliptodontes e mastodontes.
A história da arqueologia também não seria a mesma sem as descobertas feitas na região de Lagoa Santa. Luzia, o fóssil humano mais antigo já encontrado no Brasil e nas Américas, foi descoberto em meados de 1970 na gruta de Lapa Vermelha, em Lagoa Santa, durante escavações lideradas pela arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire.
Luzia era uma mulher na faixa dos 20 anos de idade quando morreu. Seu esqueleto tem 12 mil anos de idade, e já respondeu inúmeras questões relativas ao povoamento das Américas graças a pesquisas feitas principalmente pela equipe liderada pelo paleoantropólogo brasileiro Walter Neves. Além disso, a abundância de pinturas rupestres em cavernas e lapas fez da região uma das mais importantes “províncias rupestres” do país. Os vários sítios arqueológicos da área apresentam um rico acervo material, que inclui artefatos líticos, de ossos, de conchas, madeira e cerâmica.
O carste ainda guarda, na região, uma outra riqueza imensurável: água subterrânea. As fraturas alargadas, condutos e cavernas subterrâneas armazenam um enorme volume de água, formando um importante aquífero que tem sido estudado por hidrogeólogos. Além de alimentar as nascentes da área, esse aquífero cárstico é também acessado por meio de poços, subsidiando a ocupação humana nas áreas urbanas e rurais.
Apesar de sua grande importância científica e social, o carste de Lagoa Santa é bastante vulnerável por estar localizado em uma região populosa e industrial. Mesmo estando em uma área de proteção ambiental (a APA-Carste de Lagoa Santa), a maior parte das cavernas sofreu interferências diretas ou indiretas das atividades humanas. Do acúmulo de lixo e quebra de espeleotemas a mineração predatória, remoção de vegetação e solo, e assoreamento de cursos d´água, os impactos são muitos e podem ser irreversíveis. Além da necessidade de mais projetos de educação ambiental direcionados à população local, é imprescindível uma fiscalização efetiva. Afinal, quantas respostas o carste de Lagoa Santa ainda pode nos oferecer?