Cientistas transformam os anéis de Saturno em música
Não, não é que Celly Campello resolveu tomar o banho de lua dela em outro planeta. Entenda a física por trás da façanha.
Primeiro, a notícia: compuseram uma música com as luas de Saturno. Não, não é que Celly Campello resolveu tomar o banho de lua dela em outro planeta. O astrofísico canadense Matt Russo, em companhia de seu amigo músico Andrew Santaguida, usou um pouco de física e matemática para extrair notas musicais dos períodos de rotação dos satélites. O resultado você ouve abaixo.
Agora é entender como faz – e depois sair compondo música com o universo todo. Vamos lá: Saturno, além de 62 luas, tem anéis de gás e poeira de 73 quilômetros de largura. É muita coisa em uma órbita só. Esses objetos giram em torno do planeta cada um em uma velocidade diferente, e, é claro, acabam se cruzando em intervalos regulares.
Vamos pegar um exemplo: a lua Mimas dá voltas em torno de Saturno em intervalos de 23 horas. A lua Tétis, por sua vez, completa uma translação a cada 45 horas e 20 minutos. O período de Mimas, portanto, é metade do de Tétis. Ou, em outras palavras, para cada volta que Tétis dá, Mimas dá duas.
Na música acontece algo parecido. Pegue uma nota – pode ser o lá 4, que tem 440 Hz. Isso significa que a onda sonora que forma essa nota oscila 440 vezes em um segundo. Vamos supor que você tenha tocado esse lá em um baixo, que é um instrumento grave.
Se você pegar uma guitarra, que é mais aguda, e tocar exatamente o mesmo lugar do braço, você ouvirá o lá 5 – que é uma versão mais aguda (a chamada oitava) da mesma nota. Esse lá terá o dobro da frequência, 880 Hz.
Como Mimas gira com o dobro da frequência de Tétis, elas são como duas notas musicais, e uma é uma oitava (uma versão mais aguda) da outra. O que levou o astrofísico canadense Matt Russo a pensar: e se alguém transformasse o movimento das luas de Saturno em música de verdade, do tipo que um ser humano pode ouvir?
A ideia veio em boa hora. A sonda Cassini, que chegou a Saturno em 2004 para investigá-lo, chegou ao fim da carreira. No dia 15 de setembro, cairá no gigante gasoso e será esmagada por sua atmosfera. Nada melhor para acompanhar um ato heróico desses do que uma trilha sonora temática, feita com o próprio planeta.
Para isso, o primeiro passo foi imaginar que as 23 horas de órbita de Mimas eram, na verdade, uma frequência, medida em ciclos por segundo – os famosos Hertz (Hz). Faça as contas e você chegará em 0,00001207 Hz.
Esse é um problema literalmente grave. Mesmo a nota mais grave de um baixo comum, de quatro cordas, é um mi de 41 Hz. Para chegar em uma nota aguda o suficiente para um ser humano, precisamos pegar a frequência de Mimas e multiplicá-la por dois (ou seja, subir oitavas) até ela chegar em algo que tenha no mínimo uns 30 Hz.
Vamos lá: eu multipliquei esse valor por dois 21 vezes. E cheguei em 50,6 Hz, o que passa bem perto da frequência de um sol sustenido no baixo, 51,9 Hz. Lindo: Mimas, apesar de não ser estrela, é um sol sustenido. Tétis, portanto, será um sol sustenido na guitarra, com mais ou menos 103,8 Hz.
Faça isso com todas as outras luas, uma por uma, e você chegará em várias notas, uma para cada satélite. Agora é só por essa galera para rodar em uma espécie de Guitar Hero cósmico, em que cada planeta emite sua nota quando completa uma volta. Bingo, o resultado é o vídeo lá em cima (os músicos de plantão vão perceber que o pesquisador subiu mais algumas oitavas para garantir o resultado final).
Isso é legal, mas nem de longe é tão sensacional quanto a segunda parte da música – que é feita usando o período orbital de cada uma das faixas de anéis. Quanto mais perto do centro eles estão, mais rápido eles giram, e mais aguda, portanto, é a nota correspondente a eles. Isso cria um longo movimento de subida na música – aquela sensação de que algo está prestes a explodir, o também que ocorre, segundo os próprios pesquisadores, no final de A Day in the Life, dos Beatles.
“OK”, você dirá, “mas para que serve tudo isso?” Em princípio não precisaria servir para nada. Afinal, isso é que é o legal da ciência e da arte. Mas a verdade é que essa estranha peça tem uma utilidade louvável: permitir que cegos possam “ver”, de alguma forma, os anéis e luas de Saturno pela primeira vez.
A música, acompanhada de uma placa esculpida em madeira com a textura dos anéis, será exibida em uma exposição multissensorial no dia 15 de setembro, para celebrar o fim da missão Cassini. O evento vai rolar no Canadá – sorte deles. Mas dá para ouvir tudo daqui.