9. Superouvido
O ouvido absoluto de Juliana faz com que tudo na vida dela vire música, seja o barulho de uma britadeira, seja as notas do violino
Fêcris Vasconcellos
Superpoder: Ouvido absoluto
Utilidade: Tocar instrumentos musicais sem referências e identificar desafinados.
Frequência: Entre e 0,07% e 0,01% da população
Tudo é música: as páginas da revista virando, a buzina do carro na rua ou alguém apertando insistentemente o botão da caneta. Para Juliana D’Agostini, de 25 anos, qualquer barulho vira diversão. Ela tem uma característica chamada ouvido absoluto, que consiste em uma maior percepção sonora, como se a pessoa ouvisse muito melhor que as outras, em um nível que ela consegue identificar a nota musical de absolutamente qualquer coisa sem referência. Não é que ela escute mais alto que eu ou você: a brasileira ouve mais nitidamente. Há poucos estudos sobre o assunto, mas uma coisa é certa: esse é um dom genético e hereditário. Juliana é musicista e, desde pequena, usa a superaudição como se fosse um quebra-cabeças mental. Brincadeira de criança, para ela, era sentar de costas para o piano e adivinhar que notas estavam sendo tocadas pelo músico.
Saber as notas musicais não é difícil. O problema é identificá-las sem outra referência, apenas ao ouvir. Ainda mais quando o som não é tocado por um instrumento conhecido, mas por um bater de teclas no computador ou de talheres em copos pedindo brindes, você precisa de algo especial. É um superpoder difícil de descobrir – a não ser que o sujeito vá estudar música, já que, do contrário, fica complicado para o dono do ouvido supersensível expressar a compreensão aguçada.
Na prática, o médico explica que a viagem do estímulo auditivo é a mesma, porém alcança uma área mais extensa da massa cinzenta, como se o sujeito com ouvido absoluto processasse o som usando mais a mente. Isso faz com que ele perceba nuances despercebidas para a maioria das pessoas. “Muitas vezes, a área cortical abrangida pela audição dessa pessoa acaba sendo um pouco maior”, diz. Apesar de ser uma característica genética, Borges explica que o treino da habilidade durante a vida de quem tem ouvido absoluto é fundamental para desenvolvê-la.
É bem provável que quem não tenha essa habilidade inata consiga chegar perto. O pesquisador e professor do Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná Maurício Dottori defende que, quanto mais a criança ainda em formação for exposta a sons e referências, mais aguçará esse sentido. “Quem fala línguas melódicas não perde, como vietnamitas e chineses”, diz Dottori. Ele explica que nesses idiomas as diferenças entre palavras são dadas pelo fonema usado na pronúncia – elas têm mais variações de som. Isso refletiria na permanência de ouvido absoluto por toda a vida. É verdade que a incidência desse poder aparece mais nas etnias orientais.
A pianista acredita ter nascido com essa habilidade e apenas tê-la descoberto depois de estudar esse instrumento, aos 6 anos. Sabe aquela música “dó, ré, mi, fá, fá, fá”, que aprendemos quando crianças? Ao escutar a melodia, logo nos lembramos da letra, que remete ao nome das notas correspondentes. É exatamente o que acontece com o ouvido absoluto. “Ao escutar uma música, me vem à cabeça o nome de cada nota que soa”, diz Juliana. Para a musicista, a pior parte de ter ouvido absoluto é não saber como é com todo mundo: ouvir uma música sem imediatamente identificar as notas que a compõe. A desafinação também enloquece a musicista, e não é por vício da profissão – desde que os instrumentos estejam bem afinados, dá para engolir qualquer Michel Teló. Já um cantor de chuveiro com garganta amadora pode ser cruel para a pianista. Segundo Borges, sons que são imperceptíveis ou muito ao fundo para a maioria das pessoas são mais audíveis aos donos de ouvido absoluto.
Por causa da dificuldade no diagnóstico, já que a condição não altera a vida do sujeito em mais nada, não se sabe precisamente quantas pessoas com o superpoder existem no mundo. A estimativa é tão variável que oscila entre uma para cada 1,5 mil pessoas ou uma para cada 10 mil. No universo de estudantes e profissionais de música, esse número saltaria para entre 5 e 50%, com maior incidência no continente asiático.
Juliana afirma que o superpoder lhe serviu para ter vantagens nas aulas de percepção da faculdade de música na USP. O talento para distinguir as notas é um facilitador também para quem decide seguir a carreira de maestro, pois o profissional vai saber precisamente o que está desafinando em uma orquestra. Mas pode torná-lo um chato – imagine alguém reclamando que seu assobio ou sua digitação no computador não estão no tom correto?
O interessante é que o superpoder tem uma espécie de antagonista. Uma condição ainda mais incomum faz com que o sujeito não distinga absolutamente nenhuma entonação sonora. Chamada de amusia, essa característica faz com que a pessoa não entenda as alturas (notas e tons dos ruídos, canções ou uma britadeira) e ouça tudo absolutamente igual. Longe de ser apenas alguém que não aprecia música, esse sujeito está fadado a uma vida sem entender ironias, sarcasmos e até perguntas, variações linguísticas possíveis por meio da emulação de uma ou outra entonação. Essa pessoa aprenderá a falar, diz Dottori, mas terá um sotaque esquisito – imagine falar sem entonação? Mas o problema até tem vantagens: seja uma música medonha, seja uma canção linda, o sujeito escutará a mesma coisa – um alento para quem tem vizinhos com um gosto musical duvidoso.