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Além do limite

O risco à nossa volta aumenta o tempo todo, mas há pessoas que querem ainda mais. Estudos recentes mostram o que está por trás desse desejo

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h47 - Publicado em 30 nov 2000, 22h00

Rafael Kenski

Quem não aceita correr riscos não consegue nem nascer. Afinal, o parto em si já implica a sua dose de perigo. Daí por diante todos estamos sujeitos ao risco – desde ser atropelado ao atravessar a rua até perder o emprego. Nos últimos tempos, no entanto, muitas pessoas parecem estar decididas não apenas a não evitar uma vida marcada pela aventura, mas, ao contrário, a correr atrás dela. A disposição a se arriscar motivou o esloveno Davo Karnicar a subir, no último 7 de outubro, até o topo do Everest – a montanha mais alta do mundo – e descer de esqui de uma só vez até o acampamento base, 3 500 m abaixo. A sensação de frio na barriga buscada por Karnicar é a mesma que alimenta a euforia de investidores que apostam bilhões em mercados instáveis ou que estimula muitas pessoas a trocar de emprego em busca de novas oportunidades. Enfim, seja em grandes corporações, em regiões inóspitas do planeta ou simplesmente no dia-a-dia de cada um de nós, o ditado “quem não arrisca não petisca” tem sido levado a limites extremos.

É curioso que, num mundo em que o risco está tão disperso e presente – nos assaltos em via pública, no consumo de drogas ou no sexo sem proteção –, tantas pessoas recorram à pratica de esportes radicais ou ao uso massivo de jogos de azar para aumentar a quantidade de tensão e adrenalina em suas vidas. Um estudo feito no ano passado pela empresa de internet Brazil Outdoor mostrou que o número de praticantes de montanhismo no Brasil aumentou 157% entre 1995 e 1998. “O mercado de ecoturismo, que é a base para os esportes de aventura, deve crescer entre 500% e 600% nos próximos três anos”, afirma Rogério Ribeiro, diretor de Marketing da Adventure Sports Fair, uma feira de produtos e serviços ligados à aventura, realizada em novembro, que reuniu cerca de 71 000 pessoas em São Paulo. Esportes como vôo livre e rafting (descida de corredeiras com botes) ganham espaço e tornam-se populares em programas de TV e em comerciais – uma forma que as empresas encontraram de associar as suas marcas a saúde, ousadia e natureza.

Mas a busca de emoção não ocorre só em campo aberto. Dentro de escritórios refrigerados, os executivos também buscam cada vez mais a adrenalina. “Ainda vale a regra de que quanto maior o risco, maior o lucro”, afirma James Wygand, diretor para o Cone Sul do Control Risk Group, uma firma de consultoria especializada em análise de risco. Em busca de mercados cada vez maiores, companhias se expandem ao redor do mundo e não podem mais contar com os governos de seus países de origem para lhes garantir segurança. “As empresas estão sujeitas a economias instáveis, fraudes e até mesmo a conflitos étnicos, que aumentaram muito com o fim da Guerra Fria”, diz Wygand. “Mesmo assim, elas estão dispostas a apostar alto para alargar suas margens de lucro.” A busca por maiores ganhos também faz empregados e pequenos investidores ganharem coragem para enfrentar mais riscos. Nos Estados Unidos, a taxa de pessoas que abandonaram por vontade própria o emprego no ano passado é a mais alta dos últimos 10 anos. Nesse mesmo período, a porcentagem de famílias que aplicam em ações – uma opção mais arriscada de investimento – subiu de 12% para 30%.

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Saber lidar com o risco tornou-se uma habilidade muito desejada, seja no alto de uma montanha seja no topo de uma grande corporação. “O risco nos traz o prazer de superar dificuldades”, afirma o alpinista brasileiro Thomaz Brandolin. Em 1999, depois de participar de expedições ao Aconcágua e ao Everest, ele se juntou a uma equipe canadense e tornou-se o primeiro brasileiro a atingir o Pólo Norte geográfico. Não foi o seu feito mais difícil: no ano anterior, ele tentou, sem sucesso, chegar ao Pólo Norte magnético, tendo como companhia apenas um cachorro. Enfrentou ursos polares e caminhou sob um clima de 50ºC negativos (com o vento, a sensação térmica é de 70ºC negativos) por camadas de gelo que poderiam facilmente se quebrar. Não teria ninguém para pedir ajuda caso algum acidente acontecesse.

De volta ao Brasil, Brandolin utiliza a experiência adquirida para treinar executivos. Ele montou uma firma de wilderness, um sistema de recursos humanos que submete funcionários que nunca saíram de trás de uma mesa de escritório a escaladas, corredeiras e trilhas em florestas. A técnica é utilizada ao redor do mundo desde a Segunda Guerra Mundial, mas só recentemente tornou-se popular no Brasil. “Esse tipo de treinamento retira a pessoa das atividades nas quais se sente confortável e expõe as suas emoções e dificuldades”, diz Brandolin. “É uma forma de preparar os executivos para um mercado cada vez mais competitivo e movediço.”

A necessidade, e também a vontade, de correr riscos é uma característica da espécie humana. “O risco traz muitos benefícios econômicos e psicológicos”, afirma o psicólogo Gerald Wilde, da Queens University, no Canadá. “É impossível eliminá-lo das nossas vidas.” Ele acredita que em qualquer atividade busca-se sempre manter um nível razoável de risco, que traga vantagens como economia de tempo e dinheiro ou simplesmente a quebra da monotonia. Tudo funcionaria de acordo com um cálculo simples: depois de perceber os perigos envolvidos na situação, cada um estima os riscos que está disposto a suportar e os equilibra de acordo com os benefícios que espera receber. Qualquer tentativa de eliminar uma fonte específica de risco, diz a teoria, implica na sua compensação com o aumento do risco em outro aspecto da vida da pessoa. Pesquisas feitas na década de 80 pela University College de Londres, por exemplo, mostram que, em países onde o uso do cinto de segurança tornou-se obrigatório, o número de mortes relacionadas a fatores como colisão contra o vidro dianteiro diminuiu, mas a taxa de mortalidade no trânsito permaneceu a mesma. “É como se as pessoas ‘consumissem’ a segurança que elas adquiriram em outras formas de risco, como maior velocidade ou uma direção mais agressiva”, diz Wilde.

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Mas se as pessoas tendem a manter sempre o mesmo nível de risco, por que só agora os esportes de ação se tornam populares? Como explicar a adesão de pessoas ao base jump, uma modalidade de pára-quedismo em que se salta de prédios, pontes ou despenhadeiros e na qual o praticante tem poucos segundos para abrir o pára-quedas e absolutamente nenhum tempo para corrigir qualquer erro? “De um modo geral, temos hoje muito mais segurança em nossas vidas do que nossos bisavós. A nossa expectativa de vida aumentou e muitos perigos já foram eliminados da nossa vida cotidiana”, afirma Wilde. “Mas o nosso gosto por perigo não desapareceu. Por isso inventamos novos jeitos de correr riscos.”

Por essa mesma razão tantas pessoas estão empenhadas em viver com doses maiores de emoção. Muitos trocam o fim de semana no clube por uma tarde de rafting. Outros trocam uma tarde no sofá acompanhados de um bom livro por uma sessão de rapel (descida de encostas por dentro de cachoeiras). Trata-se geralmente de pessoas que têm segurança na sua rotina diária e na profissão. Da mesma forma, segundo essa teoria, quem está submetido a riscos no dia-a-dia, como a vida em favelas ou em áreas de guerrilha, tende a procurar diversões mais tranqüilas. São pessoas que se dão por satisfeitas com um passeio na praia ou uma ida à igreja.

Entre os aventureiros, o objetivo não é mais terminar uma expedição, mas fazê-la da forma mais difícil, arriscada ou intensa. É o caso do americano Robert Webb, que, em 1998, conseguiu a façanha de atingir seis vezes o cume do Monte Shasta, na Califórnia, em apenas 24 horas. Em cada uma das escaladas, ele teve que subir 2 179 metros e descer de esqui a mesma distância. Ao todo, subiu mais de 13 km em apenas um dia.

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Feitos como esse podem soar como pura maluquice, mas o fato é que, além das motivações sociais e psicológicas, o risco traz prazer ao corpo. “Seja em esportes radicais, jogo, drogas ou sexo, o risco funciona da mesma forma: um grande prazer seguido de depressão”, afirma o neurofarmacologista George Koob, da Universidade da Califórnia, em San Diego, Estados Unidos. Com o tempo, os efeitos positivos tendem a diminuir e os negativos a aumentar. “É como se o nosso corpo limitasse a quantidade de prazer que podemos ter”, diz Koob. Ou seja, em qualquer uma dessas situações de risco, o abuso é o problema. “Hoje em dia não temos mais paciência com atividades muito demoradas e as pessoas são estimuladas o tempo todo a buscar emoções mais fortes e mais rápidas”, afirma Koob.

Ao contrário das drogas, o risco dificilmente vicia. No entanto, existem algumas pessoas mais dispostas a enfrentar riscos do que outras. Em 1991, o psicólogo Frank Farley, da Temple University, na Filadélfia, Estados Unidos, caracterizou um tipo de personalidade especialmente disposto a emoções fortes. Não só os esportistas aventureiros fariam parte desse grupo, mas também jogadores compulsivos e até mesmo pessoas que buscam conquistas intelectuais mais ousadas, como o físico Albert Einstein.

A origem desse tipo de comportamento ainda é desconhecida. Alguns cientistas apostam em um componente genético: entre cinco e dez genes seriam responsáveis por fazer alguém trocar um pote de sorvete em frente ao videocassete por um penhasco de centenas de metros de altura. Uma possibilidade é que os genes definem a quantidade de adrenalina que o organismo libera em situações de estresse. Uma pessoa que libera muito desse hormônio em uma ocasião de risco tende a se satisfazer com qualquer pequena emoção. Da mesma forma, quem produz uma menor quantidade busca sensações mais fortes para sentir os mesmos efeitos no organismo. “Mas até o momento não há como ter certeza sobre a origem da propensão ao risco”, afirma Koob.

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Além de variar de pessoa para pessoa, a vontade de se arriscar modifica-se com a idade. “As pessoas tendem a ser mais tolerantes em relação ao risco quando são jovens, e isso tem uma importante função no desenvolvimento da individualidade”, diz a socióloga australiana Deborah Lupton, autora do livro Risk (Risco). “Mas quando organizam a sua vida e adquirem um emprego fixo, uma família e as prestações da casa própria, elas tendem a se tornar mais conservadoras e evitar os riscos.”

As atividades perigosas podem ainda ser uma forma de resistir às normas sociais dominantes, quando se expressam em atividades como dirigir bêbado ou em alta velocidade. Seja como for, é inegável que não é possível viver sem enfrentar perigos. A busca da aventura é uma forma de cada um testar os próprios limites e se sentir mais vivo. “Devemos acrescentar riscos na nossa vida da mesma forma que colocamos sal na sopa”, diz Gerald Wilde. “Nem muito, nem pouco. Apenas a quantidade ideal”.

Para saber mais

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Na livraria: Risk Deborah Lupton, Editora Routledge, Estados Unidos, 1999

Na Internet: Target Risk

psyc.queensu.ca/target/index.html

rkenski@abril.com.br

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