Avareza
O mesmo instinto que leva o cachorro a esconder o osso faz você poupar para comprar um carro - e, de quebra, garante a sobrevivência das espécies
Cristine Pires
Pão-duro, canguinha, unha de fome, mão de finado – a lista de apelidos está lembrando um tio que não abre a mão nem para dar tchau? Pois saiba que ele não está sozinho. A avareza não é uma exclusividade humana, bem pelo contrário: é uma questão de sobrevivência para todas as espécies. “Todas as criaturas são egocêntricas e egoístas, porque, instintivamente, desejam e procuram energia e outros recursos”, diz o biólogo Michael Soulé, professor emérito de estudos ambientais da Universidade da Califórnia. É esse instinto que leva o cachorro a enterrar o osso para comer mais tarde e você a fazer uma poupança para trocar de carro. Mas há uma diferença fundamental – a consciência do egoísmo e da avareza, ou seja, de poupar para não usar mais que o necessário é exclusiva do bicho homem – nem mesmo os macacos, as baleias e os golfinhos, com cérebro mais desenvolvido, têm essa capacidade, afirma Soulé. Assim, só mesmo um humano poderia nadar em uma piscina de moedas como o Tio Patinhas – jamais um pato, mesmo que a caixa-forte estivesse cheia de suculentos insetos ou quaisquer outros alimentos de predileção da espécie.
Assim, há duas formas de perceber avareza: aquela necessária à sobrevivência, intrínseca a todos os seres vivos e a que trata do acúmulo desnecessário, humana e mais vinculada a um traço cultural. A avareza do bem, que garantiu a nossa presença na Terra, é tão antiga quanto a própria vida. O pecado surge das raízes biológicas para a sobrevivência – a necessidade e o desejo, diz Soulé. Se nossos ancestrais deixassem de buscar comida e sexo, não teriam resistido nem se preocupariam em manter a espécie. “Todas as espécies seriam extintas em poucos meses ou anos sem impulsos egoístas”, afirma o especialista. No entanto, a necessidade é diferente da ganância. Todas as criaturas desejam e procuram energia e outros recursos de forma automática e instintiva, competindo com seres de sua e de outras espécies por recursos. Até as plantas competem por luz e nutrientes do solo. Já os humanos são capazes de saber, entender, debater, confessar e até mudar seu comportamento.
A nossa avareza é relativamente nova: surgiu há cerca de 10 mil anos, com a transição do homem caçador e coletor para o estágio civilizatório. Quando nos civilizamos, criamos instituições poderosas, como exército, dinastias, corporações, e, claro, dinheiro. O resultado é a manifestação dessa conduta em diferentes graus. “A ganância surge espontaneamente devido ao egocentrismo, incluindo egoísmo e orgulho, e pode se tornar virulenta quando os seres humanos são muito numerosos e os recursos e o poder se concentram em poucas mãos”, afirma Soulé.
A ciência segue em busca dos motivos para esse comportamento antinatural. O que se pretende saber é se existem áreas do cérebro capazes de desencadear a cobiça e, consequentemente, o desejo de ter mais e mais. Para Soulé, a resposta é simples: sim. O biólogo lembra que pelo menos dez diferentes centros no cérebro são ativados quando a pessoa tem impulsos para praticar inveja, orgulho, ódio, gula, preguiça, luxúria e avareza, a maior parte deles localizada no sistema límbico, responsável pelas emoções.
Embora partes da área cerebral possam ser acessadas por comportamentos apontados como pecaminosos, não foi encontrado um gene ou definida uma região cerebral responsável diretamente pela sovinice. “O problema é como chegar à ciência da ganância sem a ajuda de células ou definições sólidas”, afirma o neurocientista John Medina no livro The Genetic Inferno, Inside the Seven Deadly Sins.
Na tentativa de descobrir suas bases, a psicologia chegou à conclusão de que a ganância é a ambição nua (agressão), um medo paralisante de desenvolvimento (ansiedade) ou a combinação de ambos. “Enquanto não há muito a se dizer sobre a biologia da avareza, podemos falar sobre medo e ansiedade”, defende Medina. Para ele, a cobiça, no sentido do desejo excessivo por mais e mais posses, é uma forma primitiva de detectar o perigo, o medo de que, de alguma forma, algo saia do controle – por isso o acúmulo, com o intuito de se precaver contra essa suposta ameaça – que nem sempre realmente existe. Medina usa como exemplo a história de Pedro, um português que teve uma infância muito pobre e foi tentar a vida nos Estados Unidos. Lá, realizou o sonho americano e conseguiu reunir um bom patrimônio. Mesmo assim, levava consigo atitudes dos tempos de miséria, como rasgar guardanapos pela metade para utilizá-los duas vezes e chegava ao ponto de recolher alimentos que considerava ainda bem aproveitáveis em latas de lixo da cidade. Tudo para economizar um dinheiro que, naquela altura de sua vida, já não faria falta para sua sobrevivência.
Medina compara essa atitude a uma reação de verdadeiro pavor. “Pedro certamente experimentou muito medo: fobia, ansiedade e até mesmo algum evento de estresse pós-traumático. Quando se vê diante da possibilidade de perder dinheiro na bolsa de valores de Chicago, é como se estivesse cara a cara com um urso rosnando, pronto para atacar”, afirma. O medo da pobreza acabou causando uma reação extrema de sobrevivência, de guardar para garantir o futuro, mesmo quando não era mais necessário – e isso só os homens fazem.
Para a Igreja Católica, a inveja não passa de pai para filho inexoravelmente, mas há um porém. “Embora não seja transmitida, essa característica pode se perpetuar por uma má formação de consciência moral no ambiente familiar”, diz o padre Leandro Miguel Chiarello, diretor da Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Os cristãos definem o pecado da avareza como um apego exagerado aos bens materiais, de modo especial pelo dinheiro, ouro, em resumo, pelos objetos de alto valor monetário. “Este pecado torna a pessoa mesquinha e egoísta e a deixa cega para a realidade do próximo, matando no avarento o princípio fundamental do cristianismo: a caridade”, afirma.
Sob a ótica religiosa, são pessoas que não conseguem ser solidárias pela incapacidade de abrir mão daquilo que é seu em favor do outro. Já para a psicologia, esse apego não é, necessariamente, por dinheiro, mas sim pelo acúmulo – de riquezas, objetos, bens, coisas que não valem nada para as outras pessoas.
O peso dos hormônios
Você tem um amigo que faz questão de dividir a conta, indicando detalhadamente quem bebeu água, quem preferiu vinho ou quem não partilhou do couvert? Ou uma amiga que esbanja generosidade, gastando muito mais do que devia com ela mesma e também com os outros? Um estudo desenvolvido em 2009 no Departamento de Economia da Universidade Graduada de Claremont (EUA) indica que o clichê da mulher esbanjadora e do homem poupador tem mesmo raízes científicas. Eles são mesmo mais pães-duros, e a culpada é a testosterona, hormônio masculino, que interfere no nível do controle na hora de lidar com recursos financeiros. Já a ocitocina, hormônio mais presente nas mulheres, estimula a generosidade – não é à toa que é chamada de hormônio do amor, responsável pelo cuidado com a prole e com a amamentação dos filhotes.
A testosterona funciona como um antagonista da ocitocina, explica o neuroeconomista Paul Zak, diretor-fundador do Centro de Estudos de Neuroeconomia e professor da universidade. Em um estudo inicial, avaliou-se que os níveis matinais de testosterona influenciavam no potencial de ganho e perda de dinheiro de 17 negociantes de Londres. Assim, os pesquisadores foram em busca das razões da relação entre o hormônio e os lucros.
Cada estudante recebeu uma bisnaga de gel com testosterona ou placebo em um teste cego e teve amostras de sangue recolhidas antes e depois de aplicar o produto para aferir a presença do hormônio. Depois, participaram de um jogo de computador, no qual tinham de partilhar quantias em dinheiro, conforme o que achassem justo.
Os voluntários com maior concentração de testosterona no sangue se mostraram 27% mais mesquinhos quando se tratava da divisão de valores do que os que passaram o gel sem hormônio. O resultado foi o oposto quando os estudantes se lambuzaram de gel com ocitocina. Neste caso, a generosidade dos participantes aumentou em nada menos que 80%. Como os homens têm 10 vezes mais testosterona do que as mulheres, costumam ser mais egoístas do que elas. Algo que certamente muitas mulheres já imaginavam…
Demônio – Mamon
Uma mistura de ganância e obsessão por acumular, com uma pitada de egoísmo, a avareza é simbolizada por Mamon, demônio chamado de, veja só, o Senhor do Dinheiro. O coisa-ruim que representa o pecado do pão-durismo é um dos sete príncipes do andar de baixo. E, se você pretende vender a sua alma ao diabo, este é o seu homem no inferno. Mamon é o demônio que anda por aí com um saco de dinheiro, comprando almas aflitas a preço de banana.
Sovina é pouco
O comportamento egoísta e de apego aos bens materiais inspirou a criação de muitos personagens e também trouxe à tona histórias reais
Tio Patinhas Eleito o mais rico do mundo da ficção pela revista Forbes em 2011, o pato quaquilionário literalmente nada em dinheiro, mas não gasta um único centavo ¿ nem a moeda da sorte ¿, deixando os sobrinhos na maior dureza. Sua fortuna está avaliada em cerca de R$ 70 bilhões, segundo o ranking. Inspirado em Um Conto de Natal, de Charlie Dickens, é chamado de Uncle (Tio)Scrooge ou Scrooge McDuck em inglês.
Ebenezer Scrooge
Um Conto de Natal, escrito por Charlie Dickens em 1843, conta a trajetória de Ebenezer Scrooge, um milionário mesquinho e solitário que se irrita com a alegria que toma conta de todos no Natal. Os três fantasmas de passado, presente e futuro mostram como será a sua vida se continuar sem abrir a mão nem para dar bom-dia e o milionário acaba caindo em si e se tornando melhor. Spoilers liberados aqui, já que a obra é de 1843.
Harpagão de Souza
O dramaturgo francês Molière também imortalizou um dos sete pecados com a obra O Avarento, de 1668, que serve de inspiração até hoje para peças teatrais. Fala de Harpagão de Souza, um viúvo rico ganancioso, pai de um casal de filhos que mantêm relacionamentos amorosos com parceiros de classes sociais inferiores. O pão-duro ostenta no dedo um anel de brilhantes e tem uma arca cheia de dinheiro no jardim.
Michelangelo
O renascentista italiano Michelangelo (1475-1564) viveu como um mendigo apesar de suas posses. É o que conta o professor de história Rab Hatfield, em seu livro A Riqueza de Michelangelo. Seu patrimônio era de 50 mil florins, algo em torno de US$ 55 milhões, pagos em especial pela Igreja Católica por conta de suas obras. Mesmo assim, vivia esfarrapado, comia e dormia mal e não ligava para a própria aparência.
Hetty Green
A bruxa de Wall Street, como foi apelidada, apesar da fortuna de US$ 100 milhões na época em que viveu (1834-1916), não trocava o vestido e lavava apenas a parte de baixo, que arrastava no chão, para não gastar sabão. Ganhou as páginas do Guiness Book como a mulher mais avarenta do mundo. Apesar da notória mão de vaca, Hetty foi uma grande mulher de negócios e soube multiplicar a herança do pai.
Meu, meu, meu!
A criança carente de hoje vai ser o pão-duro de amanhã para compensar a época de vacas magras
A falta de um colinho na infância pode transformar um pequeno carente em um adulto pão-duro. Embora haja um processo comum a todos os seres vivos de pensar e garantir a própria sobrevivência, o que vai definir se o sujeito será um avarento contumaz ou um gastador compulsivo é a história de vida dele. “As pessoas têm um desenvolvimento único e pessoal, o que determina sua forma de interagir com o ambiente e dele extrair a segurança necessária”, diz o neurocientista da USP Gilberto Xavier. “Os avarentos sentem necessidade de acumular e guardar. E dificuldade para compartilhar. É muito provável que isso tenha relação com a história de vida dessas pessoas.”
Não se trata apenas de um apego excessivo ao dinheiro, e sim de um receio de perder o que se tem, das roupas às propriedades, da comida ao tempo, dizem os psicanalistas Fábio Belo e Lúcio Marzagão no artigo Avareza e Perdularismo, para a Universidade São Marcos, de São Paulo. O comportamento é consequência do que apontam como a pior das privações: afeição e acolhimento. Então, se repete a cena traumática. É como se o avarento quisesse ao mesmo tempo sobreviver e provar que pode superar os tempos de escassez eternamente.
O certo é que, segundo a psicanálise, todos já experimentamos a avareza em função da ligação a algum objeto especial: o travesseirinho da infância, uma flor seca dada pelo primeiro namorado, uma foto. A explicação é que o apego a coisas, objetos, memórias está sempre em continuidade com nossa história amorosa. O problema é que o avarento patológico tem um apego generalizado a suas coisas, quase sempre com foco no dinheiro. Daí a necessidade de tentar entender por que as relações amorosas do pão-duro estão tão comprometidas pela lógica racional da economia
Freud também meteu a colher na explicação da avareza. Em uma interpretação das teses do psicanalista, o comportamento pode estar conectado a problemas na chamada fase anal do desenvolvimento psicossocial. O cocô dos pequenos tem, para eles mesmos, um valor simbólico. A criança oferece suas fezes como um presente valioso à sua mãe, pois são um pedaço dela. “O avarento é como a criança que retém as fezes e quer guardar o que julga valioso apenas para si mesmo”, afirma Fábio Belo.
A hora de procurar ajuda
Incapazes de se reconhecerem como egoístas e gananciosos, os avarentos normalmente só se dão conta de sua situação quando as pessoas próximas reclamam. Dos pacientes com esse tipo de comportamento que contatam o consultório de Patrícia de Rezende, psicóloga e orientadora em finanças pessoais, a maioria chega por recomendação de familiares e amigos ou por orientação médica. A surpresa é que, na hora de relatar o que os leva a buscar o tratamento, a maioria se define como esbanjadora. Reclama que os gastos são muitos e que não há como arcar com eles. “Mas essa escassez financeira, na verdade, esconde o real problema. O dinheiro está guardado e há uma dificuldade imensa em gastá-lo.”
O primeiro passo, afirma a psicóloga, é entender as razões para esse tipo de comportamento e descobrir de que forma é possível ter o controle necessário sobre o medo excessivo da perda, econômica ou afetiva. Isso é possível com tratamento médico e terapia de apoio.
Já para a psicanálise, a cura da avareza está ligada ao entendimento do contexto de nossas trocas – financeiras e de carinho. “Por exemplo, todo mundo sabe que ter um filho é algo muito caro atualmente. Mas é completamente absurdo reduzir tudo o que a experiência de ter um bebê traz para os pais aos gastos que essa operação vai gerar”, afirma Belo. Para o especialista, curar-se da avareza é abandonar a ideia de que economizar possa ser uma metáfora válida universalmente para todas as esferas de nossa vida. Afinal, afeto não é coisa que se guarde para ter mais tarde.
Para saber mais
Terapia – Avareza
Ariel Dorfman, Objetiva, 1969
Avareza
Phyllis A. Tickle, Planetanews, 2005
Avareza e Perdularismo
Fábio Belo e Lúcio Marzagão, UFMG https://abr.io/avar