Cidade empilhada
São Paulo poderá abrigar o edifício mais alto do mundo daqui a cinco anos. Veja como ele alteraria o dia-a-dia da maior metrópole do país.
Fabiane Stefano
Aqueles que moram numa metrópole como São Paulo conhecem a via-crúcis de todo dia: dormir tarde, acordar cedo e mergulhar num congestionamento de casa para o trabalho. Mesmo que sejam apenas 400 metros entre um ponto e outro, pode-se levar mais de meia hora para cruzar os 87 andares que separam o apartamento do escritório. Nos horários de pico, os elevadores estão sempre lotados, há filas nos corredores e o sobe-e-desce não tem fim. Mas a correria não pára por aí. É preciso também achar tempo para deixar as crianças na escola, que fica no 45º andar, fazer supermercado no 91º e descer voando ao 20º para não perder o dentista. E, como ninguém é de ferro, três vezes por semana tem academia no 108º. No meio desse corre-corre danado, um mês se passou e você nem sequer se deu conta de que não pôs os pés na rua uma única vez. Tudo aconteceu num edifício só.
Esse cenário pode parecer sonho para alguns e pesadelo para outros. A verdade, porém, é que ele pode se tornar realidade em 2005, acompanhando uma tendência que vem se espalhando por países emergentes (veja página 60). É para essa data que está programada a inauguração, no centro da capital paulista, de um megaedifício de 510 metros de altura com nada menos do que 108 andares – o Maharishi São Paulo Tower. Ele tem a ambição de se tornar o maior prédio do mundo, superando os 452 metros do Petronas Tower, em Kuala Lumpur, na Malásia, o campeão da categoria até o momento.
Castelos isolados
Esse arranha-céu não chama a atenção apenas pelo tamanho. Para começo de conversa, trata-se de um projeto de inspiração esotérica, bancado pelos dólares do guru indiano Maharishi Mahesh Yogi (veja página 59). Além disso, a obra provoca muita controvérsia, pois deve desfigurar uma vasta área do centro velho de São Paulo ao mesmo tempo que pretende revitalizá-la. Ao redor dele será construído um parque de mais de 1 milhão de metros quadrados que riscará do mapa quase 100 quarteirões.
Se for mesmo aprovado e construído, o prédio será uma cidade vertical, quase à parte do resto de São Paulo – seria possível até nascer e morrer sem cruzar o hall de entrada. “A independência do resto da cidade é uma das grandes qualidades da torre”, disse à SUPER o arquiteto Cândido Malta Filho, responsável pela tropicalização do projeto, a adaptação ao Brasil do conceito desenvolvido pela empresa Minoru Yamasaki Associates, nos Estados Unidos.
“Vai ser como morar numa cidade do interior”, sustenta Malta Filho. A arquiteta Raquel Rolnik discorda. Para ela, a superconcentração representa uma arquitetura do passado, geradora de um espaço voltado para si mesmo. “Viveríamos em castelos isolados”, adverte. “Não haveria mais os contrastes que enriquecem as relações humanas no espaço urbano.”
Um projeto com mania de grandeza
Tudo no Maharishi será grande – para o bem e para o mal –, a começar pelo preço: 1,65 bilhão de dólares, sem contar os gastos com as desapropriações de praticamente todo o bairro do Pari. Depois de ocupada, a megatorre terá uma população fixa de 50 000 habitantes, entre escritórios e cerca de 10 000 apartamentos. Calcula-se que outros 50 000 visitantes deverão entrar e sair do prédio para ver amigos, fazer compras ou fechar negócios. Essa soma é mais da metade de Boa Vista, capital do Estado de Roraima. Os autores do projeto, no entanto, ainda não têm todas as previsões. Não sabem, por exemplo, como vão administrar a coleta das 75 toneladas de lixo que serão produzidas diariamente.
Outro efeito à altura do Maharishi é a sombra que ele vai projetar na cidade (veja infográfico abaixo). Até ela gera polêmica. “Casas que utilizam energia solar vão ser prejudicadas pela sombra”, afirmou à SUPER a arquiteta e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), da Universidade de São Paulo, Joana Carla Soares Gonçalves, mestre em impacto ambiental de edifícios altos. Para Cândido Malta, isso é um exagero. “Com as regras atuais de zoneamento e construção na cidade, os prédios um ao lado do outro já causam uma situação equivalente”, diz ele. O arquiteto Antonio Carlos Mingrone, professor da FAU, concorda: “Esse impacto é relativo, uma vez que a trajetória da sombra é dinâmica e não vai encobrir um ponto específico por muitas horas seguidas”, explica.
Segundo a arquiteta Joana Gonçalves, as correntes de vento que vão se chocar contra a torre provocarão turbulências na base do prédio. No caso de um espigão isolado como o Maharishi, ele será o único ponto de contenção dos ventos na área. Com maior velocidade, o ar baterá na construção e será desviado para baixo. “No térreo poderá haver ventos de 50 quilômetros por hora – aquele que não deixa você abrir um guarda-chuva”, diz Joana.
O projeto perturbador é apenas um da série que o guru indiano pretende construir em cada uma das 1 000 maiores cidades do mundo. Todas seguirão os princípios da antiga cultura védica, nascida na Índia no século XV antes de Cristo. A esotérica forma piramidal da torre, por exemplo, não é uma excentricidade. Segundo a empresa, a estrutura ajudará a canalizar a “energia cósmica” para dentro do edifício, produzindo um ambiente feliz entre seus habitantes.
O conceito místico parece pouco convincente para urbanistas ocidentais, mas obedece às preocupações da arquitetura védica com direção, localização e proporção. Assim, a porta da casa tem de estar sempre virada para o leste, a direção da alvorada. Isso faria o morador pensar mais claramente, tomar melhores decisões, ser menos estressado e mais criativo, além de ter mais energia e se sentir menos cansado. Em compensação, morará numa pilha de 100 000 almas.
Uma briga de origens medievais
A julgar pelas aparências, país que se preza tem que ter muitos espigões de concreto e vidro. Principalmente se for uma nação com economia emergente. Mas esse símbolo de status não é de hoje. Na Idade Média, os castelos e suas torres já eram um símbolo de poder. Até a década de 70, os americanos também mostravam a pujança do seu capitalismo construindo espigões cada vez mais altos. Hoje é na Ásia que está ocorrendo uma corrida maluca para saber quem vai ostentar o título provisório – uma vez que sempre é possível construir um maior – de dono do prédio mais alto do mundo. Atualmente, a faixa pertence à Malásia, mas Formosa, Japão e até China – com o projeto da Bionic Tower, de mais de 1 quilômetro de altura – também estão no páreo (veja infográfico). Por esse motivo, é possível que o Maharishi nem reine durante muito tempo – ainda mais se os obstáculos para a construção não forem removidos no prazo, graças à polêmica que cerca o projeto (veja quadro).
Segundo a arquiteta e urbanista Regina Monteiro, da organização não-governamental Movimento Defenda São Paulo, a construção dos espigões nos países asiáticos tem um motivo mais lógico: com pouco espaço físico disponível no solo, o céu acaba se tornando uma opção. Em princípio, São Paulo não teria esse problema, pois conta com 20% de espaços vazios ou subutilizados. Já para a arquiteta Joana Carla Soares Gonçalves, uma cidade muito espalhada acaba reduzindo as áreas verdes originais. Para ela, a verticalização é inevitável. O problema é a maneira com que esses edifícios vão ocupando o espaço urbano. “Tecnologia para construir prédios gigantescos existe”, diz Joana, que questiona as vantagens que São Paulo pode ter com uma megatorre como o Maharishi. “A questão não é se podemos construir arranha-céus, mas se eles vão ser úteis para a cidade.”
“O estilo do prédio não corresponde à arquitetura de São Paulo”, protesta a arquiteta Regina Monteiro. Uma das principais críticas dos especialistas são os antecedentes do projeto. Ele foi projetado para Miami, nos Estados Unidos, e, depois, para uma cidade da Holanda. Como ambos os lugares se negaram a aceitar o arranha-céu, o projeto foi oferecido a São Paulo.
Algo mais
De 1931 a 1954, o Empire State Building reinou absoluto, com seus 373 metros, 102 andares e 1 800 degraus, como a construção mais alta do planeta. Fica no centro de Manhattan, na esquina da Quinta Avenida com a Rua 34. É um dos pontos turísticos mais visitados de Nova York.
À sombra da megatorre
Ao redor do Maharishi São Paulo Tower, haverá um formigueiro de gente e veículos circulando.
Entra-e-sai
Cerca de 100 000 pessoas usarão os 108 andares do edifício, que terá apartamentos, escolas, universidades, hospitais, hotéis, cinemas, restaurantes e clubes. Para acomodar o fluxo diário de veículos, serão necessárias 25 000 vagas. Os prédios-garagens estarão interligados por um metrô de superfície que cruzará o parque.
Arrasa-quarteirão
O prédio deverá revirar o bairro do Pari, antigo berço de indústrias, hoje abandonado e deteriorado. Ocupará 750 000 metros quadrados dentro de um parque de 1 milhão de metros quadrados, o equivalente à área de 70 quarteirões. Terrenos, avenidas e ruas terão de ser desapropriados e liberados para a construção.
Integração
O projeto prevê a construção de um monotrilho unindo estações de trem e de metrô ao prédio. Também serão feitas passarelas para interligar a megatorre ao centro histórico de São Paulo, a cerca de 5 quilômetros.
Ímã de energias cósmicas
Princípios esotéricos da cultura védica indiana orientam a construção.
Coroa mística
No topo do edifício será instalado um símbolo da cultura védico indiana, uma espécie de antena para captar as “energias cósmicas” e trazê-las para o interior da megatorre.
Matéria-prima
Os 108 andares do espigão terão 1,2 milhão de metros quadrados de área útil. Com a mesma quantidade de concreto daria para erguer 100 prédios de vinte andares.
Energia limpa
A iluminação noturna externa do arranha-céu será feita por meio de energia solar, captada durante o dia por células fotovoltaicas instaladas na fachada.
O perigo da chuva
Serão necessários cuidados extras com as fundações. O local que receberá o prédio é um terreno pantanoso. Quando chove, é um dos mais atingidos pelas enchentes.
Torre brilhante
O edifício vai consumir cerca de 150 megawatts por dia, o suficiente para iluminar uma cidade do tamanho de Bauru, no interior de São Paulo. Os empreendedores prometem construir uma usina de gás natural, com capacidade de 105 megawatts, para ajudar a abastecer o prédio de energia.
Quatro em um
A megatorre será construída como quatro torres independentes. Por dentro a pirâmide será oca e dividida em seis módulos com cerca de quinze andares cada um.
Claustro vertical
Cada módulo terá uma fachada interna que dará para uma área de convivência como esta.
Luz natural
Vãos como estes devem garantir iluminação natural para as áreas internas.
Sol encoberto
Durante o solstício de inverno, período em que o Sol passa pela sua maior declinação, a sombra produzida pelo edifício terá nada menos do que 3 quilômetros de extensão por volta de 7 horas da manhã e 5 horas da tarde.
Dólares transcendentais
O ex-guru dos Beatles é o dono do prédio.
A construção da megatorre paulistana vai ser bancada pelo fundo imobiliário do indiano líder espiritual Maharishi Mahesh Yogi. Ele acumulou fama e milhões de dólares como dono da patente das técnicas de meditação transcendental, lançada nos anos 60 como expressão do movimento de contracultura. Sem nada de religiosa, ela é vendida como uma técnica de auto-ajuda, popular entre executivos em busca de terapias antiestresse. Em 1993, seu patrimônio era estimado em 2 bilhões de dólares, incluindo propriedades imobiliárias na Índia, hotéis na Europa e editoras nos Estados Unidos. Guru dos Beatles e de gente famosa na época dos hippies, Maharishi protagonizou em 1968 um escândalo no retiro espiritual de Rishikesh, no norte da Índia: foi acusado por John Lennon de práticas pra lá de profanas com algumas jovens seguidoras. A banda inglesa rompeu com o mestre indiano e Lennon compôs em seguida a música Sexy Sadie, ironizando o líder religioso. Mas o santo de Maharishi era realmente forte. Quando a canção começou a ser gravada – contam os estudiosos do conjunto –, Lennon fez tantas alterações na letra e no título que ela acabou ocultando suas intenções iniciais. O guru escapou ileso.
O meu é o maior
Veja quais são os prédios mais altos do mundo, prontos ou em projeto.
MAHARISHI SÃO PAULO TOWER
São Paulo, Brasil 510 metros (projetado)
EMPIRE STATE BUILDING
Nova York, EUA 373 metros (pronto)
WORLD TRADE CENTER
Nova York, EUA 417 metros (pronto)
SEARS TOWER
Chicago, EUA 443 metros (pronto)
PETRONAS TOWER
Kuala Lumpur, Malásia 452 metros (pronto)
WORLD FINANCIAL CENTER
Xangai, China 460 metros (em construção)
MILLENIUM TOWER
Tóquio, Japão 840 metros (projetado)
BIONIC TOWER
Hong Kong, China 1 128 metros (projetado)
Entre o céu e o inferno
Um longo caminho terá de ser percorrido para o projeto sair do papel.
Por enquanto, a Maharishi São Paulo Tower não passou do plano das idéias. O que se tem é a fachada de uma megatorre e uma polêmica. No Brasil, quem está tocando o projeto é o grupo Brasilinvest, do empresário Mário Garnero, que aguarda aprovação na Câmara Municipal de São Paulo do projeto de lei que vai regulamentar a construção. Para o prédio sair do chão, será preciso desapropriar terrenos, liberar avenidas e ruas e mudar linhas de metrô, ônibus e trem.
Para que isso aconteça, a lei obriga que o empreendedor encomende um estudo de impacto ambiental, que deve ser aprovado pela prefeitura. Só então a obra poderá começar.
Escolhido para receber a torre, o bairro do Pari fica na região central da capital, onde nasceram as primeiras indústrias de São Paulo. Para a construção vingar, toda essa área terá que virar pó. De certa forma, é isso o que está acontecendo, pois a decadência e a desvalorização da área já estão fazendo o serviço.