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Ciganos: a segunda invasão da Europa

Agora eles não vêm da Índia, como há 500 anos, mas dos arruinados países do Leste. Nesse novo mundo, terão de aprender a pagar impostos, mandar os filhos para a escola e não roubar os não-ciganos.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h50 - Publicado em 31 ago 1993, 22h00

Norma Freire

Alguma coisa está acontecendo com os ciganos. Desde o início de 1993, grandes grupos vindos do Leste estão se dirigindo para Paris, onde as mulheres são vistas nas ruas implorando caridade, em nome das crianças. Nesse gesto, que parece parte da sua própria natureza, trazem notícias de perseguições, guerra e miséria.

Certo ou errado? Errado. Não faz parte da natureza de ninguém implorar caridade. Este é apenas um dos mitos, talvez o mais perigoso, que cercam os ciganos. O nomadismo, considerado como um dado natural deste povo, é outro mito. Segundo o sociólogo Jean-Pierre Liégeois, professor da Universidade de Paris V, “o nomadismo é mais um estado de espírito do que de situação. Sua importância é mais de ordem psicológica que geográfica”.

Muitos ciganos estabeleceram-se na Europa, primeiro no Leste, depois no Oeste, há mais de 500 anos. Admite-se que saíram da Índia, em repetidas migrações, e chegaram à Pérsia no século XI. América e Austrália só foram atingidas no século XX. A chegada da nova leva de migrantes do Leste provoca tensão e ansiedade. Povo que desconheceu a escrita até o século XX, os ciganos acreditam numa história que não está nos livros e se revela em tradições, símbolos e costumes. Alguns vêem surgir, na sombra dos recém-chegados, a marca da fatalidade e do destino.

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O muçulmano Faik Serifovic, cigano nascido na província sérvia de Kosovo e com domicílio na Suíça, fica arrepiado quando escuta a palavra fatalidade, usada no sentido de determinismo. Membro do comitê executivo da Romani Union, uma associação internacional de ciganos com direito a voz consultiva na assembléia das Nações Unidas, quer fundar um centro cultural cigano. Por causa desse sonho, que persegue há vinte dos seus 43 anos, já perdeu negócios, um restaurante e até a primeira mulher. Ele sorri como se estivesse diante de uma visão do paraíso quando encontra, em suas andanças como revendedor de porcelanas, um camping com água encanada e luz elétrica, que admite ciganos e é dotada de escola maternal. São raros tais campings no Ocidente e inexistentes na Europa Oriental. Serifovic acredita que, com eles, o destino cigano seria melhor.

Para o bem de todos, Serifovic quer ter certeza de que os recém-chegados do Leste compreendem que para viver na nova terra em relativa paz e segurança será preciso pagar impostos, mandar os filhos para a escola e não roubar os não-ciganos. Caso contrário, teme que eles estarão colocando uma arma nas mãos daqueles que, em qualquer parte, consideram os ciganos naturalmente ignorantes, sujos, preguiçosos, ladrões e manipuláveis.

Sinal dos tempos, Faik Serifovic acha que o espancamento e a imposição da mendicância às mulheres é motivo para a convocação de uma Kris — o tribunal cigano. Não faz muito, esses delitos não seriam capazes de provocar um minuto de atenção em homens respeitáveis. Algumas mulheres de idade e posição têm participado das Kris, como observadoras. Em muitos grupos, só podem emitir opinião através dos pais, maridos ou filhos, sob pena de colocar os homens da família na boca do povo. Na prática, isso poderia ser a pá de cal em acordos de casamentos e negócios.

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A realidade prosaica no dia-a-dia das ciganas desmente a imagem exaltada que dela fazem os gadjé. Vendedora de ilusões, profetiza de sonhos, leitora da sorte, ela não precisa das cartas para prever o próprio destino. Na tradição cigana, cabe à mulher o papel de guardiã do patrimônio cultural e transmissora dos valores sociais do grupo. O homem é símbolo da autoridade e guia. Na prática, isso significou, para a mulher, uma liberdade estritamente vigiada. A juventude de uma cigana acaba aos 16 anos, idade em que geralmente se casam. Aos 12 anos, muitas famílias preferem tirar as filhas da escola, por temer que elas se percam na má companhia dos gadjé.

A virgindade está entre as primeiras virtudes de uma jovem. No Brasil, uma noiva cigana virgem pode custar até o preço de um automóvel, em moedas de ouro. Trata-se de uma quantia simbólica, embora este dote constitua um motivo de exaustivas discussões entre os parentes. Em muitas famílias, são os pais que ainda decidem os casamentos. Alguns consultam a opinião dos filhos, outros não. Entre os jovens, está se tornando cada vez mais comum o costume manouche de casamento por fuga. Depois de uma semana, o casal retorna ao grupo e passa a viver com a família do marido enquanto os mais velhos decidem o valor do dote. Esse período pode ser difícil para a mulher. Ela só é considerada realmente casada depois do nascimento do primeiro filho.

Muitos dispensam as cerimônias de casamento no civil e no religioso. Mas os Roma e os Gitanos não dispensam as grandes festas de casamento, em que todo mundo é convidado. A tradição manda que as matriarcas das famílias exibam, durante o baile, um lencinho com as manchas de sangue do rompimento do hímen, assunto que cabe a elas resolver na intimidade. Desvirginada, a noiva volta para o salão e dança com o noivo. “É de tal beleza, isso-” comenta a gitana Mossa Poubil, quase 30 anos, autora de um livro-depoimento sobre a condição da mulher cigana. “Acabaram de tirar-lhe as cinc estrellas e ela dança — levanta os braços no ar, move as mãos, os ombros, o corpo todo. Isso é flamenco! Ela dança e chora e está contente — e todo mundo está contente e dança também”.

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Para se casar, é importante que uma jovem cigana seja trabalhadora, submissa, saiba ganhar a vida e guardar silêncio. Muitos ciganos consideram natural que o marido passe dias fora de casa, embebede-se com os amigos e freqüente assiduamente a intimidade das não-ciganas. Em público ou mesmo em família, a tradição proíbe a mulher de queixar-se. Quando a situação no casamento torna-se insustentável, a nora pode tentar obter o apoio da sogra, o que nem sempre lhe é dado. As mulheres ciganas raramente são solidárias em lamúrias. A volta à casa paterna não é estimulada. Nesse caso, a família do marido pode reivindicar e receber a guarda dos filhos. O tempo, dizem, acaba por ajeitar as coisas.Cèline La Fleur, 58 anos, 13 filhos e 50 netos, admite que muitos ciganos estão mudando. As filhas de Cèline usam calças compridas, minissaia, shorts e aposentaram o lenço na cabeça, antigo símbolo cigano de aliança de casamento. Mas, como a maioria das ciganas, concebem a maternidade e o casamento como seu único destino. Irmã Cecília queria algo além. Cigana manouche, tornou-se freira e hoje vive e trabalha entre ciganos de acampamento.

Em algumas famílias, a roupa dos homens não é lavada junto com a das mulheres, e não é permitido ao marido acariciar a esposa, na intimidade. Antigamente, as mulheres eram as primeiras a exigir o cumprimento dessas proibições, consideradas como manifestação de respeito. Mas essas são, segundo Mossa Poubil, cada vez mais raras, assim como as carroças puxadas por cavalos, que acomodavam famílias de mais de quinze pessoas.Os estudiosos da realidade cigana insistem no perigo das generalizações em relação a um povo que não é um; são muitos. Quando apareceram pela primeira vez na Europa, em plena Idade Média, apresentavam-se como príncipes e reis do Egito, peregrinos expulsos da Terra Santa, descendentes malditos do Caim bíblico ou povo abençoado por Jesus, de quem teriam aliviado o sofrimento no Calvário. Nas esquinas, as mulheres ganhavam a fama de oráculo, com especial aptidão para aliviar os bolsos dos curiosos do oculto e atrair a ira das autoridades. O papel de intérpretes do desconhecido não lhes foi benéfico, embora, muitas vezes, representasse a única fonte de renda da família. O comércio com as coisas do sobrenatural faz parte do folclore cigano e sempre foi um terreno restrito a mulher.

Esse primeiro contato histórico ainda marca as relações entre ciganos e gadjé, como chamam aos não-ciganos. Percebendo-se e sendo percebidos como tribo profética, passaram a ocupar um território reservado aos mitos, com cadeira cativa na comunidade de poetas e artistas. Os historiadores tiveram menos sorte. Os ciganos não ergueram pirâmides, não fizeram guerras, não conquistaram impérios e, muitas vezes, não deixaram rastros de sua passagem.

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Nação sem Estado, construíram uma realidade feita de “empréstimos culturais” dos povos com que conviveram mais tempo. Nem o nome pelo qual são genericamente conhecidos é deles. Liégeois explica que a palavra vem de “atsinganos”, seita herética desprezada na Grécia do século XII, época em que as primeiras famílias ciganas chegaram à região, estabelendo-se num lugar conhecido como Pequeno Egito. Entre si, os ciganos se reconhecem pelos nomes dos vários grupos e pela noção de pertencerem ao mesmo conjunto. “Fomos reconhecidos por Indira Gandhi como os filhos perdidos da Índia”, explica Vanko Rouda, um dos fundadores em 1992 do Movimento Confederal Cigano, que edita em Paris o jornal Le Tambour Tzigane. Como e por que saíram da Índia, os historiadores não sabem responder. Reyniers sugere que, em geral, as comunidades se dispersam quando há pressão demográfica, escassez de recursos econômicos e guerras. O caminho das migrações ciganas segue as rotas das invasões do século X em diante, embora nenhum general cigano apareça entre os conquistadores.

A maioria dos ciganos fala outro ou outros idiomas além do romani, a língua áspera e melancólica, declinável como grego e o latim que lhes serve de traço de união e de espelho. No interior do grupo, entendem-se por meio do romani. Ou melhor, de várias versões do romani, diluído em inúmeros dialetos influenciados pelo idioma das regiões onde permaneceram mais tempo. Essas influências vão muito além do campo estrito da linguagem. Na economia, por exemplo, os ciganos têm que se adaptar ao meio, para sobreviver e exercer suas tradicionais profissões — artesãos do cobre e do metal, treinadores de animais e artesãos de jóias, músicos e acrobatas — dentro de uma dinâmica cultural de produção que não é sua. Há quem explique o peculiar comportamento dos ciganos dentro da economia global com o conceito de “nicho específico”. Assim, o cigano seria “diferente” dos demais agentes econômicos pelo fornecimento constante de mercadorias, serviços e mão-de-obra nos setores em que surge desequilíbrio na balança da oferta e da procura. Na Bulgária, isso significa que, quando faltaram carrascos no século XVIII, os ciganos aceitaram ocupar este espaço. E antes do advento da medicina veterinária, eles eram requisitados em toda parte como ótimos conselheiros sobre saúde dos animais.

Como em todos os povos, entre os ciganos nem todos os indivíduos são iguais. Algumas famílias são ricas, outras pobres. Algumas andam a pé, outras de avião. Carroças puxadas por cavalos são coisas de museu. Explica-se: embora ainda sejam considerados pelo menos seminômades, o estilo de vida dos ciganos foi afetado pelo progresso do mundo gadjé. Hoje viajam em caravanas de carros modernos, caminhões e trailers. Embora a produção industrial de aço inoxidável tenha tornado os artefatos de cobre obsoletos, ciganos urbanos conseguem empregos variados e também modernos, como por exemplo mecânicos de automóveis. Jacqueline Charlemagne, do departamento de Sociologia Jurídica da Universidade de Paris II, diz que a marginalização, entre os ciganos, “pode provocar a degradação das relações no interior do grupo familiar, indiferença quanto à escolarização das crianças e jovens e desvalorização social que impede qualquer comunicação com o exterior”. Dentro da comunidade cigana, muitos preferem a solução interna dos litígios a qualquer intervenção externa. “Em alguns grupos, isso passa por uma assembléia específica, reunida para a circustância”, nota Reyniers. A decisão dessas assembléias, as Kris, é respeitada. Freqüentemente evita-se o prolongamento das crises mediante compensações financeiras, dispersão dos antagonistas, fuga ou desconhecimento ostensivo entre as partes. Em casos extremos, recorre-se à expulsão do grupo, o que para um cigano tem gosto de pena de morte ou prisão perpétua. Os ciganos consideram que a violação de mulheres, homicídio de crianças, incêndio de caravanas e falsos testemunhos à polícia gadjé são crimes passíveis de pena de morte.

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Um estudo feito pelo Conselho Europeu antes da queda do Muro de Berlim, em 1989, estimou a população cigana na Europa do Leste entre 2,5 milhões e 4 milhões de pessoas. Um relatório publicado em 1993 pela revista Espace Social Européen estabeleceu em 1,250 milhão o número de ciganos nos doze países do Mercado Comum Europeu. Rouda afirma que estas estatísticas não refletem a realidade.

O sociólogo Jean-Pierre Liégeois duvida desses números e calcula em torno de 8 milhões de ciganos europeus, enquanto Rouda prefere algo entre 15 e 20 milhões. Acredita-se que existam cerca de 2 milhões de ciganos na América do Norte e 1,5 milhão na América do Sul, dos quais 800 mil no Brasil. A primeira notícia sobre um cigano no Brasil é um édito real de 1574: permitiu ao degredado João das Torres trazer família para o país.

Para saber mais:

No tempo dos corsários (SUPER número 3, ano 3)

Uma nação chamada Europa (SUPER número 9, ano 5)

Bruxas: as mulheres em chamas

(SUPER número 2, ano 7)

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