Como preparar um espagueti à carbonara perfeito
Fazer macarrão parece fácil, mas acertar no carbonara é uma tarefa complexa até para profissionais. Aprenda aqui.
Quando viajei para roma, minha bagagem foi extraviada no aeroporto de Lisboa, onde fiz conexão. Chovia e fazia frio. Depois de cruzar a ponte sobre o Tibre e caminhar meio a esmo nas vielas milenares, encontrei o que procurava. Era uma lojinha velha. Não tão velha quanto o Foro Romano, mas com prateleiras empoeiradas de madeira escura, que atestavam sua idade avançada – assim como o dono, um senhor com boina de lã. Vendia apenas roupa de baixo, branca ou preta, de algodão. Era tudo de que eu precisava para aguentar mais uns dias até que a mala me fosse entregue.
A loja fica no Campo dei Fiori, um dos principais pontos turísticos da capital italiana. Acabara de anoitecer. Eu estava cansado, aborrecido e molhado. Sem nenhuma disposição de procurar um bom restaurante. Do outro lado da praça, vi um letreiro gigantesco: LA CARBONARA. Pensei: é arapuca para turista, com certeza. Mas, além de cansado, estava faminto. Resolvi arriscar, mesmo porque carbonara é algo tão romano quanto a Sophia Loren.
Ao entrar, o salão era como eu esperava: cheio de mesas cheias de americanos. Ao ver o cardápio, a primeira surpresa. A tal carbonara vinha com penne – não com espaguete, como preceitua a brigada dos defensores da pureza da cozinha italiana. A segunda surpresa veio junto com o prato. Ele era absolutamente delicioso, com a massa quente e os ovos cremosos, pimenta e guanciale na medida.
Naquela viagem, praticamente só comi macarrão. E só comi bem, não importa se o restaurante era indicado por algum guia ou se simplesmente o encontrava quando cansava de caminhar. É praticamente impossível comer um prato de massa ruim em Roma. Também pudera: é o berço do macarrão.
Espera aí: mas e a China?
Discutir se o macarrão é chinês ou italiano é algo que só interessa aos chineses e italianos que vendem macarrão.
Assim como o pão e a cerveja, a massa cozida pode muito bem ter surgido em diversos pontos do planeta, independentemente e em épocas distintas. A espécie humana aprendeu que os cereais, secos e moídos, viram um pó que batizamos de farinha; esse pó, quando misturado à água, se transforma em uma massa elástica e ainda indigesta. Se deixada para fer- mentar, se torna pão – ou cerveja, dependendo da quantidade de água. Mas às vezes a pasta não fermentava. Em qualquer caso, era preciso cozinhar a massa antes de comê-la. Cortá-la em pedaços pequenos e jogá-la na água fervente é uma ideia que pode ter ocorrido a muita gente.
Independente da origem, o macarrão faz sucesso no mundo inteiro porque é delicioso – uma injeção de carboidratos quase instantânea misturada àquilo que você quiser. Porque é prático – fica pronto em minutinhos e dura uma eternidade na despensa. E porque é muito fácil de fazer.
Será mesmo tão fácil? É o que vamos ver agora.
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Já ouvi dizer que o ovo é, dentre os alimentos, aquele que possui a embalagem natural mais inteligente. Discordo. A embalagem mais genial é a da banana, que não precisa ser lavada e é fácil de descascar. Mas o ovo está entre os cinco melhores designs da natureza, é certo. Não apenas isso: o ovo é um dos alimentos mais práticos e versáteis que existem.
O ovo é muito traiçoeiro também. Estragar um prato à base de ovos é facílimo, basta a menor distração ou falta de jeito. A começar pela tal embalagem: a casca não permite ver se o ovo está bom ou podre. Por isso, quando for fazer uma receita que leve vários ovos, sempre os quebre um a um em um recipiente separado, para depois juntá-lo aos demais.
É o ovo que torna o espaguete à carbonara – que ainda leva toucinho e muita pimenta preta – um prato complicado de preparar. A grande dificuldade dessa receita é encontrar o ponto de equilíbrio entre o cozimento ideal dos ovos (devem se converter em um molho cremoso) e a temperatura de serviço (deve ser quente). A coisa mais fácil do universo é transformar a carbonara em ovos mexidos. Ou então servi-lo frio e, pior ainda, com os ovos crus.
A primeira situação acontece quando você atira os ovos na panela quente demais. Também quando resolve esquentar só um pouquinho mais e, de repente, talhou tudo.
Depois de cozinhar demais a carbonara algumas vezes, você muda radicalmente a abordagem. Passa a jogar os ovos batidos sobre o espaguete recém-escorrido, já na travessa, com fé nas instruções de quem diz que o calor da massa é suficiente para fazer o molho. Não é. Mesmo quando esse calor basta para cozinhar os ovos, não se obtém a textura cremosa desejável para a carbonara. Fica aquela sopinha rala de ovos sobrando no fundo do prato. Os convidados, educados, sorriem e elogiam.
Esses desastres não acontecem somente com novatos inexperientes. É corriqueiro se deparar com carbonaras intragáveis em restaurantes de renome. Para driblar o comportamento difícil dos ovos, muitos cozinheiros apelam para artifícios que fazem os italianos esmurrar a própria cabeça de ódio.
O mais comum é a adição de creme de leite. Como todo doceiro sabe, é bem simples obter uma textura lisa e cremosa misturando ovos e creme de leite em temperatura branda. Trata-se de um ótimo recurso para minimizar riscos. O molho resultante, porém, fica muito diferente da carbonara verdadeira.
Outra intervenção bastante comum – a mais comum, aliás – é fazer a carbonara com bacon. Para os italianos do século 21, uma heresia. Será? Há inclusive uma versão que atribui aos americanos a paternidade do prato, de certa forma. Quando as forças aliadas ocuparam Roma na Segunda Guerra Mundial, as tropas forneceram mantimentos para a população local. Tratava-se da mesma ração que os soldados americanos comiam no café da manhã: bacon e ovos em pó. Famintos, os romanos não hesitaram em transformar o rancho em molho de macarrão – mais tarde aperfeiçoado, com a substituição do bacon por guanciale. A tese é corroborada por Emilio Dente Ferracci, um respeitado historiador italiano especializado em culinária. Segundo ele, a massa à carbonara não é encontrada em nenhum receituário romano antes da década de 1940.
É uma história boa de contar e que faz sentido, mas que perde força quando você examina outros pratos tradicionais em Roma. A pasta alla gricia, nada menos que uma carbo- nara sem ovos, é considerada uma das primeiras receitas de macarrão já inventadas. O molho à amatriciana também se parece muito com a carbonara: os ovos, no caso, dão lugar para o tomate.
Não existe documentação histórica sólida para a gênese de nenhuma dessas receitas, mas pode-se intuir que a população pobre das cercanias de Roma gostava bastante de temperar seu espaguete com carne gorda de porco. Quando sobrava um dinheirinho, as pessoas incrementavam o prato com ovo, tomate e o que pudessem comprar.
Outro furo na teoria americanista é o próprio nome do prato. A palavra carbonara deriva de carbone, “carvão” em italiano. Como encaixar os soldados americanos numa his- tória que envolve carvão e romanos? Difícil. Levando-se em conta o nome, existem duas teses para a origem do espaguete à carbonara.
Uma delas dá conta de que a receita veio dos mineiros de carvão que carregavam toucinho e ovos para comer na hora do almoço. A outra remete à carboneria, uma sociedade secreta napolitana do século 19. Nenhuma das duas é comprovada. Nenhuma convence muito, tampouco. Que carvoeiro leva ovos crus na marmita? Sociedade secreta? Poupe-nos.
Independentemente da origem, o uso de bacon não é reco- mendado porque o resultado fica a anos-luz de distância de uma carbonara que você comeria em Roma. Caso não ache guanciale nem pancetta, use toucinho fresco e calque a mão na pimenta.
Essa é a parte fácil. O difícil é acertar o ponto dos ovos.
A técnica mais difundida consiste em manter todos os in- gredientes – exceto os ovos – tão quentes o quanto for possível com a chama do fogão desligada. Você usa água fervente para aquecer a travessa de serviço, reaquece o guanciale com o ma- carrão escorrido e depois joga os ovos batidos em temperatura ambiente. Para terminar, mexa tudo muito rapidamente com um pouco da água do macarrão para formar o molho. Como já disse antes, nunca funcionou bem comigo.
A única coisa que deu certo na minha cozinha foi uma adaptação do método usado para engrossar o cacio e pepe. Misturado à gordura derretida do guanciale, o amido da água do macarrão cria uma emulsão cremosa que, além de dar consistência ao molho, ajuda na manutenção da temperatura.
Existe alguma controvérsia quanto ao uso de ovos inteiros ou de gemas somente. Descartar as claras dá ao molho um ama- relo mais intenso, bonito. Mas a proteína das claras também é um elemento ligante, que engrossa o molho. E, ao usar apenas gemas, você vai precisar aumentar a quantidade delas: o prato fica pesadão. Eu gosto de fazer a carbonara com um ovo inteiro e uma gema por cabeça. Dá mais cor e não pesa tanto assim.
Por último, queijo e pimenta-do-reino são essenciais. O queijo mais tradicional (ê, Itália, sempre a tradição) é o pecorino romano. Mesmo entre os italianos é comum adi- cionar pecorino e parmesão em partes iguais, para suavizar um pouco a pegada do queijo de ovelha. Não me parece um pecado tão grave fazer a carbonara somente com parmesão.
Então – aleluia! – vamos finalmente à receita prometida.
Você frita o guanciale na própria gordura (se usar pancetta magra, adicione azeite de oliva) enquanto aquece a água do macarrão. Desliga o fogo quando o porco começar a dourar. Põe o macarrão na água fervente (quanto menos água, mais amido – lembre-se) e acende de volta a boca em que está o guanciale. Enquanto a massa cozinha, vá adicionando aos poucos a água da panela ao toucinho, mexendo até formar um molho.
Um ou dois minutos antes do tempo de preparo recomendado na embalagem, você remove o espaguete da água com uma pinça e o transfere para a outra panela, de preferência uma frigideira larga. Siga cozinhando a massa – jogue mais água da panela se for preciso – até o molho ficar grosso e cremoso. Jogue os queijos, mexa mais uns instantes e desligue o fogo.
Sem vacilar um segundo, passe a massa quente para a vasilha em que os ovos estão batidos. Misture vigorosamente e tempere com a pimenta preta.
Então você corre para a mesa de jantar com a travessa de espaguete. É bom que a toalha, os pratos, os talheres, os convidados e o vinho já estejam lá, porque a carbonara não pode esperar. Nunca.
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RECEITA: SPAGHETTI ALLA CARBONARA
I N G R E D I E N T E S
– 500 G DE ESPAGUETE
– 150 G DE GUANCIALE
– PANCETTA OU BARRIGA
DE PORCO FRESCA
– 4 OVOS EM TEMPERATURA
AMBIENTE
– 4 GEMAS EM TEMPERATURA
AMBIENTE
– 75 G DE QUEIJO PECORINO RALADO
PIMENTA-DO-REINO PRETA RALADA NA HORA
SAL A GOSTO
MODO DE FA Z E R
1. Em uma frigideira larga de ferro, frite o guanciale na própria
gordura, até ficar levemente dourado. Desligue o fogo e reserve
na própria frigideira.
2. Ponha o macarrão para cozinhar em água fervente salgada.
3. Numa travessa de serviço funda, bata levemente os ovos e as gemas.
4. Ligue de novo a frigideira do guanciale. Jogue 1 ou 2 conchas
da água do macarrão e misture, para fazer um molho.
5. Com um pegador manual e sem deitar fora a água, retire o macarrão
da panela 2 minutos antes do tempo de cozimento recomendado na
embalagem. Transfira-o diretamente para a frigideira com o guanciale.
6. Termine de cozinhar o macarrão até obter um molho cremoso.
Adicione mais água da panela se for necessário. Junte os
queijos e mexa um pouco mais. Desligue o fogo.
7. Despeje o espaguete na travessa com os ovos. Misture rápida
e vigorosamente para finalizar o molho à carbonara. Ajuste o
sal, tempere com bastante pimenta preta e sirva.
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*Este é um trecho do livro Cozinha Bruta, de Marcos Nogueira. O lançamento é nesta terça feira, 5 de Abril, na Livraria Cultura do Shopping Villa Lobos, em São Paulo, das 19h às 21h30. Mas você já pode compar o livro aqui:
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