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Crash! Entenda a crise

Estamos no meio da maior crise econômica dos últimos 80 anos. E o fantasma da Grande Depressão dos anos 30 ressuscitou. E agora? Saiba como a história explica o que aconteceu. E o que será do nosso futuro

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h47 - Publicado em 31 out 2008, 22h00

Texto Alexandre Versignassi

O preço delas não parava de subir. Era uma beleza: você aplicava o dinheiro que tinha guardado para dar entrada numa casa e, em coisa de 2, 3 anos, já tinha o suficiente para comprar a casa. À vista. Nunca tinha sido tão fácil fazer dinheiro. E, óbvio, todo mundo queria entrar nessa.

Não, não estamos falando de ações. Nem de nada que aconteceu recentemente. O assunto aqui é um mercado financeiro diferente: o das tulipas, que floresceu (hehe) na Holanda do século 17. Essas flores caíram no gosto dos nobres e endinheirados da Europa logo que foram trazidas da Turquia. As variedades mais raras eram cotadas a preços de fazer inveja a qualquer Rolex ou Louis Vuitton de hoje. A mais cobiçada era uma tulipa de pétalas cor-de-rosa, a Semper Augustus. Em 1624, um único botão custava o mesmo que um sobradinho no centro de Amsterdã (1 200 florins). E os preços iam subindo.

No começo da onda, os floristas só faziam negócios na primavera, quando os bulbos (as raízes de onde nascem tulipas) floresciam. Mas não demorou para que inventassem um jeito de manter o comércio o ano inteiro. Especuladores compravam bulbos dos floristas no inverno e ficavam com eles na esperança de que o preço subisse quando as flores descem as caras. Na verdade eles não levavam o bulbo para casa. Ficavam com um contrato (um “título”, no jargão financeiro) que lhes dava direito ao dinheiro que eles rendessem mais tarde.

Não demorou e passaram a comercializar os próprios contratos. Um investidor que tivesse pago 1 200 florins por um esperando que o bulbo subisse de preço às vezes preferia vender a algum interessado no ato por 1 300 do que aguardar até a primavera. Esse outro sujeito podia achar alguém a fim de pagar 1 400 e vender de uma vez para embolsar o lucro. Uma hora, já tinha gente pegando 1 400 florins emprestados para comprar um bulbo e vendê-lo no dia seguinte por 1 500. Ou seja: conseguindo um lucro sem ter investido nada – é o que os especuladores chamam de “alavancagem”. Um holandês que nem tivesse fundos para pagar o empréstimo conseguia levantar de uma vez só a grana para pagar o que devia e ainda embolsar uns trocados. Bom negócio… Tão bom que as instituições financeiras fazem isso até hoje. Por exemplo: o falido banco americano Lehman Brothers pegava emprestado US$ 30 bilhões para investir para cada US$ 1 bilhão que tinha nas mãos. Se o mercado está quente, cheio de oportunidades, isso garante lucros astronômicos. Mas, se a coisa esfria, vira um investimento quase dos mais arriscados.

Mas vamos voltar a falar de flores. Conforme a especulação dos bulbos crescia, o preço aumentava, já que tinha muita gente querendo comprar. E a coisa começou a ficar idêntica a um mercado de ações. As tulipas raras, que valiam mais, faziam o papel das grandes empresas – aquelas mais seguras para investir, mas que, como já são valorizadas, não sobem tanto.

A cobiçada Semper Augustus, por exemplo. No auge do boom, em meados de 1630, ela subiu 300%, de 2 mil para 6 mil florins. É um aumento semelhante ao que as ações da Vale, a 2ª maior mineradora do mundo, teve na Bovespa nos últimos 3 anos. Já com as flores baratas, o crescimento foi ainda mais vertiginoso. Cada meio quilo de tulipa amarela foi de 20 para 1 200 florins – uma arrancada no mesmo pique das ações que deram mais retorno na bolsa brasileira, como as da siderúrgica Gerdau, que subiram de R$ 4 para R$ 40 em 5 anos.

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O mercado de tulipas tinha pegado fogo: se você adquiria um título pelo preço que fosse, sempre aparecia alguém “mais otário” para comprá-lo por um valor maior. Só que fogo não é eterno, posto que é chama. “Mas que seja infinito enquanto dure”, torciam os especuladores. Não foi. Esse mercado só se sustentaria se os preços continuassem subindo até o fim dos tempos. E isso nunca aconteceu na história da humanidade.

O crash das tulipas veio logo que descobriram um monte de fraudes – floristas estavam vendendo contratos falsos, que não davam direito a bulbo nenhum. A desconfiança reinou e ninguém mais queria esses papéis. Quem tinha vendido suas casas e carruagens para investir no dinheiro fácil se viu com as calças na mão. Os contratos viraram “títulos podres”, no jargão dos economistas, sem valor algum.

É exatamente o problema que deu início à crise de hoje. Quebradeiras, por sinal, são tão constantes quanto bons momentos da economia. Não faltaram crises depois da das tulipas: na mesma época, ingleses incautos perderam suas economias em ações suspeitas, de companhias que se ofereciam para caçar tesouros submarinos. Depois, em 1845, milhões de libras viraram fumaça na “bolha das ferrovias” – o equivalente vitoriano à bolha da internet, de 2001. Mas a primeira tragédia especulativa de proporções épicas só viria depois, do outro lado do Atlântico. Vamos para lá.

Grande Depressão

Os americanos viviam o futuro em 1929. Quase tudo o que para as últimas gerações parece parte da natureza era novidade ali. A frota de carros tinha crescido de 7 milhões para 23 milhões. O rádio acabara de chegar. As primeiras companhias aéreas se formavam. O cinema deixava de ser mudo. E a bolsa de valores refletia tudo isso: “O preço das ações atingiu o que parece ser um platô permanentemente elevado”, disse Irving Fischer, um economista de Yale.

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Os preços das ações tinham dobrado desde 1928, em grande parte por causa de um novo modo de especulação financeira: grupos de megainvestidores que agiam em conluio para forçar altas nas ações. Quando o mercado estava calmo, eles entravam comprando bilhões, o preço subia, e depois revendiam com lucro para começar tudo de novo. Numa dessas operações, eles fizeram os papéis da gigante Radio City Company (RCA) subir de US$ 95,5 para US$ 160 em 10 dias.

Esses grupos, os trustes de investimento, também tinham ações no mercado. E um investia nos papéis do outro, inflando preços e deixando-os com mais capital ainda para forçar mais altas na bolsa. Para completar, o sistema bancário dava empréstimos aceitando ações como garantia. Esse dinheiro voltava para a bolsa em busca de um lucro alavancado (lembre-se da crise das tulipas: aplicar com dinheiro dos outros é muito mais lucrativo). Chegou a um ponto em que o valor das ações não tinha mais a ver com o valor das empresas, mas com esse círculo vicioso que atulhava dinheiro ali na esperança de fazer mais dinheiro. E o preço das ações subia, em média, 3 vezes mais rápido que os lucros.Era como se essa grana fosse fictícia.

Era isso que o Fed (o Federal Reserve, Banco Central dos EUA) achava. Então eles subiram os juros da renda fixa no final de 1929 para tirar dinheiro de circulação e matar a roda especulativa. Funcionou: depois de um período instável de altas e baixas nas ações, parte dos investidores não quis mais correr riscos e deixou o mercado. Em 3 semanas a partir de outubro a bolsa perdeu quase tudo o que tinha ganho nos 18 meses anteriores. Mas, não, a especulação não foi a única atingida pelo freio do Fed. Com menos dinheiro na praça, em 3 meses a produção industrial caiu 10% e as importações 20%. Nisso a renda da população diminuiu, ninguém conseguia pagar suas dívidas de crediários, muito menos as dos empréstimos garantidos por ações, e os bancos começaram a falir.

Mas aí veio o maior problema: diante da desgraça, o Fed manteve a política de tirar dinheiro de circulação, o que só aumentava a espiral para o abismo. A justificativa era “limpar” a economia. “Isso expurgará o sistema, que está podre”, disse o secretário do Tesouro, Andrew Mellon. “Os padrões de vida altos serão reduzidos. As pessoas trabalharão mais, levarão uma vida mais de acordo com a moralidade. Os valores se ajustarão e os empreendedores recolherão os destroços dos menos competentes.”

Não adiantou: milhares de bancos faliram (sim, milhares) e a economia americana caiu 25% em 3 anos. Um terço dos trabalhadores perdeu o emprego. E os que conseguiam vagas não arranjavam grande coisa: William Capo Durant, fundador da GM que se desligou da empresa em 1920 para virar rei em Wall Street, acabou como lavador de pratos em Nova Jersey. A Europa, que já estava mal das pernas antes de 1929, sentiu mais ainda os efeitos. Das filas de desempregados na Alemanha, por exemplo, nasceu o apoio a Hitler.

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As coisas só começaram a melhorar quando Franklin Roosevelt assumiu a Presidência, em 1933, e acabou com a política do “deixe que os incompetentes se danem”, injetando dinheiro no mercado. E a recuperação começou. Primeiro no campo, onde o preço dos produtos agrícolas e matérias-primas subiu e a bonança chegou à cidade. Em 3 meses, a Bolsa de Nova York subiu 70%. Graças à intervenção do governo o mundo voltava a respirar.

Ben Bernanke, atual presidente do Fed, é dos maiores estudiosos acadêmicos da Grande Depressão. Por isso mesmo, fez de tudo para aprovar o pacotaço de US$ 700 bilhões logo que a situação ficou feia, a despeito dos gritos de “deixem que os especuladores se danem” vindos dos próprios americanos. A Europa, também afetada, logo liberou US$ 2,5 trilhões.

Mas a crise de agora é diferente da de 1929. Enquanto aquela foi uma junção de mania especulativa e, num grau muito maior, de uma política suicida do Fed, esta começou de um jeito mais parecido com a história das tulipas na Holanda.

Crise imobiliária

Aqueles contratos das tulipas perderam valor porque ninguém mais sabia se eles eram confiáveis ou não, certo? Foi exatamente o que aconteceu com os títulos de hipotecas nos EUA – títulos nos quais bancos gigantes como o Lehman Brothers mantinham a maior parte dos seus bilhões.

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Esses papéis dão direito ao comprador de receber o que as pessoas pagam por suas casas. E, em caso de calote, a casa está lá para garantir a aplicação. Ao longo dos anos 2000, o preço dos imóveis só subia nos EUA, como o das tulipas na Holanda. Então esses títulos eram um bom negócio. O problema é que começaram a construir tantas casas na esperança que o preço delas aumentasse para sempre que já não havia mais quem comprasse. Então passaram a liberar financiamentos até para gente sem renda suficiente para isso – era o agora famoso crédito “ninja” (de No Income, no Job, no Assets, ou seja, para pessoas sem renda, sem emprego e sem bens).

Mesmo com essa abertura ainda faltavam compradores para todos os novos imóveis, e o preço deles começou a cair. Isso destruiu a garantia da aplicação, que era o preço das casas em si. Para completar, veio uma avalanche de calotes no pagamento das hipotecas. O pessoal de baixa renda tinha mais dívidas com suas casas do que poderia pagar. Eles começaram a ser despejados, o número de casas disponíveis aumentou e o preço, lógico, caiu mais ainda. Ninguém mais confiava nos títulos de hipotecas, principalmente nos “ninja”, e eles ficaram sem compradores.

Quando essa crise começou, em 2007, ninguém sabia qual era o tamanho da fatia do mercado que estava enterrada nesses papéis podres. Mas, em setembro, quando o Lehman Brothers, que era o 4o maior banco de investimentos dos EUA, faliu, o mercado ligou a sirene. Nisso os bancos praticamente pararam de emprestar dinheiro a outros bancos. Criou-se uma crise de confiança. Quer entender isso melhor? Os coveiros britânicos ajudam a explicar o que isso quer dizer. A indústria inglesa de serviços funerários, no meio da crise de agora, se recusou a enterrar o corpo de pessoas que não tinham dinheiro para pagar pelo funeral. Como as empresas não sabiam se o governo ia ter fundos para reembolsar os enterros dos pobres, pararam de sepultá-los. É isso aí: do mesmo jeito que eles deixaram de enterrar cadáveres por medo de não receber, os bancos praticamente desistiram de dar crédito. E o sistema financeiro começou a apodrecer. Aí o dinheiro deixou de circular com a velocidade de antes. Com os bancos com menos dinheiro, ficou mais caro para todo mundo levantar empréstimos. Empresas que gastam muito no dia-a-dia, e que precisam de dinheiro emprestado o tempo todo para bancar a produção e a folha de pagamentos, como montadoras de automóveis, começaram a sofrer.

À medida que a crise foi deixando claro que havia um buraco enorme e nada para preenchê-lo, começaram as corridas à bolsa para tirar tudo de lá antes que houvesse uma hecatombe. Mas a própria venda desenfreada de ações gerou uma. O preço das ações evaporou. No pico da crise, a gigante General Motors, ameaçada de falir por causa da falta de crédito, viu suas ações cair 31%.

E agora?

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Não tem jeito: o mundo vai pisar no freio, principalmente os EUA. Se isso significar a falência de uma GM, por exemplo, já será um corte de 21 mil postos de trabalho no Brasil – um estádio cheio de desempregados. Se os Zés Bush que moram nos subúrbios do meio-oeste americano deixarem de ter 13 cartões de crédito (a média por família nos EUA), talvez eles pensem duas vezes antes de comprar uma sandália para suas filhas – e isso vai significar menos empregos aqui, já que o Brasil exporta R$ 2 bilhões em calçados para os EUA.

A política mundial também pode tremer: o que o (provável) futuro homem mais poderoso do mundo inspira de esperança em seus eleitores, ele tem de desconfiança da parcela de americanos que não engole um presidente jovem e negro. Caso vença a eleição, assumirá o comando dos EUA com uma bomba nas mãos. E pode perder as rédeas logo no começo do mandato.

O cenário é tempestuoso. Mas nada indica, até agora, que estamos à beira de algo tão pesado quanto a Depressão. Primeiro, porque os Bancos Centrais já mostraram que não vão cometer hoje o mesmo erro daquela época – virar a cara e esperar para ver o que acontece. Segundo, porque hoje os países colaboram entre si de um jeito que era impossível no período entre guerras. “Nos anos 30, os maiores centros financeiros consideraram impossível cooperar para o fim da crise: França e Alemanha estavam num momento de hostilidade e os EUA tinham se retirado dos assuntos internacionais”, diz o economista Jeffry Frieden, da Universidade Harvard.

Além disso, lembre-se de que hoje você é rico, pelo menos comparado ao que seria se o mundo não tivesse crescido tanto. A bolha imobiliária, queira ou não, foi fundamental para que os últimos 5 anos fossem os mais abundantes da história. E isso provocou impactos no mundo inteiro. Tanto que, no Brasil, a classe média virou maioria, com 51,89% da população.

O ponto é que o capitalismo vive de ciclos. E esta crise é só o fim de mais um. A bolha da internet, por exemplo, serviu como semente para a expansão da rede. A das ferrovias, na Inglaterra do século 19, deixou como legado 12,8 mil quilômetros de trilhos, o que barateou o fluxo de mercadorias, gerou milhares de empregos e, de quebra, ajudou os britânicos a sair da recessão que a própria crise provocou. Se esta bolha de agora deixou um legado, foi o de inserir bilhões de pessoas na economia global. E vamos colher mais resultados disso. A questão, agora, é saber quando.

-89% é o quanto caiu a Bolsa de Nova York entre 1929 e 1932. Quem deixou tudo o que tinha lá pensou em se jogar pela janela. Ou o fez.

-57,5% foi a Queda do índice Bovespa entre o seu pico histórico, em maio de 2008 (73 517 pontos) e o epicentro da crise, em 10 de outubro (35 609 pontos).

11,08% em 13 de outubro de 2008, a bolsa de Nova York teve a maior alta da história (936,42 pontos), imediatamente após a pior semana da história – queda de 18%.

735% foi o quanto subiram as ações do Bradesco entre 2002 e maio de 2008. Quem aplicou um carro popular tirou um apartamento.

882% rentalidade de um trabalhador que investiu seu FGTS na Petrobras em agosto de 2000. No mesmo período, o FGTS rendeu 54%.

3 000% é o quanto valorizou uma determinada opção de compra da vale em um dia em 2008 – aMostra do lucro que um derivativo pode dar.

Para saber mais

Capitalismo Global

Jeffry A. Frieden, Zahar, 2008.

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