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Fóssil do Homo erectus: O menino de Turkana

A descoberta desse fóssil, um dos raros esqueletos quase completos do Homo erectus, deu início a uma fascinante tentativa de reconstruir, em detalhes, o modo de vida dos ancestrais do homem moderno. O objetivo é descobrir se tais criaturas, embora bem diferentes, também poderiam, de alguma forma, ser considerados humanos.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h50 - Publicado em 30 set 1993, 22h00

Flávio Dieguez

Com um metro e sessenta de altura, mas ainda trocando os dentes de leite, ele certamente não estava preparado para sair com os caçadores. Talvez fosse sua primeira vez: estava ali apenas para observar e aprender bem cedo a técnica arriscada que distinguia sua espécie das muitas outras da vizinhança. Estas sabiam há milênios acompanhar os leopardos ou os tigres-dentes-de-sabre, para aproveitar os restos que deixavam. Matar animais vivos, porém, apesar de perigoso e difícil, trazia uma vantagem inédita naqueles tempos: significava suprimento regular de carne, essencial ao funcionamento de um cérebro não muito pequeno.

Os braços compridos, o andar bamboleante, a garganta incapaz de pronunciar palavras, o herói dessa história ficou conhecido como o ‘menino de Turkana’ porque viveu às margens do vasto Lago Turkana — onde é hoje o Quênia, no nordeste da África — e morreu quando tinha apenas nove anos. Embora não tenha sobrevivido à sua primeira lição de caça, seus ossos venceram o tempo. Preservados por mais de 15 000 séculos em ótimas condições, eles se tornaram inestimável fonte de informações sobre uma época em que o homem nem sonhava existir. Em compensação, existiam ‘outros homens’, criaturas batizadas de hominídeos porque eram parecidos, mas essencialmente diferentes dos seres humanos modernos.

Extintos muito antes que estes últimos surgissem, os hominídeos permanecem em grande parte um mistério. O menino de Turkana tornou-o ainda mais fascinante, pois se comportava, de muitas maneiras, como os futuros seres humanos. A seu modo, ele era humano. Pelo menos é isso que defende um dos astros da ciência contemporânea, o paleoantropólogo queniano Richard Leakey. No final do ano passado, Leakey publicou um livro, admirável em muitos sentidos, no qual descreve a descoberta dos fósseis do menino — um esqueleto praticamente completo, feito raro na pesquisa antropológica.

Até então quase nada se sabia da anatomia do Homo erectus, a espécie de hominídeo a que o menino pertenceu. Perto de cem indivíduos dessa espécie haviam sido encontrados, em várias partes do mundo, mas isso geralmente significava achar um pequeno pedaço do crânio ou dos maxilares, ou, bem mais raramente, um fragmento do fêmur ou da bacia. Com o menino, não só a variedade de ossos cresceu, mas também a qualidade. E o exemplo mais impressionante, de longe, são os dentes. Só o fato de terem sido achados constitui um desses acasos que fazem crer em milagre: todos eles haviam caído, logo após a morte do dono, e se espalhado pela areia, sobre uma área não desprezível.

Mas puderam ser recuperados porque a disposição geral dos ossos sugeria que o menino havia morrido em águas rasas, possivelmente um rio tributário do Lago Turkana, há muito tempo extinto. Bastou, assim, acompanhar o leito seco para encontrar diversas peças do esqueleto, inclusive os dentes perdidos. Além disso, foi uma grande vantagem a água ter desfeito os tecidos da boca e afrouxado os dentes antes que se petrificassem colados ao maxilar. Soltos, eles deixaram exposta a raiz, uma valiosa fonte de informação. Desde 1984, quando o menino foi descoberto, já se sabia que seu maxilar não era de adulto, pois o terceiro dente molar não havia saído e o segundo começava a sair.

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Num menino moderno, isso denota idade por volta dos 12 anos, mas a análise da raiz mostrou que 11 anos seria um número mais próximo da realidade. A precisão é importante porque está em jogo, na verdade, uma delicada comparação entre duas espécies: o homem atual e o Homo erectus, cuja biologia nunca pôde ser observada diretamente. A comparação, no entanto, foi feita por autênticos magos, entre os quais a antropóloga Holly Smith, da Universidade de Michigan. Surpreendendo o próprio Leakey, ela explicou como podia decifrar a biologia do menino de Turkana.

Caso não tivesse morrido, ele poderia, por exemplo, seguir o padrão do chimpanzé, cujos filhotes não crescem muito entre a adolescência e a fase adulta. Em média, a taxa de crescimento extra seria de 14%. Como o menino de Turkana estava entrando na pré-adolescência e tinha 1,60 metro, o acréscimo seria de 22 centímetros. Parece muito, mas seria maior ainda se o erectus estivesse mais próximo do padrão humano, na qual o acréscimo é de 23%, apontando para uma estatura bem perto de 2 metros. Leakey acredita que os números reais do menino de Turkana estariam num meio-termo, de modo que sua idade não chegaria aos 11 anos das crianças modernas, mas superaria um pouco a média dos chimpanzés, de sete anos.

Por isso, considera-se que ele morreu aos nove anos. A esse tipo de análise se dá o nome ‘história de vida’. “Essencialmente, é uma descrição de como um animal vive”, explica Leakey. O mais importante é que, a partir de uns poucos dados, podem-se deduzir muitos outros, informações decisivas sobre a biologia de uma espécie qualquer. Quanto dura a gestação de suas fêmeas e quantos filhotes ela tem de cada vez? Com quantos anos os filhotes se tornam independentes dos pais e quando se tornam sexualmente maduros? São algumas perguntas que a história de vida permite responder. Está claro que isso abre possibilidades inimagináveis para o estudo do passado.

“É um meio de ver criaturas reais em lugar de meros ossos petrificados”, escreve Leakey. Depois de analisar os dentes e outros ossos do menino de Turkana, deduz-se, por exemplo, que os membros de sua espécie viviam em média 52 anos, enquanto os homens modernos alcançam 66. As mães, provavelmente, tinham o primeiro filho aos 13 ou 14 anos e depois emprenhavam a cada três ou quatro anos. Esses números são impressionantes, mas o objetivo de Leakey, na verdade, é mais instigante: mostrar que o Homo erectus merece o qualificativo ‘humano’.

Ou seja, que sua mente funcionava, grosso modo, da mesma forma que a mente do homem moderno — o Homo sapiens, que surgiria mais de 1 milhão de anos mais tarde. Não é fácil definir com rigor a idéia de humanidade. Mas, seja o que for, argumenta Leakey, não se deve pensar que esse atributo tenha nascido subitamente, pronto e acabado, com o aparecimento do homem moderno. “Acredito que as qualidades da mente humana, a exemplo da forma do corpo humano, foram moldadas por uma fascinante história evolutiva.” São os indícios dessa história que ele procura nos fósseis, mais do que seus traços puramente físicos.

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A pretensão é imensa, e chega a ser comovente a persistência com que Leakey vasculha as evidências disponíveis à cata de tudo o que possa ajudá-lo. O modo de vida dos hominídeos, por exemplo, poderia deixar vestígios visíveis de sua presumida humanidade. Será que eles dividiriam entre si as tarefas, repartindo posteriormente os seus frutos? É possível que tivessem alguma espécie de lar, uma base, mesmo que temporária? Talvez. Há uma área na margem leste do Lago Turkana (do lado oposto em que morreu o menino) que pode ter sido um acampamento temporário. Trata-se de um dos mais ricos depósitos de artefatos da época em que o erectus surgiu, entre 2 milhões e 1,5 milhão de anos atrás.

Aí se encontraram nada menos que 2 000 fragmentos de ossos, pertencentes a uma dúzia de indivíduos, e 1 500 peças de pedra, com aspecto de instrumentos rudimentares. “Uma mixórdia de ossos e pedras”, de acordo com seu descobridor Glyn Isaac, amigo de Leakey e seu companheiro de pesquisas. Apesar disso, algumas peças estão mais concentradas em um ponto da área, onde dois indivíduos aparentemente estiveram sentados fabricando implementos. São simples calhaus lascados para ficar mais largos de um lado e mais pontudos do outro. Ou então, lascas finas que se podiam usar na ponta de lança grosseira.

Vários ossos de hipopótamo, antepassados das zebras, girafas e antílopes sugerem que os instrumentos foram usados para desmembrar juntas e cortar carne. Comparando o suposto acampamento pré-histórico com o que se vê entre os mais rudimentares povos do presente, Leakey imagina que os hominídeos poderiam montar arapucas de pau para pegar caça leve. Pela manhã, empunhando varas longas e afiladas para se defenderem ou lancetar uma presa eventual, eles recolheriam os animais capturados. Ao mesmo tempo, as mulheres fariam sua parte na economia do bando, coletando raízes ou frutas das redondezas, transportadas em sacolas feitas de pele de animal.

As atividades do dia seriam acaloradamente discutidas por meio de uma linguagem de gestos e sons mais ou menos articulados. O suficiente, pelo menos, para amarrar, por meio da comunicação, os complexos laços sociais do bando. Em tese, esse tipo de raciocínio por analogia com as comunidades modernas é atraente. É realmente assim que vivem alguns povos seminômades atuais, como os habitantes do deserto do Kalahari, no sul da África, denominados !Kung (a exclamação representa um estalo da língua contra o céu da boca). Mais importante, porém, é a idéia de que a caça teve um papel revolucionário no passado distante.

O motivo é que os dentes dos hominídeos podem ter evoluído para enfrentar uma dieta rica em carne, que seria obtida por meio da caça. A mudança ocorre em três etapas, a começar pelos chimpanzés e gorilas, cuja boca adapta-se bem a um cardápio de folhas macias e frutas. Vêm depois os mais antigos hominídeos — quatro ou cinco espécies agrupadas sob o nome coletivo de australopitecos — cujos dentes são desenhados para macerar e moer partes duras das plantas. Esse perfil de pilão, finalmente, desaparece na linhagem do menino de Turkana, que tem a boca de um animal onívoro, isto é, que come de tudo. E tudo, nesse caso, tem boas chances de incluir repastos regulares de carne.

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Primeiro, porque o erectus sem dúvida estava equipado para obtê-la: era hábil modelador de pedras cortantes ou contundentes, e com certeza fabricava instrumentos de maneira sistemática. É possível que os usasse apenas para limpar carcaças de animais mortos por outros predadores. Mas é tentador imaginar que fosse mais ousado, pois precisava de proteínas e calorias em abundância para saciar um cérebro pelo menos 50% maior que o dos mais antigos australopitecos. Embora modesto, o crânio do erectus representa um salto brusco para um volume superior a 700 centímetros cúbicos, comparado ao persistente padrão dos australopitecos, em torno de 500 cm3.

Um e outro número ficam bem aquém da média de 1 300 cm3 encontrada no Homo sapiens. Seja como for, se é verdade que a caça fazia parte da rotina do erectus, é muito fácil examinar as conseqüências desse fato sobre sua vida social: não se levam mulheres, idosos e crianças ao um confronto com uma manada de antílopes. É muito razoável, portanto, que os bandos de erectus dividissem o trabalho e repartissem seus bens, tal como raciocina Leakey. Infelizmente para ele, são poucas — ou absolutamente nenhuma, de acordo com alguns pesquisadores — as evidências de que os instrumentos pré-históricos estejam associados com atividade de caça. E a prova dos noves, entre paleoantropólogos, são as pistas enterradas no solo, como não podia deixar de ser.

Vistos por esse ângulo, nenhum dos muitos hominídeos de 2 milhões de anos atrás é menos ou mais humano que qualquer outro. A situação se agrava quando se considera que, afinal, mesmo os chimpanzés organizam e executam caçadas em grupo, e judiciosamente repartem os resultados entre si. Esse fato não ajuda a tese de Leakey, e em última instância confunde o sentido que ele quer dar ao conceito de humanidade — que certamente não inclui os chimpanzés. Glyn Isaac ilustrou esse dilema apelando para certa dose de humor negro. “Suspeito que se esses hominídeos vivessem nos dias de hoje, nós os colocaríamos no zoológico.”

Críticas à parte, não é esse o sentimento que transpira dos argumentos e do livro de Leakey. Bem ao contrário, ele desfaz o preconceito de que o Homo sapiens seja superior aos seus tataravós. Ele simplesmente mostra que, se os hominídeos não eram modernos, também não eram criaturas inacabadas, meros rascunhos no caderno da evolução. Eram apenas diferentes. Não é por outro motivo que a mais forte e duradoura impressão legada pelo livro é a de se estar em outro planeta, no qual houvesse, não apenas um, mas inúmeros homens vivendo lado a lado — um atestado de abundância e prosperidade que já não existem mais.

Para saber mais:

O dia em que o homem nasceu

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(SUPER número 2, ano 4)

Um ET na Pré-História

(SUPER número 7, ano 6)

O retrato do passado

(SUPER número 7, ano 8)

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Caçador de fósseis e protetor dos elefantes

O mais famoso paleoantropólogo da atualidade fala de sua grande paixão, a busca das origens humanas, e de sua nova tarefa, proteger a vida selvagem.

Se alguém tivesse perguntado ao pequeno Richard o que queria ser quando crescesse, ouviria a profética frase: “caçador de fósseis”. Era de se esperar, já que nascido e crescido num paraíso antropológico, o nordeste da África, onde seus pais fizeram notáveis descobertas nos anos 50 e 60. Segundo filho da arqueóloga inglesa Mary Leakey, e do arqueólogo e antropólogo queniano Louis Leakey, filho de missionários ingleses, Richard passou a infância correndo entre restos desenterrados de ancestrais do homem. Certa vez, aos seis anos de idade, aborrecido por não participar das buscas, recebeu o convite do pai. “Venha pegar seu próprio osso!” Minutos mais tarde encontrou seu primeiro fóssil, uma mandíbula completa do porco gigante extinto, Notochoerus andrewsi, com meio milhão de anos.

Depois de algum tempo pensando em dar outro destino à vida, acabou fascinado pela antropologia. Nascido em Nairobi, capital do Quênia em 1944, ele chega aos 49 anos, em 19 de dezembro próximo, como um homem de sucesso. E não apenas em sua profissão, como também no mundo glamuroso dos grandes cientistas, que o transformou numa estrela de seriados científicos na televisão. Mas a tarefa que mais o ocupa nesse momento — o combate a caça clandestina, como diretor do Serviço para a Vida Selvagem do Quênia — é provavelmente o maior desafio que já enfrentou. “Quando me impus essa tarefa, em 1989, o comércio do marfim estava no apogeu e perdíamos 5 000 elefantes por ano”.

Apenas quatro anos mais tarde, contabiliza, a caça furtiva está quase vencida. O preço do marfim despencou e o país arrecada 150 milhões de dólares destinados à construção de estradas e de abrigos para uma frota de vigilância aérea. Mas seus problemas não foram apenas de ordem administrativa. O confronto com os caçadores ainda significa risco de vida, como conta Leakey no prefácio de um novo livro publicado no final do ano passado. “Vivo cercado por lembranças do perigo: soldados armados protegem minha casa e guarda-costas me acompanham sempre que saio de carro”. Ele já não pode se dedicar como antes à caça de fósseis — “que foi e continua sendo o primeiro amor de minha vida”. Ainda assim, considera uma honra ter sido apontado para a nova tarefa, em 1989, pelo então presidente Daniel arap Moi.

Uma coisa é certa: o que nunca lhe faltou foi ambição e persistência para atingir seus objetivos. Em 1967, por exemplo, ele convenceu a National Geographic Society americana a financiar uma viagem ao lado leste do Lago Turkana, no norte do Quênia. Foi uma audácia, pois Leakey tinha então apenas 23 anos e, ainda mais grave, era autodidata, não possuía título acadêmico. A instituição pagou para ver, mas valeu a pena. Entre os 400 ossos encontrados, estava o crânio 1 470, um fóssil decisivo para sua carreira. “Ele me fez famoso, da mesma forma que, em 1959, meu pai ganhou celebridade por ter descoberto o Zinjanthropus ”. Foi o primeiro fóssil do gênero mais tarde batizado Australopitecus. O crânio desenterrado por Richard pertenceu a um hominídeo do gênero Homo.

Na década seguinte, o cientista realizou a série de expedições que culminou nos grandes êxitos de 1984. Especialmente o achado do menino de Turkana, um esqueleto quase completo que lhe valeu a capa da revita americana Time e um lugar definitivo entre os grandes antropólogos do século. Mas apesar de ter alcançado a glória graças à habilidade em achar ossos, ele diz que não se deve pensar que um macaco subitamente se tornou homem apenas porque passou a andar sobre duas pernas. Para ele, a evolução é muito mais que isso: representou mudanças no comportamento, na linguagem e na fabricação de objetos. Ou seja, em toda a cultura.

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