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Gula

Essa barriguinha não é só de cerveja. Sua origem tem pelo menos 5 milhões de anos e já foi um sucesso - pelo menos para a evolução humana

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h48 - Publicado em 1 fev 2013, 22h00

Karine Moura Vieira

Nunca estivemos tão gordos. Há 1,5 bilhão de obesos no mundo – contra 925 milhões de desnutridos, segundo relatório da Cruz Vermelha de 2011. Enquanto corremos atrás de dietas da moda, reeducação alimentar e cirurgias de redução do estômago, é bom ter em mente que a raiz dos pneuzinhos é muito anterior à lasanha do domingo passado – pode estar em um passado longínquo, há pelo menos 5 milhões de anos, no organismo dos nossos primeiros ancestrais. E a gordura corporal que hoje é vista como vilã é uma das razões do sucesso da evolução. Não fosse a capacidade de guardar energia de nossos antepassados, não estaríamos aqui para contar a história – ou comer um hambúrguer.

A gula não é apenas um capricho do homem. “É um poderoso instinto para que o animal guarde a maior quantidade possível de energia”, defende o professor José Enrique Campillo Álvarez, professor de fisiologia da Universidade de Extremadura, na Espanha. O médico é autor do livro O Macaco Obeso, no qual explica que o quadro grave de obesidade no mundo, segundo a medicina darwiniana, é resultado de um problema no desenho evolutivo do homem. “Estamos entre os animais mais gordos que existem. Isso proporcionava vantagens de sobrevivência em condições de vida paleolíticas”, afirma Álvarez.

Em mais de 5 milhões de anos de desenvolvimento, nossos antepassados precisaram se adaptar a uma série de mudanças climáticas, como grandes períodos de glaciamento e seca, e resistir a temporadas extensas de fome. Por causa dessas adversidades, o organismo humano teria desenvolvido características genéticas que ajudavam no acúmulo de gordura em períodos de abundância de alimentos. A tese do chamado genótipo frugal foi proposta pelo geneticista americano James V. Neel, da Universidade de Michigan, que aposta em conjuntos de genes responsáveis por uma fome instintiva, somada à cautela de poupar gordura.

Outra característica metabólica surgida nesse período foi o desenvolvimento de uma resistência à insulina, o hormônio que regula a absorção de glicose pelas células, e à leptina, o hormônio da saciedade. É interessante notar como uma pizza ou um hambúrguer apetecem muito mais do que, digamos, uma folha de alface, diz Pedro Furtado Calabrez, professor de filosofia e neurociência na ESPM-SP. “Na savana africana, onde surgiram os símios superiores, gordura e açúcares eram recursos escassos. Imagine o trabalho que teríamos para comer um bife 200 mil anos atrás.” Para explicar nossa vontade de comer um chocolate em vez de brócolis, Calabrez lembra que nossos ancestrais que experimentavam prazer ao comer gordura e açúcares tiveram maior sucesso reprodutivo e transmitiram seus genes com maior eficiência – justamente por sobreviverem às intempéries. “Por isso é tão raro encontrar alguém que não goste de doces e comidas gordurosas, como fast-food”, diz Calabrez. Bom para os nossos antepassados, pior para nós.

Feito para engordar

O problema é que a comida parou de ser escassa – mas a predisposição para estocar gordura continuou presente. O início da agricultura há mais de 10 mil anos e o processo de industrialização a partir do século 18 são dois marcos fundamentais para a transformação da dieta alimentar.

O acesso à comida ficou mais fácil com a produção agrícola, e, onde há alimento abundante, há explosão demográfica. No organismo, este bufê livre teria reduzido a pressão seletiva para a resistência à insulina e, consequentemente, a prevalência dos tais genes poupadores de gordura, nas gerações futuras. Ou seja – está mais fácil ficar gordo, pois as condições são ideais: muita comida e predisposição genética.

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Investigações recentes sustentam essa teoria. Uma pesquisa realizada com 29 populações indígenas do México e da América Central mostrou a incidência de uma mutação genética que atuaria diretamente na membrana que controla o nível de colesterol nas células. A consequência é um acúmulo de 30% mais colesterol, afetando a composição de hormônios e servindo como estoque de energia.

Nos últimos 40 anos, essa alteração vem favorecendo a obesidade entre esses povos e, consequentemente, contribuindo para um elevado índice de diabetes. A pesquisadora Tábita Hünemeir, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que participou do estudo, acredita que a explicação seja justamente a hipótese do genótipo frugal, e a causa da dispersão da alteração pode ter tido como fator catalisador o cultivo do milho, cereal que é base da alimentação desses povos.

Os pesquisadores acreditam que, depois de aprender a plantar o milho, os indígenas se tornaram mais sedentários e com isso a população se multiplicou. Se comprovada a hipótese de que essa domesticação do milho contribuiu para espalhar a mutação na América, o caso será o primeiro registrado de seleção natural influenciada pela agricultura entre povos nativos americanos, diz a pesquisadora da UFRGS.

Um cérebro gordo

Mas, além dos genes, a resposta para o desenvolvimento da obesidade pode estar no cérebro. Mais precisamente no hipotálamo, que é parte das regiões mais primitivas do cérebro e diretamente envolvido no controle da fome e do gasto energético.

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Estudo realizado no Laboratório de Sinalização Celular da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp com pacientes obesos antes e após cirurgias de redução de estômago mostrou que o cérebro de pessoas obesas têm um funcionamento diferente do de pessoas magras. Para os pesquisadores, essa pode ser a chave do desenvolvimento do excesso de peso. “Hoje, acreditamos que a obesidade decorra de algum erro no processamento de informações que chegam ao sistema nervoso central”, diz o pesquisador Lício Velloso do Departamento de Clínica Médica da universidade, coordenador do estudo de Campinas.

A falha é causada, principalmente, pelo consumo em excesso de gordura saturada – encontrada em fast-food, por exemplo – e acontece quando o cérebro se torna resistente à leptina, hormônio produzido no tecido adiposo e que indica ao hipotálamo o quanto já temos de energia estocada e por que devemos parar de comer. Com esse desequilíbrio, o cérebro não registra mais o quanto há de gordura estocada – o que prejudica a sensação de saciedade. Os estudos também indicavam que a resistência à leptina era uma característica metabólica desenvolvida por nossos ancestrais para acumular gordura. Naquela época, fazia sentido: eram tempos que oscilavam entre abundância e escassez de alimentos. O resultado: a gula – e, hoje, o consequente aumento de peso.

Mas nem só dessa característica se cria uma barriguinha. De acordo com especialistas, comer exageradamente não é a única causa da obesidade. “Está comprovado que a doença sofre influência de agentes que independem do modo de vida do indivíduo, como hereditariedade, fatores ambientais, biológicos e comportamentais”, diz Ricardo Cohen, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica. Para Velloso, a gula não é um pecado. “Não é apenas uma questão de comportamento. O obeso não tem como controlar porque ele não tem a sensação de saciedade.” Para esses, toda gula será perdoada.

Demônio – Belzebu

Atenção você que comete o pecado da gula com frequência: não se acostume com o doce sabor do sorvete. Se os cristãos da Idade Média estiverem certos, seu futuro é no inferno – ganhando papinha de Belzebu à base de sapos e água podre. Chamado de o Senhor das Moscas, o capeta que representa os comilões também é príncipe do inferno, e de alto escalão, já que costuma ser considerado um equivalente do próprio Satã.

Maldição da natureza

Não há consenso sobre quando o corpo humano passou a ser mais poupador de energia (se foi no Paleolítico, entre as populações caçadoras-coletoras ou mais tarde, quando o homem já era agricultor), mas acredita-se que essa pode ser a origem da predisposição genética no ganho de peso. Em tempos de abundância de comida, alguns genes fariam com que o corpo estocasse mais gordura para uma eventual privação. Quando essa escassez não chega, quem aparece é a barriga.

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Orangotangos glutões

Comer em excesso não é apenas uma característica dos humanos. Pelo menos é o que mostra uma pesquisa da Universidade de Rutgers, em Nova Jersey, nos EUA, publicada na revista Biology Letters. Os primatas têm o mesmo comportamento de nossos antepassados que se empanturravam em épocas de fartura para reservar energia para tempos de maior escassez dos alimentos. De acordo com a antropóloga evolucionista Erin Vogel, os primatas são os únicos na natureza a armazenar gordura. Para chegar a essa descoberta, foram coletadas amostras de urina de orangotangos da ilha de Bornéu, na Ásia, ao longo de cinco anos, nas quais foi possível identificar que nos períodos em que a oferta de alimentos era menor os primatas queimavam gordura obtendo energia dos tecidos do corpo. O estudo concluiu que essa característica garante chances de sobrevivência da espécie, que está ameaçada. Existem apenas 50 mil em Bornéu e 7 mil em Sumatra, na Indonésia, os únicos dois lugares em que podem ser encontrados na natureza.

A evolução da barriga
Em 5 milhões de anos, passamos de baixinhos sarados a gordões – será um novo passo na evolução?

5 milhões de anos – Ardipithecus Ramidus (1,20 m e 27 kg)
Frutas, folhas, raízes e verduras, além de insetos, répteis e pequenos mamíferos faziam parte do menu. Onde hoje estão Quênia, Etiópia e Nigéria, o clima permitia a fartura em todas as estações. Já tinha grande sensibilidade à insulina – hormônio que permite a assimilação eficiente de glicose pelas células.

Comida escassa
Períodos de seca e resfriamento transformaram florestas em savanas.

3,5 milhões de anos – Australopithecus Afarensis (1,20 m e 30 kg)
Foi o primeiro a enfrentar a fome. Lucy, descoberta na Etiópia na década de 1970, era bípede e precisava caminhar para achar folhas, frutos secos, talos fibrosos e tubérculos. Para sobreviver aos grandes períodos sem comida, desenvolveu características para armazenar reservas de energia.

Dieta de engorda
Surge o genótipo frugal, que permite ganhar gordura com rapidez.

1,5 milhão de anos – Homo Ergaster (1,80 m e 60 kg)
Se alimentava de insetos, répteis, moluscos, peixes e mamíferos, uma dieta mais rica em proteína. Com a dieta carnívora, teve um aumento de glicose no sangue e um aumento da presença de aminoácidos no organismo – nas proteínas e nos construtores da musculatura.

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Cabeça de gordo
O cérebro dobrou de tamanho, aumentando o consumo de energia.

40 mil anos – Homo Sapiens Sapiens (1,70 m e 60 kg)

Alta concentração de proteína e poucos carboidratos no cardápio – quase uma dieta de south beach. Resultado: com um gasto maior de energia e mais massa magra no corpo, o porte era de atleta. O físico resistente os preparou para os longos períodos de esfriamento do planeta.

Mesa farta para todos
A agricultura e mais tarde a industrialização facilitaram o acesso aos alimentos mais calóricos.

Hoje – Homo Obesus (IMC 30 a 34 kg/m2)

Tudo é muito: alimentos baratos e de fácil acesso, grande quantidade de gorduras saturadas, muita carne, carboidratos de rápida absorção e açúcar. O número de obesos no mundo já passa de 1,5 bilhão. O tal genótipo poupador deixou de ajudar na sobrevivência para estimular a obesidade.

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Fonte – Dr. José Enrique Campillo Álvarez, autor do livro O Macaco Obeso, professor do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Extremadura, em Badajoz (Espanha), e pesquisador dos aspectos metabólicos e endocrinológicos da medicina evolucionista. Cruz Vermelha Internacional.



Ai, que fome!
Entre duas horas e seis horas depois de comer, lá vem ela de novo – a fome. E, conforme comemos, o corpo emite sinais de saciedade

A. Imediata
Logo que a comida chega ao estômago, os níveis de grelina, o hormônio da fome, diminuem. Comer devagar faz o corpo notar que está satisfeito. Mastigue por 20 segundos.

B. Intermediária
O alimento chega ao duodeno, e entra em cena o hormônio colecistoquinina, que controla a digestão alimentar. Os níveis de nutrientes, como a glicose, aumentam. Nesta etapa, a insulina, produzida no pâncreas, e a leptina, no tecido adiposo, vão indicar ao hipotálamo que já estamos satisfeitos.

C. Tardia
A leptina leva ao sistema nervoso central a informação sobre a quantidade de energia que está sendo estocada e nos faz comer menos. A gula, ou melhor, uma falha no processo de informação para o cérebro – a resistência à leptina – nos faz perder o controle sobre a fome e a saciedade.

Para saber mais

Gula – História de um Pecado Capital
Florent Quellier, Editora Senac, 2011

El Mono Obeso
José Enrique Campillo Álvarez, Editora Crítica, 2011 https://abr.io/mono (em espanhol)

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