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Aprendendo a comer

A segunda rodada de resultados da pesquisa de SUPERINTERESSANTE sobre os hábitos alimentares dos brasileiros revela até que ponto a população de fato se interessa por assuntos relacionados com a nutrição e o que entende a respeito. Revela também como é a divisão do trabalho doméstico no capítulo comida e quais os produtos mais consumidos.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h54 - Publicado em 30 jun 1991, 22h00

Luiz Weis, Carla Leirner e Márcia Alves

Antigamente, para aqueles cuja mesa era risonha e farta, interessar-se por alimentação significava gostar de comer. Para aqueles cuja mesa era incerta e parca, preocupar-se com alimentação significava procurar o que comer. Mudou muito o mundo. Nas últimas décadas, começou a ser servida uma sopa de indigestas notícias, preparada por uma nova espécie de gurus, os especialistas em nutrição, e peneirada à la mode pelos meios de comunicação—e o resultado foi que preocupação e interesse por alimentos passaram a significar outra coisa, obrigando milhões de comensais a desdobrar seus guardanapos não apenas com apetite pelo prazer iminente, mas também com incerteza e ansiedade pelo que virá depois.

Que pena: justo quando a humanidade finalmente aprendeu a dominar as técnicas capazes de libertá-la do pesadelo milenar da escassez de alimentos, palavrões como agrotóxicos e aditivos, colesterol e sugar blues deram para azedar a hora do repasto. Comer bem virou ciência: qual a porcentagem máxima de gorduras saturadas admissível no total de calorias que se deve ingerir diariamente? Quais ingredientes químicos, daqueles codificados nas embalagens por meio de letras, pontos e algarismos romanos, são mesmo prejudiciais à saúde? O que contém mais fibras, um prato de lentilhas ou uma xícara de aveia? Que diferença existe entre a dieta de Scarsdale e a de Beverly Hills? Bebidas diet engordam ou não? Gado criado com hormônios é um perigo? Fertilizantes industriais ou adubos orgânicos?

Ao mesmo tempo, saber comer virou símbolo de status, prova de refinamento cultural. Livros e coleções de receitas desandaram a vender feito pão quente: 85% das pessoas dizem ter em casa algo no gênero. Na imprensa, restaurantes tornaram-se assunto de resenhas tão doutas quanto as críticas de livros, filmes e peças. Diante dessa pantagruélica feijoada de boas e más lipoproteínas, cozinha light e cucina mediterrânea, complexos de vitaminas e complexas polêmicas, como ficam os brasileiros? Será que têm gula de conhecer esse (nem sempre) admirável mundo novo? Será que no momento de empunhar os talheres pautam-se por alguma orientação médica? Ou acham tudo isso perda de tempo, conversa fiada que não enche barriga?

A pesquisa SUPERINTERESSANTE/Feedback (que entrevistou um total de 1 200 pessoas de diferentes classes em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Belém, e cujos resultados começaram a ser publicados na edição anterior) recolheu uma avaliação pessimista a respeito —e ela inaugura esta segunda rodada de apresentação dos números sobre os hábitos alimentares da população. Pode-se dizer que, diante do conjunto de questões que agitam hoje em dia o caldeirão alimentar, os brasileiros dão a impressão de ter ouvido o galo cantar mas ainda precisam aprender onde. Interessam-se, por exemplo, por agrotóxicos, sabem que a expressão calorias não engordam é uma baleia, mas ignoram informações fundamentais, como o que fazem no organismo as fibras dos alimentos vegetais.

A maioria, embora pareça digerir com dificuldade a dominadora presença dos produtos industrializados, com seu bufê de conservantes, acidulantes, edulcorantes e outros antes, que tornam as embalagens cada vez mais parecidas com bulas de remédio, há muito que fez a opção preferencial pelos supermercados, onde eles reinam absolutos, e comunica estar a salvo de tabus alimentares irracionais, tipo leite com manga. Mas a divisão doméstica das tarefas de escolher, comprar e preparar comida persiste em premiar a mulher com a parte da leoa do trabalho como nos velhos tempos em que ela era chamada rainha do lar e ganha pão era coisa de homem. Provavelmente por culpa da inflação, muita gente não sabe quanto gasta com os gêneros que coloca no carrinho—uma cesta básica que se compõe de um número algo restrito de produtos, varia pouco pelo país afora e, assim como os pratos que vão à mesa de todos os dias, decididamente é um indicador trôpego de riqueza ou nobreza.

Três quartos dos pesquisados apostam que o interesse dos concidadãos pela alimentação ou é escasso ou é simplesmente nenhum. E só um em dez acredita que os outros se preocupam muito com o assunto. Nessas respostas, decerto, vai embutido um juízo não muito açucarado dos brasileiros sobre seus semelhantes. Os mais céticos são os mais ricos e os cariocas. Estes últimos, por sinal, devem saber do que estão falando: chamados a qualificar as próprias atitudes, um terço e tanto deles se descreveram francamente como pouco ou nada interessados, um resultado bem superior ao das outras cidades.

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No conjunto da amostra, mais de dois terços se acham muito ou razoavelmente interessados— isto é, não vestem a carapuça da indiferença que, a seu ver, os outros fazem por merecer. Os menos interessados são também os mais pobres, o que não surpreende. E sugestivo, no entanto que entre estes, assim como entre os menos instruídos, se concentre proporcionalmente o maior número dos que se dizem muito preocupados a respeito de alimentação: quem sabe para eles isso tem a ver antes com as atribulações de adquirir comida do que com a vontade de adquirir conhecimentos.

A televisão é, disparado,. a principal fonte de informações sobre questões alimentares, citada pela maioria absoluta dos que manifestaram algum interesse por tais assuntos. A TV foi mencionada sobretudo pelos mais pobres, pelas mulheres e pelos mais velhos. A correlação mais íntima porém, é com o grau de instrução, só que às avessas: a telinha alimenta além de dois terços dos que não chegaram a completar o primário e nem sequer um terço dos que concluíram o curso superior. Já o inverso ocorre com o público de revistas e jornais. A propósito, as mulheres e os mais jovens tendem a preferir revistas, os homens e os mais velhos, jornais. Conversar sobre comida com amigos e parentes é outra forma tipicamente feminina de se informar. Tudo isso, a rigor, está dentro do esperado. O que faz arregalar os olhos é a mínima participação daquelas que, supostamente, são as melhores fontes de iluminação nesse terreno: as publicações especializadas, a escola, os médicos e os nutricionistas.A falta que eles fazem não tardará a se mostrar. 

Para aferir com certa segurança o que os entrevistados realmente conhecem de alimentação, pediu-se que respondessem se já ouviram falar em (e se têm interesse por) alguns temas que freqüentam qualquer curso elementar de boa nutrição: o uso de agrotóxicos nas lavouras e de conservantes na indústria de alimentos: colesterol; o papel das fibras; as diferenças entre alimentos refinados e integrais; dieta vegetariana e dieta naturalista. Aqui, aparentemente, tudo bem. É da ordem de 90% o contingente dos que garantem ter ciência da grande maioria desses assuntos. A informação só diminui em relação aos eventuais problemas de saúde causados por alimentos refinados, como arroz e açúcar brancos, e à importância das fibras: dois em cada dez entrevistados nem ouviram falar disso.Regra geral e previsível: quanto mais pobres e menos instrui das as pessoas, maior a incidência de respostas nunca ouvi falar. Assim. enquanto no computo geral apenas seis em 100 não sabem que colesterol é uma substância gordurosa que se acumula nos vasos e pode bloquear a circulação do sangue, a porcentagem de desinformados mais do que duplica entre os analfabetos e os de primário incompleto. Da mesma forma, um quinto destes —o triplo do restante—ignora o que sejam agrotóxicos. Passando do campo da informação para o do interesse, o caminho dos números é de descida e o resultado final, apenas satisfatório.

Pois. mesmo diante do tema que mais curiosidade desperta—agrotóxicos—o total de interessados não ultrapassa dois terços da amostra. Que confiança se pode ter nesse dado? Ora, é sabido que em anos recentes também no Brasil o interesse pela alimentação passou a ser valorizado socialmente, como sinal de que se é atualizado, moderno. Por isso, talvez a porcentagem dos que se declaram interessados ainda esteja algo inflacionada. De qualquer forma, o interesse aumenta de acordo com o grau de instrução—a variável decisiva nesse particular. Nas questões relacionadas a agrotóxicos, conservantes e colesterol, gira em torno de 80%, cerca de vinte pontos acima da média geral, o índice de respostas positivas entre os entrevistados de maior escolarização.

Quando o assunto é colesterol, os maiores interessados, além daqueles, são os mais ricos, as mulheres e sobretudo os mais velhos. Os mineiros, que segundo a lenda ficam de água na boca só de ouvir a palavra torresminho, lideram o pelotão dos que mais querem se atualizar sobre a perturbadora substância presente na gordura animal.

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Quando o assunto são os conservantes, os maiores interessados são os mais ricos, as mulheres, a turma dos 30 anos e os paulistas. Mas é preciso adicionar um prudente grão de sal a essa manifestação de interesse, compartilhada por seis em dez dos entrevistados. Pois, diante de uma pergunta sobre leitura de embalagens de alimentos? apenas irrisórios 3%. praticamente só paulistas e cariocas, disseram olhar se o produto contém conservantes. (Em compensação, quase três quartos olham a data de validade, metade examina o estado da embalagem—e um quarto dos mais pobres procura singelamente saber o preço.)

Quando o assunto são os agrotóxicos, os maiores interessados são, de longe, os mais instruídos, os mais ricos, as mulheres, os trintões e os moradores de Belo Horizonte. Quando o assunto são as fibras, o interesse aumenta conforme a renda, a educação e a idade. As mulheres se interessam mais do que os homens; os paulistas, mais do que outros brasileiros. Quando o assunto são os alimentos refinados, de novo os principais interessados são os mais educados, os mais ricos, os trintões, as mulheres e os mineiros. Este, por sinal é um tema aberto a discussões. Há quem culpe os alimentos refinados por uma pá de doenças, incluindo alguns tipos de câncer. De certo, pode-se dizer que o refino empobrece o produto. Cem gramas de arroz integral. por exemplo, contêm 3,5 vezes mais proteínas e duas vezes mais carboidratos do que igual quantidade de arroz beneficiado. O refino também priva o alimento das fibras, cuja escassez no organismo prejudica o trânsito intestinal e pode ser a causa do aparecimento de pólipos. Cem gramas de farinha de trigo integral contêm o triplo de fibras do que a mesma quantidade de farinha refinada. 

Quando os assuntos são alimentos integrais, dieta vegetariana e dieta naturalista, nessa ordem, o desinteresse predomina. Estes são definitivamente, temas alheios à grande maioria dos brasileiros O partido dos desinteressados inclui sempre mais homens do que mulheres, mais pobres do que ricos e mais gaúchos do que moradores de outras capitais.Uma forma indireta de medi r o que alguém sabe realmente de um assunto consiste em Ihe perguntar se concorda ou não com uma série de afirmações correlatas. Foi o que se fez: submeteram-se à amostra onze enunciados, cinco deles comprovadamente falsos. Diante de algumas dessas armadilhas, os entrevistados saíram-se honrosamente. Assim. apenas 13% (mas um quinto dos pernambucanos) concordaram plenamente com a bobagem de que “calorias não engordam”. Mesmo entre os menos bem instruídos, metade entende o suficiente de alimentação para rejeitar totalmente essa falsidade. Um pouco pior foi o desempenho geral diante de outro despropósito: “Comer muita coisa no café da manhã tira a disposição para as atividades diárias”.

Um quarto dos entrevistados, de novo com destaque para os pernambucanos, caiu na esparrela. A educação faz toda a sapiência: a maioria dos que perceberam o engodo tem nível médio ou superior de escolaridade.

Convencidas por inteiro ou em parte, algo como três em cada quatro pessoas assinaram embaixo da asneira “os alimentos mais ricos em fibras fornecem mais energia” e duas em três fizeram o mesmo ao serem apresentadas ao engano, as comidas congeladas são menos nutritivas . No primeiro caso, os mais velhos, os mais pobres, os menos instruídos e os paulistas revelaram o maior desconhecimento do fato de as fibras não fornecerem energia alguma, embora sejam essenciais à digestão. E 13% não souberam o que dizer. No segundo caso, o preconceito contra o congelamento se mostrou particularmente forte entre os mais pobres e os pernambucanos, variando também na contramão do grau de escolaridade.Finalmente, uma confusão muito comum sobre nutrição induziu quase nove em dez entrevistados, principalmente entre os mais pobres e os pernambucanos (de novo), a concordar com o enunciado de que “para o organismo, o melhor alimento é o que contém mais proteínas”. A crença na absoluta supremacia das comidas ricas em proteínas, como a carne, é compartilhada por 85% dos menos bem educados, contra 36% entre os donos de diploma universitário. Eliete Salomon Tudisco, professora adjunta de Nutrição da Escola Paulista de Medicina, resume o consenso entre os nutricionistas: “Não existe um único alimento bom. Uma dieta balanceada depende da associação de diversos tipos de alimentos”.

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A pesquisa ofereceu também um punhado de afirmações sujeitas a chuvas e trovoadas, como a de que “ao comprar alimentos, deve-se preferir produtos sem conservantes, mesmo se forem mais caros”. Os entrevistados não hesitaram muito diante dessa sugestão: três quartos disseram concordar totalmente e outros 1:4%, parcialmente— o mais alto nível de apoios de toda a lista. Os mais ricos tendem a ser mais enfáticos do que os mais pobres, o que está na lógica das coisas. Aqui o fator educação pouco pesa: analfabetos e doutores, em igual proporção, recomendam evitar comida com conservantes, sinal de arraigada desconfiança em relação a alimentos industrializados que perpassa o povo de alto a baixo.“O problema”, comenta a nutricionista Eliete Tudisco, está em não se saber com exatidão o que cada produto contém; nem mesmo produtos que dizem não ter conservantes estão realmente isentos de aditivas.” De seu lado, Célia Coli. professora assistente de Nutrição Experimental da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo, ensina que “os conservantes causam menos mal do que se pensa”. 

Por via das dúvidas, ela aconselha, comprar produtos de empresas conceituadas, que dominam bem a tecnologia de alimentos e não expõem o consumidor a um excesso de produtos químicos”A preocupação da maioria com a pureza dos alimentos, embora bastante temperada pelas realidades da economia, manifestou-se também quando se serviu aos entrevistados um dos grandes dilemas relacionados com a idéia de uma agricultura voltada à produção em larga escala para ampliar a oferta de gêneros alimentícios a preços acessíveis—usar ou não agrotóxicos. Afirmou-se: “No Brasil de hoje. é preciso produzir mais alimentos para matar a fome do povo, e não proibir o uso de agrotóxicos”. Na média ponderada das respostas (numa escala em que o apoio total vale +2 e a rejeição total -2), a afirmação foi reprovada, ficando com -0,06. Isso aconteceu mesmo nas classes de renda de até dez salários mínimos. Cidade por cidade, Porto Alegre se destaca entre os adversários dos agrotóxicos. 

Pelas características de sua economia, o Rio Grande do Sul é um dos Estados em que esse debate é mais freqüente e visível.Também por escassa maioria (0,08 na média ponderada), saiu vitoriosa a polêmica afirmação de que “o açúcar branco faz mal à saúde”. Apesar disso, oito em dez entrevistados adoçam com ele seu café. O eleitorado contra o açúcar branco é mais numeroso acima da divisa dos dez salários mínimos. O resultado se repete quando se dividem os entrevistados entre os que não completaram o ginásio e os que terminaram a faculdade. Alguns nutricionistas, porém, parecem pensar de outro modo. Diz Célia Coli: O açúcar refinado é uma das melhores fontes de energia”. Reforça Midori Ishii, professora de Nutrição da Faculdade de Medicina da USP: “E fundamental para o organismo. Ressalvam no entanto que o açúcar branco amplia o risco da obesidade, sem falar nas cáries, exigindo, de um lado, atividades físicas, e de outros hábitos rigorosos de higiene bucal.

A pesquisa identificou uma curiosa contradição. Uma nítida maioria (69%) concorda na íntegra ou em parte com uma afirmação—”A alimentação vegetariana é a mais saudável”— diante da qual os nutricionistas manifestam sérias restrições. Rebate Midori Ishii: “Bem dosado, qualquer tipo de alimentação é saudável”. Mas uma maioria igualmente respeitável de leigos (67% ) apóia a tese de que “a carne é um alimento indispensável, o que permite supor que as pessoas acreditam que uma comida pode ser ao mesmo tempo insubstituível e não fazer bem. A adesão (da boca para fora) ao vegetarianismo aumenta conforme a idade e diminui conforme o nível educacional. Já a crença de que nenhum alimento substitui a carne tem o maior número de adeptos entre os menos instruídos e os mais pobres, categorias que, como se sabe, tendem a se sobrepor.

Os nutricionistas alertam para o fato de que os vegetarianos fanáticos freqüentemente apresentam deficiências de minerais como ferro e cálcio, Mas lembram que “não basta comer carne para estar bem alimentado”, como diz Célia Coli. De todo modo, os brasileiros são carnívoros convictos—e nisso estão mais perto dos americanos do que dos europeus dos quais descende a grande maioria. Quando uma família pobre melhora de vida, a primeira coisa que muda em seu cardápio é a quantidade de carne bovina. Isso é bom, mas nem tanto. “Aqui se compra carne por quilo”, critica José Eduardo Dutra de Oliveira, professor de Nutrição da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto e presidente da União Internacional das Ciências da Nutrição. “Nós devíamos aprender a comer carne em gramas, como os chineses, que são magros e saudáveis.

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”A derradeira casca de banana lançada pela pesquisa para testar as idéias nutricionais dos brasileiros foi a afirmação de que “o tipo de alimento servido nas lanchonetes fast food é o melhor para os jovens”—um ponto de vista que não entusiasma os nutricionistas, embora eles achem que não há nada de visceralmente errado com uma refeição rápida à base de hambúrguer. “O perigo é fazer disso um hábito”, adverte Eliete Tudisco, “pois representa uma ingestão maior de gorduras e menor de fibras do que o necessário.” Os entrevistados mostraram com clareza não acreditar nas alegadas qualidades nutritivas do fast food para os jovens. Apenas um quinto concordou com o enunciado. A oposição sobe com a educação, alcançando 80% no grupo dos possuidores de diploma universitário. Entre os próprios jovens, contudo, os sufrágios favoráveis ao fast food—algo que se poderia chamar de Mcvotos— somaram um terço.

Os brasileiros talvez entendam menos de alimentação do que deveriam, mas não entendem tão pouco a ponto de complicar a sua dieta com tabus alimentares que, dadas as condições de vida da grande maioria, só acabariam servindo para piorar as estatísticas de desnutrição. Assim, ainda acreditam na lenda de que leite com manga faz mal apenas seis—isso mesmo, meia dúzia—das 1 200 pessoas ouvidas. São três homens e três mulheres. Cinco moram em São Paulo, um em Belém. Nenhum foi além do primário. Convidados por outra, pergunta a identificar eventuais restrições a comidas ou a formas de preparo, virtualmente a metade dos entrevistados não se lembrou de nenhuma. A outra metade manifestou uma miscelânea de reservas, algumas procedentes, outras quem sabe exageradas.

Na primeira categoria se enquadra a preocupação com alimentos gordurosos ou de difícil digestão—a carne de porco foi bastante citada— e com frituras em geral. Na segunda categoria, mais numerosa, reaparece a inapetência em relação à comida não feita em casa, que já se havia revelado nas respostas sobre consumo de alimentos com conservantes. Quinze por cento dos entrevistados (e 19% das mulheres) cultivam a suspeita de que alimentos industrializados ou comprados prontos em geral podem ser prejudiciais, principalmente por causa dos aditivos químicos. (As mães acrescentaram à lista negra doces, refrigerantes e chocolates.) Medo de aditivos não é coisa de iletrado: mais o manifesta quem cursou universidade.

O supermercado é por excelência o lugar onde o brasileiro compra comida: 99% dos entrevistados se abastecem nesses estabelecimentos, enquanto ao armazém, empório ou mercearia da esquina, tão populares em outros tempos, só vão 43% . Nove em dez pessoas, surpreendentemente, passam ao largo de sacolões e cooperativas de consumo. E sete em dez não mantêm relações comerciais nem sequer com os varejões. (Menos em Belo Horizonte, onde são procurados por 57% dos consumidores.) De norte a sul, mais gente vai ao supermercado do que à padaria (92%), ao açougue (90%) ou à feira (86%)—e quem estiver em busca da receita da relativa parecença dos hábitos alimentares da população pode encontrar aí um ingrediente de muita importância. Supermercados padronizam produtos e opções. Firmemente implantado na vida dos brasileiros, o supermercado não é porém procurado por, igual pela população. Um terço tem o costume de ir a ele uma vez por semana, outro terço prefere uma vez por mês e o terço restante se divide entre a quinzena e a incursão diária. O lugar onde se vive pode ter algo a ver com isso. 

Afinal. metade dos cariocas, por exemplo, freqüenta o supermercado semanalmente, bem mais, portanto, do que a média nacional. Já os gaúchos são os que mais comparecem todo dia ao supermercado. São também os que demonstram a maior fidelidade ao bom e velho empório: 80% deles recorrem a ele —e metade o faz dia sim, o outro também.No conjunto das capitais pesquisadas, vai-se à padaria, tipicamente, todo dia; à feira e ao açougue, toda semana. Quanto maior a renda, porém, menos comum o hábito de comprar em açougue, que não é propriamente um estabelecimento nobre (tanto que, para atrair a clientela classe A, surgiram nos últimos anos as auto-intituladas butiques de carne). De todo modo, parece haver um contra-senso na preferência dos pobres pelo açougue, visto que em geral a carne ali é mais cara. É provável que isso resulte da aversão popular à carne congelada vendida nos supermercados.

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No modelo brasileiro de divisão do trabalho doméstico, ela faz e ele paga. É a mulher, de fato, quem escolhe os alimentos que a família irá comer (em 79% dos casos), quem escolhe o lugar onde eles serão comprados (75%), quem faz a compra (70%), quem decide o cardápio (85%) e quem cozinha (82%). O marido paga a conta (64%). Esse arranjo ortodoxo predomina sobretudo em Porto Alegre, onde tais porcentagens são sempre maiores do que nas outras capitais, podendo assim ser úteis aos interessados em carregar no estereótipo do machismo gaúcho.

Os maridos de Belo Horizonte, em contrapartida, são os que mais dividem os deveres conjugais quando se trata de preparar a lista de alimentos, escolher o lugar onde serão adquiridos e fazer a compra propriamente dita, sinal de que a família mineira talvez seja menos tradicional do que se diz. Já em Belém é menor o número de donas de casa que cozinham (apenas 59%)—não porque ali mais homens se disponham a encarar os mistérios do forno e fogão, mas porque em um quinto dos casos (o quádruplo da média nacional) quem cozinha é a empregada. Seja qual for a cidade, porém, nas famílias mais pobres, onde é elevado o número de mulheres que trabalham fora, é também maior a presença do marido—e de outros parentes—no conjunto das tarefas associadas à alimentação, como ir às compras.

Quando é a empregada quem cozinha, como acontece em um quinto das famílias da faixa superior de rendimentos, será que isso pode ter alguma conseqüência para a qualidade nutritiva da dieta que vai à mesa? Pode, sim, acredita a nutricionista Flora Spolidoro, do Ministério da Ação Social. A desinformação nesse terreno é grande”, raciocina ela. “Não basta que a dona de casa saiba compor adequadamente o cardápio do dia-a-dia. Quem garante que o preparo será adequado?” Muitas vezes o bolso é que sai afetado. “É espantoso como se desperdiça comida neste país”, acusa Flora. “O lixo dos brasileiros deve ser um dos mais ricos do mundo.”Os economistas estimam que a alimentação consome algo como um terço do orçamento doméstico, sendo o item individual de maior peso na estrutura dos gastos familiares. É sabido também que a parcela abocanhada pelas despesas com comida tende a aumentar na razão inversa da renda. Ou seja, a fatia do rendimento que os mais pobres precisam desembolsar para matar a fome é proporcionalmente maior do que a dos mais ricos. Segundo uma pesquisa de 1983 do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio- Econômicos de São Paulo), enquanto as famílias paulistanas de renda per capita de até meio salário mínimo por mês comiam 36% do que ganhavam, nas famílias com renda superior a três salários mínimos per capita o mesmo índice não ultrapassava 18%.

Os economistas são ensinados a fazer contas para saber das coisas, mas os mortais comuns não —e assim não se pode culpá-los por nem sempre terem na ponta da língua certos números, ainda mais em um país onde os preços há tanto tempo praticam tais piruetas que se torna praticamente impossível lembrar quanto custa cada coisa. Não admira, portanto, que apenas a metade dos entrevistados saiba quanto deixa todo mês no caixa do supermercado. O mais bem informado é o chefe da casa, que é afinal quem paga a conta; os jovens e os outros parentes que eventualmente moram Junto (sogros, pais) são os que menos sabem. Quando se trata de contabilizar os gastos com a alimentação fora do lar, a desinformação alcança quase dois terços da amostra. Comparando-se quem sabe quanto gasta (em valores absolutos) com quem não sabe, verifica-se que os membros desta última categoria tendem a atribuir à alimentação um naco maior de suas despesas.

Entre os resultados da pesquisa publicados na edição passada, um dos mais esclarecedores identifica o cardápio típico da maioria, tanto nos dias úteis (arroz, feijão, carne bovina, verduras, frutas) quanto aos domingos (massas, carne de frango, doces, refrigerantes). Para fechar o círculo em torno desse capítulo—o mais importante de todos quando se pretende conhecer hábitos alimentares—, apresentou-se aos entrevistados uma extensa lista de alimentos para que indicassem quais costumam consumir e com que freqüência. As respostas apontam os ingredientes do que seria a cesta básica dos brasileiros das grandes capitais. Produto de um número relativamente pequeno de itens, sua composição é muito semelhante à da lista de alimentos mais consumidos no país, apurada já lá se vão dezesseis anos pelo Estudo Nacional de Despesa Familiar (Endef), do IBGE. Maior levantamento já realizado sobre o assunto no Brasil, o Endef descobriu não só quem consome o quê e com qual freqüência, mas também em que quantidade.

Óleo, arroz, açúcar, feijão, pão, leite, margarina, frutas, verduras, manteiga, carne bovina e queijo—nessa ordem e excluídos sal e café—são os alimentos mais ingeridos diariamente pelo conjunto da amostra. Além desses, carne de frango, batata, macarrão, ovos, peixe, doces, mandioca e gelatina, os de maior consumo uma ou mais vezes por semana, praticamente esgotam a cesta básica. A porcentagem de entrevistados que disse consumir todo dia feijão, arroz, açúcar, pão, margarina e óleo é maior na ponta pobre da amostra (renda mensal familiar de dois a cinco salários mínimos) do que na ponta rica (acima de vinte salários mínimos). No caso do feijão, a diferença pró-pobres alcança 24 pontos percentuais; no do arroz, 20 pontos. O inverso (maior consumo diário entre os mais ricos) se dá principalmente nestes casos, queijo, frutas, verduras, legumes, carne e leite, com diferenças de 35 pontos (queijo) a 16 pontos de porcentagem (carne bovina).

Esses dados confirmam que no Brasil as distinções de renda não se manifestam com todos os seus prodigiosos efeitos na hora das refeições: como já se viu quando a pesquisa arrolou os pratos que mais vão à mesa nas capitais investigadas, o cardápio que nutre a grande maioria da população é basicamente o mesmo. O que muda é a freqüência—e, com toda a certeza, a quantidade —com que certos alimentos aparecem nas mesas dispostas ao longo da escala social. Os produtos mais mencionados no segmento pobre têm em comum o fato de serem ricos em carboidratos, servindo portanto para fornecer a energia exigida pelas atividades diárias. (O feijão é ainda valiosa fonte de proteína e de ferro.) Faz sentido terem sido citados notadamente pelos homens.

Já os alimentos presentes na dieta cotidiana de um número maior de entrevistados mais ricos (e, com exceção da carne, do sexo feminino) contêm apreciáveis quantidades de proteínas e de micronutrientes (vitaminas e minerais), o que os torna essenciais ao bom funcionamento do organismo. O consumo de um alimento em particular serve de contraprova: um terço dos mais pobres raramente ou jamais come peixe; entre os mais ricos, porém, essa parcela não chega a um quinto. Do lado pobre, em suma, agrupam-se os alimentos que o povo chama “fortes”; do lado rico, ficam os alimentos “nobres”. O economista Fernando Homem de Melo, da USP, e a professora Maria Antonia Martins Galeazzi, diretora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação da Unicamp, identificaram a propósito um comportamento típico: sempre que aumenta a renda de um grupo, seu padrão de consumo de alimentos tende a ficar parecido com o do segmento mais rico, mesmo quando nenhum outro hábito se altera.

De um lado a outro do país, a cesta básica inclui quase sempre os mesmos produtos. Novamente, é a freqüência do consumo que varia— sendo as diferenças, porém, bem menores do que aquelas associadas à condição econômica. A principal exceção é a farinha de mandioca. Dois terços dos entrevistados em Belém e um terço no Recife consomem-na todo dia; na média das outras cidades, seus apreciadores mal vão além de um décimo. Da mesma forma, quatro em dez paraenses incluem o charque pelo menos numa refeição por semana—quase o quádruplo da média geral. Belém, aliás, se distingue por ser a capital onde, em graus variados, o consumo cotidiano supera a média geral em sete outros casos ainda: carne bovina, leite, margarina, pão, açúcar, arroz e óleo. Ali, curiosamente, também disseram comer carne bovina todo dia 60% dos entrevistados mais pobres—e apenas 34% dos mais ricos—, o que diverge radicalmente do padrão nacional.

A situação de Porto Alegre é também muito peculiar. Os gaúchos fecham, de longe, a raia dos números referentes ao consumo diário de nada menos de nove itens, notadamente ovos, verduras cozidas, manteiga, carne bovina e frutas. Em compensação, lideram proporcionalmente o consumo semanal de três desses produtos, verduras, carne bovina e ovos (e ainda batatas). Isso indica uma predileção por dois cardápios bem diferentes —um para os dias úteis, outro para os domingos. E, de fato, como a pesquisa demonstra, os almoços domingueiros em Porto Alegre, à diferença de qualquer outra capital estudada, celebram as delícias de um prato clássico ali: churrasco com maionese.

 

 

 

 

Para saber mais:

Ciência ao molho bearnaise 

(SUPER número 5, ano 3)

 

O Brasil vai à mesa

(SUPER número 6, ano 5)

 

O brasileiro condena o brasileiro

(SUPER número 11, ano 5)

 

Mania de magreza

(SUPER número 10, ano 6)

 

 

 

 

 

 

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