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Veneza: Avanço do Mar

A mais bela cidade do mundo está sucumbindo às marés, altas como nunca. Há alguns anos, estudam-se diversas maneiras de barrar o avanço do mar. Na prática, porém, nada foi feito até hoje. Falta de dinheiro. Veneza corre risco de vida. Cada vez com menos moradores. Cada vez com mais turistas, mais poluição e mais água.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h49 - Publicado em 31 dez 1994, 22h00

Ricardo Arnt

Todo o incalculável patrimônio histórico e cultural de Veneza, na Itália, está afundando. A cidade-sonho da costa do Adriático, insulada no interior de uma laguna de 55 quilômetros de extensão por 13 quilômetros de largura, está morrendo. Cinqüenta anos de transformações industriais alteraram catorze séculos de equilíbrio delicado entre a cidade e a laguna. Marés cada vez mais altas afogam Veneza e seus famosos “palazzi”.

Soluções tecnológicas sofisticadas podem deter o mar. Mas há trinta anos discutem-se causas, estratégias e custos. O preço é alto e a vontade política, pouca. E, pior, enquanto o tempo passa, desaparece a matéria-prima de qualquer recuperação — os venezianos. Em 1954, eles eram 175 000 em 1974, 108 000; hoje, não passam de 78 000.

A Veneza de Goethe, Mozart, Nietzsche e Thomas Mann virou uma cidade-fantasma. Tem cada vez menos padarias, mercearias e cinemas. E cada vez mais turistas.

Veneza convive com a maré alta, acqua alta em italiano, desde a sua fundação, no século VI. Mas, com o passar do tempo, o subsolo cedeu e o piso da cidade baixou 23 centímetros em relação ao nível médio do mar em 1900. Para resolver a questão, desde o século XVI duas teorias se confrontam. A primeira defende o fechamento das três entradas da laguna, por onde a maré alta passa: elas seriam trancadas. A outra teoria prega a preservação máxima da laguna, atribuindo o aumento do impacto das marés aos detritos industriais e urbanos que se acumulam no fundo da laguna.

A pior fase começou com o desenvolvimento industrial. Em 1920, surgiram aterros nas margens da laguna, do lado do continente, onde ergueram-se as cidades de Mestre e de Marghera, um porto. Na década de 50, período de grande crescimento econômico no pós-guerra, a cidade de Marghera foi muito ampliada com novos aterramentos para a construção de um vasto complexo petroquímico.

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Na laguna, cuja profundidade média não ultrapassa 2 metros, escavaram-se canais para a navegação de grande calado, com 5 quilômetros de extensão e 15 metros de profundidade. Por eles, passaram a entrar enormes volumes de água Finalmente, em 1973, veio um novo aterramento, para a construção do aeroporto Marco Polo.

Há treze anos, formou-se o Consorzio Venezia Nuova para recuperar a bacia lagunar, integrado por várias empresas, como a Fiat, Iri-Italstat, Mazzi, Girolla, Lodigiani e Sacaim. Em 1988, criaram-se mais quatro consórcios semelhantes. Até agora, porém, foram feitos apenas testes e estudos. A crise econômica restringe a disponibilidade de recursos.

Às 17 horas do fatídico dia 4 de novembro de 1966, a maré alta atingiu o recorde histórico de 1,94 metro. As ondas impelidas pelo vento scirocco passaram por cima das muralhas na costa, entraram pelas bocas do porto e foram açoitar o Palácio dos Doges. No centro histórico e nas ilhas do estuário, 16 000 famílias e comerciantes perderam quase tudo. Todos os 432 transformadores elétricos da cidade explodiram, deixando os venezianos em pânico, no escuro, durante três dias.

Quando a água começou a recuar, lixo, móveis e mercadorias amontoavam-se em todos os cantos. Manchas de óleo e gasolina tingiam ruas e prédios. Barcos e gôndolas jaziam, quebrados, nas ruas. Milhares de ratos encurralados nas pontes e nos andares superiores das casas ameaçavam os moradores. Gatos, pombos e ratos mortos boiavam nos canais.

Um cenário inesquecível: calçadas afundadas, encanamentos entupidos, ralos abertos e milhares de toneladas de sujeira. Praças, jardins e plantações desvastados. Os danos ao patrimônio cultural foram gravíssimos. A cidade parecia abatida pela peste, como no romance do escritor alemão Thomas Mann, Morte em Veneza.

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Para os venezianos, as marés viraram uma ameaça constante. A família de Massimo Cannaregio, 32 anos, é uma das que desistiram e mudaram-se para Mestre: “Vivi a primeira infância em Veneza”, diz ele. “Nossa residência ficava no segundo andar de um prédio restaurado do século XVIII. Quando tinha quatro anos, minha família foi embora, porque a casa estava sempre úmida. A enchente de 66 fez um estrago danado e custaria muito dinheiro para reformar o prédio. Vendemos o imóvel por uma ninharia.”

Constrangida pela fragilidade ambiental, “a cidade mais bonita do mundo” transferiu moradores de seu centro histórico para aquela que os italianos chamam de “a cidade mais feia do mundo” — Mestre. Veneza esvaziou, enquanto Mestre inchou, sem nenhum planejamento urbanístico. Passou de 37 000 habitantes, em 1921, para 57 000, em 1951, 161 000, em 1961 e 205 000, em 1971.

Os jovens são os primeiros a sair, em busca de emprego, qualidade de vida, automóvel, lazer e outros consumos de que Veneza não pode proporcionar. Ali resiste a população mais velha da Itália: média de 46 anos, contra 40 anos da média nacional. Há poucos espaços para crianças. E cada vez menos infra-estrutura urbana.

Veneza não tem condições de virar uma espécie de Disneylândia, eternamente lotada de turistas. Nem os venezianos gostariam disso. Eles querem a mesma cidade, com canais em vez de ruas asfaltadas. Gaivotas em vez de vira-latas. E barcos (os vaporettos) em vez de ônibus.

A cidade é frágil e vive por um fio, sempre torcendo para que outra maré alta catastrófica, como a de 1966, não se repita. Mas para sobreviver terá de sair de seu imobilismo. Terá aprender a controlar as marés.

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Para saber mais:

A salvação da torre
(SUPER número 8, ano 5)

 

 


Memória pode ir por água a baixo

Em Veneza, pode-se admirar cerca de 450 palácios e residências de valor artístico inegável — neles, há quase sempre o toque de um mestre da arquitetura medieval, renascentista e barroca. A cidade, durante séculos, teve fama de ser ponto de encontro de artistas. Compositores como Rossini, Giuseppe Verdi e, mais recentemente, Igor Stravinsky fizeram a sua primeira apresentação em Veneza, no Teatro la Fenice. O Museu Accademia reúne obras de alguns dos mais famosos pintores italianos, todos com passagens pela capital do Vêneto.

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Um espetáculo com final repugnante

Em 10 de julho de 1989, Veneza sofreu outro trauma. Duzentas mil pessoas se espremeram na Praça São Marcos para assistir o concerto da banda inglesa Pink Floyd. Foi uma tentativa de fazer a cidade recuperar a fama de palco de grandes eventos culturais. A tragédia foi que os produtores do evento — musicalmente esplêndido — esqueceram que a cidade tinha poucos banheiros. No dia seguinte, ruas, vielas e canais amanheceram inundados. Não propriamente de água do mar.

 

 

 

Gente em todo canto

Ao mesmo tempo em que muitos venezianos desistem, aqueles decididos a ficar enfrentam hordas de turistas cada vez maiores: 1,6 milhão em 1951 e 8,5 milhões no ano passado. A previsão para o ano 2000 é de 15 milhões. O turismo é responsável por 63% da receita da cidade.

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O “congestionamento” de gente é tão comum que em alguns lugares usam-se semáforos para organizar a multidão. Entra-se no Palácio dos Doges em fila, sobem-se escadas em filas, passa-se pelos quadros de Bosch e Tintoretto em fila. A singela Ponte dos Suspiros, onde os condenados à morte passavam, olhavam o canal e suspiravam — o maior dos sedutores, Giacomo Casanova, fugiu dali pelo teto — é atravessada por centenas de pessoas a cada hora. Suspira-se, atualmente, para a travessia acabar logo.

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