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A mente de Paulo Freire

Ele criou um método de alfabetização eficaz. E uma pedagogia que estimula o aluno a refletir sobre a vida. Entenda por que sua figura é tão polêmica.

Por Alexandre Carvalho
Atualizado em 4 jul 2022, 11h37 - Publicado em 15 jun 2022, 10h39

Novembro de 2021. Celebrando os 100 anos de nascimento de Paulo Freire, a Universidade de Cambridge organizou uma série de eventos, ao longo de duas semanas, para discutir o legado do educador brasileiro. Na ocasião, Susan Robertson, diretora da Faculdade de Educação da universidade britânica, declarou: “Por toda parte, as comunidades acadêmicas estão encarando dificuldades quanto à sua liberdade que nunca tínhamos imaginado. Freire oferece um caminho a seguir para os educadores nessa resistência. Tudo o que ele falava, ideias sobre conhecer mais, ser tolerante, ser curioso…, são recursos que nos permitem confrontar esses desafios, viver bem uns com os outros e com o planeta”. 

Em meio às homenagens, a universidade inaugurada no século 13 instalou em suas dependências um busto de bronze de Paulo Freire, e assim descreveu o pensador pernambucano: “Ele não foi apenas uma figura notável na educação, mas também um dos mais influentes cientistas sociais da história. Seu trabalho-chave, [o livro] Pedagogia do Oprimido, é um texto central na teoria da aprendizagem e usado extensivamente ao redor do mundo, inclusive aqui em Cambridge”. 

Não se trata de uma opinião de Susan Robertson. Mas de um fato. Segundo um levantamento da London School of Economics and Political Science, Pedagogia do Oprimido – obra que Freire publicou em 1970, quando vivia fora do país, perseguido pela Ditadura Militar – é o terceiro livro mais citado mundialmente no ramo das ciências sociais. Três anos antes, exilado no Chile, o recifense já havia lançado Educação como Prática da Liberdade, seu primeiro livro – tão bem recebido na comunidade acadêmica que lhe rendeu um convite para dar aulas em Harvard. 

E esse reconhecimento perdurou por toda a sua vida. Paulo Freire é o brasileiro mais homenageado de todos os tempos no ramo da educação, com 35 títulos de Doutor Honoris Causa em universidades americanas e europeias. Em 1986, recebeu o prêmio da Unesco de “Educação para a Paz”. 

Mas, se os livros chamaram atenção global, o que primeiro lhe rendeu evidência foi a criação, no início dos anos 1960, de um método de ensino inovador: ao mesmo tempo em que alfabetizava adultos em tempo recorde, trazia um exercício de cidadania por meio de debates. O objetivo era tornar os alunos capazes de refletir sobre a própria situação – geralmente precária, em se tratando de adultos iletrados – e reivindicar seus direitos. 

Mas esse educador, tão celebrado mundo afora, foi, desde o começo de seu trabalho, contestado em seu próprio país. O problema foi a associação do seu nome à ideologia das ditaduras comunistas do século 20. 

Colagem com Paulo Freire em salas de aula, um mapa com Angicos e livros.
Tão celebrado mundo afora, Paulo Freire foi contestado em seu próprio país. E preso pela Ditadura Militar. (Zé Otávio/Superinteressante)
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Em uma nota no final de seu livro Pedagogia do Oprimido, por exemplo, o autor compara o pensamento do ditador Mao Tsé-tung sobre educação à sua própria filosofia: diz que o chinês pensa, como ele, que o conteúdo da educação “não pode ser elaborado a partir das finalidades do educador, do que lhe pareça ser o melhor para seus educandos”. A afirmação parece inofensiva, mas citar um governante assassino de milhões como exemplo positivo não tinha como passar em branco. Ainda mais numa época em que o mundo estava dividido em dois pela Guerra Fria. 

A simpatia de Freire pelo comunismo inflamou rejeição nos círculos conservadores – rejeição que acabou amplificada, nos dias de hoje, com o aumento da polarização política no país. 

Um exemplo notório: quando ainda estava em campanha para a eleição presidencial de 2018, o então candidato Jair Bolsonaro, questionado sobre o que pensava do Ministério da Educação da época, garantiu: se eleito, iria “entrar com um lança-chamas no MEC e tirar o Paulo Freire lá de dentro”. A intenção seria transformar em cinzas as ideias do educador, claro, pois Freire mesmo tinha morrido havia mais de duas décadas – em 1997, de um ataque cardíaco. 

O nome do educador acabou misturado a Fidel Castro e ao stalinismo na feijoada de desinformação sobre o que o seu trabalho representou para a história da pedagogia. Para saber exatamente por que defender ou criticar esse pensador, e compreender a relevância de sua obra, precisamos voltar seis décadas no tempo. Quando Paulo Freire teve a sacada que guiou seu método de alfabetizar – num experimento jamais visto. 

Educação que brota do cotidiano

Nascido em 1921, no Recife, Paulo Freire formou-se em Direito, mas nunca atuou nessa área. Paralelamente, estudou filosofia da linguagem e foi ser professor de Língua Portuguesa, ainda para jovens do Ensino Médio.

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Seu trabalho mais célebre, voltado para adultos analfabetos, começou quando foi indicado ao cargo de diretor do Departamento de Educação e Cultura do Serviço Social no Estado de Pernambuco, ainda em 1943. Mas foi graças a uma criança que teve a inspiração para o trabalho que o tornaria uma celebridade. 

Era início dos anos 1960 quando um achocolatado em pó, conhecidíssimo ainda hoje, já surgia com frequência em comerciais de televisão. A embalagem aparecia com um jingle repetindo o nome do produto: “Nescau, Nescau…” 

Lutgardes Costa Freire, então um menino de apenas 2 anos, viu essa propaganda inúmeras vezes. Num passeio de jipe com seu pai, então, o garotinho reconheceu a embalagem do produto numa placa em cima de um ponto de ônibus. E imediatamente começou a repetir: “Nescau, Nescau…”.

Naquele momento, Paulo, seu pai, teve o que as pessoas do século 21 chamam de insight. O intelectual concluiu que, se um menino de 2 anos conseguia “ler” a imagem de uma lata porque ela era onipresente em sua rotina, a alfabetização também precisava partir das experiências de vida das pessoas. Não de um ensino padronizado.

Resumindo, sua ideia foi esta: uma criança até pode testemunhar, em determinado momento, o pai de seu pai olhando para um cacho com frutos da videira. Mas “vovô viu a uva”, frase arroz de festa nas antigas cartilhas de alfabetização, não significa nada. Não lembra um acontecimento marcante. 

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Freire entendeu que o aprendizado da leitura e da escrita precisaria estar conectado àquilo que é relevante. E que ele poderia acelerar processos de alfabetização a partir de “palavras geradoras”, que fizessem a diferença no entorno do aluno. Se um adulto analfabeto tivesse seu ganha-pão como jardineiro, seria mais fácil se interessar por ler e escrever a palavra “rosa” do que “uva” . 

Fazia sentido. E tinha um bônus. 

Aproximar a alfabetização do que era significativo para cada indivíduo seria um estímulo para quem via com desconfiança, ou timidez, uma sala de aula – algo corriqueiro em adultos que nunca tinham frequentado uma.

Basta fazer uma analogia com os olhos de hoje. Há quem tenha uma dificuldade maior em aprender inglês, e por isso resista aos cursos de idiomas. Mas, se a pessoa é contratada por uma empresa onde o estrangeirismo domina o ambiente (principalmente se estiver numa área de T.I., em que o inglês está quase pau a pau com o português), é provável que ela mude de ideia. E comece a se interessar por aprender o que vem depois do verbo to be.

Para Freire, essa aprendizagem pelo diálogo com o contexto individual (ou comunitário) seria o contraponto ao que ele chamava de “educação bancária” (na qual o professor “deposita” os ensinamentos na mente dos alunos) – a pedagogia padrão à qual quase todo mundo é submetido. 

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Mas funcionaria? Ele provou que sim em um experimento histórico, numa cidade miserável do Rio Grande do Norte.

As 40 horas de Angicos

“Belota” não é um termo reconhecível para o cidadão urbano. Mas os sertanejos de Angicos, município pobre, a 170 quilômetros de Natal, sabiam bem em 1963 o que a palavra significa: é um enfeite usado tanto nas redes quanto nos utensílios dos vaqueiros. Seguindo a linha de alfabetizar a partir de nomes do cotidiano do aluno, esse foi o primeiro termo trabalhado no experimento de Freire e sua equipe, que ficou conhecido como “As 40 Horas de Angicos”. 

Por que “40 horas”? Porque, nesse período quase inacreditável de tão curto, adultos analfabetos da cidade potiguar, seguindo o método de Paulo Freire, já conseguiram ler e escrever uma série de palavras. Palavras que faziam parte de sua rotina. A alfabetização mais completa também foi (muito) rápida: levou 45 dias.

Parecia um milagre, mas 300 pessoas, entre homens e mulheres – a maioria, cortadores de cana da região –, estavam decodificando palavras num ritmo inimaginável pelos métodos convencionais.

Colagem com Paulo Freire atrás de uma cerca de lápis.
Com o método de Paulo Freire, 300 cortadores de cana do Rio Grande do Norte foram alfabetizados em apenas 45 dias. (Zé Otávio/Superinteressante)
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Tudo começou em novembro de 1962, quando estudantes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), orientados por Freire, chegaram ao povoado com duas tarefas: levantar as particularidades do vocabulário local e divulgar a proposta de alfabetização que seria oferecida em breve. 

A cidade, aliás, não foi selecionada por acaso. Era o lugar em que havia o maior índice de analfabetismo do Rio Grande do Norte. Cerca de 75% dos habitantes não sabiam ler e escrever até então.

Desse levantamento feito pelos universitários, os pesquisadores registraram 410 palavras usuais e, dentre essas, pinçaram 15 para iniciar o experimento. Até que, em janeiro de 1963, o próprio Freire chegou para as aulas. Mas elas não eram bem o que a gente entende por aula.

Para cada lição, um debate

“De modo geral eu proponho ao grupo que comecemos uma conversa, e não propriamente uma conferência minha. Se não sei a resposta a uma pergunta, eu não minto”, explicou o educador em uma palestra de 1994. “Desde muito menino, aprendi que o não saber faz parte do saber.”

E assim foi. No dia 24 de janeiro de 1963, primeiro dia dos trabalhos com os alunos, não houve lição de Língua Portuguesa. O que se viu foi um papo aberto sobre a realidade local. Só quatro dias mais tarde, a palavra “belota” inaugurou as aulas propriamente ditas. Além de “belota”, os angicanos falavam muito em “Deus”, “esmola”, “triste”, “medo”, “chuva” e “conformação”. 

E os professores começaram a escrever na lousa e apresentar em slides as sílabas desses termos, passando depois às famílias silábicas (como mostrar que o “be”, de “belota”, é parente de “ba”, “bi”, “bo” e “bu”). Era o ponto de partida para que os estudantes seguissem para novas formações.

Cada palavra ensinada rendia um debate, para que os estudantes refletissem sobre o significado desses termos em seu cotidiano. “Na hora em que você conversa sobre suas questões e aprende a ler sobre elas, aquela ferramenta não enferruja, não é posta de lado”, afirma o advogado Marcos Guerra, que foi coordenador do projeto elaborado por Freire. 

Quando a palavra da vez era “trabalho”, por exemplo, a conversa girava em torno das condições dos trabalhadores: remuneração, garantias, horários de entrada e saída… “Eu aprendi a escrever meu nome, mas também reconheci meus direitos, porque a gente não tinha direito a nada. Não se tinha nem documento”, lembrou-se uma aluna sobrevivente daqueles tempos, a já idosa Luzia de Andrade, para o filme A is for Angicos, da cineasta americana Catherine Murphy – um documentário produzido pelo Consulado da Suíça em parceria com o Sesc (tem no YouTube).

Pense que, à época, indivíduos analfabetos eram proibidos de votar – isso só aconteceria a partir de 1985. Quando Angicos foi transformada por aquelas aulas não convencionais, então, os alunos não saíram do experimento apenas com a capacidade de escrita e leitura. A cidade ganhava ali 300 novos eleitores. 300 cidadãos.

De fenômeno da pedagogia a inimigo do Estado

Em março, ao final do experimento de 45 dias, o resultado ganhou as manchetes de jornais: os alunos já tinham o básico para se comunicar por palavras e frases escritas. A repercussão foi tanta que a cerimônia de encerramento do projeto contou com o então presidente da República: João Goulart.

Assim, da noite para o dia, Paulo Freire se tornou uma estrela da educação brasileira, e Jango, que era entusiasta das Reformas de Base, aprovou a multiplicação dessas experiências no chamado Plano Nacional de Alfabetização. Queria promover uma formação em massa de educadores que seguissem o método Paulo Freire.

As Reformas de Base eram a bandeira de Jango desde os tempos em que ele tinha sido vice de Juscelino (1956-1961): um conjunto de medidas que pretendiam atenuar o quadro de desigualdade social. Reforma agrária, administrativa, constitucional, eleitoral, fiscal, bancária e educacional. Nesta última, entraria Paulo Freire. 

Era uma reforma não apenas de como se fazia educação no Brasil, mas também de como se estendia a cidadania a pessoas privadas dos seus direitos. Só que ela não vingou. Assim que o golpe militar foi deflagrado em 1964, um ano após a experiência de Angicos, a Ditadura imediatamente extinguiu o Plano Nacional de Alfabetização. E prendeu Paulo Freire por 70 dias, acusado de traidor da pátria.

Colagem com o rosto de Paulo Freire atrás de vários punhos erguidos, alguns segurando lápis.
“Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.” A frase mais famosa de Freire não pegou bem entre a elite econômica do país – e no complexo período da Guerra Fria. (Zé Otávio/Superinteressante)

A ação dos militares foi absurda. Afinal, mesmo que fosse identificado com a esquerda (e o entusiasmo de João Goulart parecia um carimbo disso), Paulo Freire criou um método de alfabetização inovador, com resultados notórios. E não se dispensam iniciativas eficazes, mesmo que venham de adversários ideológicos. Mas é preciso lembrar que os tempos eram outros. O mundo vivia a Guerra Fria, e havia um medo real em parte da sociedade brasileira de que o país se tornasse um satélite da União Soviética. Principalmente entre a elite econômica. Daí tratar como “subversivo” qualquer um que parecesse alinhado aos movimentos internacionais de esquerda. Caetano Veloso, na época um artista muito mais interessado numa releitura do modernismo da Semana de 22 do que em política, foi preso e exilado por causa de uma bandeira num palco em que se apresentava – a imagem trazia a mensagem “Seja Marginal, Seja Herói”. Enfim, havia mesmo uma paranoia generalizada.

Vinte e um anos de Regime Militar relegaram Freire ao ostracismo (senão no campo da discussão acadêmica, que ganhou o mundo, na prática escolar). Salvo exceções mais experimentais, seu método não foi e não é aplicado no Brasil.

“Paulo Freire nunca foi aplicado na educação brasileira. Ele entra [nas universidades] como frase de efeito, como título de biblioteca, nome de salão”, diz José Eustáquio Romão, fundador do Instituto Paulo Freire, historiador e doutor em Educação. Freire entraria para a história não pelo fenômeno de rapidez na alfabetização, testada no Rio Grande do Norte, mas por suas teorias sobre pedagogia, estudadas no mundo inteiro. Teorias que tiveram sua síntese mais difundida numa obra que escreveu no exílio.

O livro

Depois de passar pouco mais de dois meses nas celas da Ditadura, Freire acabaria solto para viver na Bolívia, antes de morar por cinco anos no Chile – onde atuou para a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação, e aproveitou a distância dos militares brasileiros para escrever livros. Quando foi convidado para ser professor visitante em Harvard, já havia concluído sua terceira, e mais importante, obra: Pedagogia do Oprimido.

Nela, Paulo Freire explica a importância de uma “pedagogia emancipatória do oprimido”. O autor procura orientar educadores a conscientizar e capacitar a população, de modo que ela não seja facilmente manipulada. Isto é, que desenvolva consciência crítica. “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”, escreveu – talvez sua frase mais famosa.

Dividir a sociedade entre opressores e oprimidos, vale notar, não reflete a complexidade das relações econômicas do mundo real. O próprio Freire, antes de ser perseguido pelos militares, não era um oprimido, tampouco um opressor. Era um membro da sociedade que conseguiu demonstrar seu talento com resultados objetivos. O mundo não é uma arena de bons contra maus, mas um palco de interesses e ideologias que não raro batem de frente.

Mas é preciso destacar um ponto. Paulo Freire alfabetizava cortadores de cana – uma classe indubitavelmente oprimida por péssimas condições de trabalho e de remuneração. Era natural, então, que ele entrasse em conflito com quem defende a manutenção das coisas como elas são.

Após a temporada chilena, Paulo Freire ainda passaria um ano em Cambridge, antes de se mudar para Genebra. Só voltaria ao Brasil em 1979, com a Anistia de Geisel. Aí, sim, o educador de Pernambuco decidiu entrar de fato para a política. Freire filiou-se ao PT e se tornou secretário de Educação da cidade de São Paulo quando Luiza Erundina foi prefeita, ocupando o cargo entre 1989 e 1991. Morreria seis anos depois, aos 75.

E a real é que seu maior legado, o de promover a consciência crítica na educação, paira acima das ideologias. Porque manipuladores nunca faltarão – seja à direita, seja à esquerda, seja ao centro.  

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