Super Promoção: 3 meses por 1,99/mês

“I am become death”: Oppenheimer e Raul Seixas citaram o mesmo poema hindu

Entenda o verso que parece ter um erro gramatical, que está na mesma escritura por trás da canção Gita e que consolou o pai da bomba atômica.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 15 mar 2024, 14h26 - Publicado em 19 jul 2023, 16h01

A citação mais conhecida do físico J. Robert Oppenheimer – “pai” da bomba atômica biografado no filme de Christopher Nolan – não é dele. É um verso do poema épico hindu Baghavad Gita (título que se traduz por algo como “canção do bem-aventurado”), escrito em sânscrito no quarto século antes de Cristo. 

Mais precisamente, o primeiro da trigésima segunda estrofe, que Oppenheimer traduziu assim:

Now I am become death, the destroyer of worlds.
“Agora eu me tornei a morte, o destruidor de mundos.”

Oppenheimer cita o verso em um depoimento gravado após a 2ª Guerra – o físico narra, para uma câmera, a reação de sua equipe no momento da detonação bem-sucedida da primeira bomba atômica no Novo México em 1945. Esse foi o único teste antes dos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki. Aqui vai a transcrição completa de sua entrevista:

“Nós sabíamos que o mundo havia mudado para sempre. Algumas pessoas riram, outras choraram, a maioria ficou em silêncio absoluto. Eu me lembrei de um verso da escritura hindu Baghavad Gita em que Vishnu está tentando persuadir o príncipe de que ele deve cumprir seu dever, e para impressioná-lo, assume sua forma de muitos braços e diz: ‘Agora eu me tornei a morte, o destruidor de mundos’. Acho que todos nós sentimos isso, de uma maneira ou outra.”

O Baghavad Gita é uma das várias escrituras sagradas do hinduísmo e recebeu dezenas de traduções para o inglês e outras línguas europeias ao longo de séculos. Oppenheimer sabia ler sânscrito – de fato, com 25 anos, ele já falava seis línguas – e é provável que tenha traduzido o verso de cabeça ou errado ao citá-lo de memória, já que sua versão não corresponde ao pé da letra a nenhuma versão do poema em inglês. 

Quem sabe falar (mesmo que só um pouquinho) de inglês, quando se depara com a citação, sempre acha estranha a estrutura “I am become”. Os falantes nativos também acham, e perguntam internet afora se ela está errada. A resposta é “não”: ela só é arcaica. Vamos explicar. 

Continua após a publicidade

O inglês de hoje nos dá três possibilidades de conjugação verbal, no contexto desse verso:

I become (o presente, “eu me torno”);
I have become (o presente perfeito, “eu me tornei”);
I became (o passado simples, “eu me tornei”).

Uma delas, o presente perfeito de I have become, não tem uma tradução ou equivalência exatas no português, o que a torna uma eterna dificuldade para os estudantes. A diferença entre I have become e I became – e os critérios para escolher um ou outro – tem a ver com algumas sutilezas. 

De maneira muito simplificada, é o seguinte: se a ação começa e termina no passado, sem influenciar o presente, você tende a usar o passado simples: I ate acarajé when I went to Bahia, “eu comi acarajé quando fui pra Bahia”. 

Por outro lado, se algo rolou no passado mas tem desdobramentos no presente, ou continua rolando no presente, o presente perfeito é a escolha certa de tempo verbal: I have loved her all my life, “eu a amei por toda minha vida.” 

Continua após a publicidade

O I am become escolhido por Oppenheimer, que usa o verbo to be em vez do verbo to have, é um jeito antigo de conjugar o presente perfeito. Aparece também em peças de Shakespeare e na Bíblia do Rei James, que é uma das versões mais famosas do livro sagrado cristão em países anglófonos. 

É provável, claro, que o físico tenha optado por essa forma justamente porque ele aparece em outras peças literárias antigas e cultuadas – o que lhe dá um sabor solene, condizente com a explosão de uma bomba atômica.

O tempo e a morte 

Mais interessante do que o jeitinho épico de conjugar o verbo, porém, é a escolha da palavra “morte”. O termo original, em sânscrito, significa “tempo” ao pé da letra – e a maior parte dos tradutores opta por “eu sou o tempo”, mesmo (você pode ver uma lista com dezenas de traduções possíveis do verso aqui, no site de Harvard). 

Faz sentido que “morte” e “tempo” sejam intercambiáveis nesse contexto, já que o tempo é um destruidor inevitável de quaisquer mundos: tudo, até a própria Terra, vai desaparecer um dia. 

Traduzir poesia não é um trabalho literal. Se você só olha o significado de cada palavra estrangeira no dicionário e então tenta transcrevê-la na sua língua natal, todo o resto se perde: as rimas, a métrica dos versos, as sacadas. É só tentar cantar uma música em inglês em português para entender por que poemas são, por definição, intraduzíveis: 

Continua após a publicidade

I’m in love with the shape of you.
“Eu estou apaixonado pelo formato de você.” 

(Desculpa, Ed Sheeran.) 

Porém, se você fizer um esforcinho para se adequar à métrica, o verso fica cantável:

“Me apaixonei por suas formas.”

Note que foi preciso mexer com a gramática para encaixar a letra traduzida na melodia da música original. Traduzir poesia é isso: escrever um poema novo que remeta ao antigo da maneira mais completa possível. Considerar ritmo e forma além do significado. 

Continua após a publicidade

Com a interpretação em jogo, alguns tradutores preferem usar “tempo” em vez de “morte” no Bhagavad Gita. E é mais fácil entender porque as duas palavras funcionam quase como sinônimos se você ler o verso no contexto da estrofe. Olha só uma versão em português, traduzida por Francisco Valdomiro Lorenz:

“Eu sou o Tempo, destruidor dos mundos.
Sob esta terrível forma, aqui
Me empenho na destruição
Desta multidão de príncipes.
De todos os guerreiros que aqui vês,
Nenhum Me escapará. Só tu os sobreviverá.”

A estrofe revela outro significado oculto na citação de Oppenheimer. Nessa cena do poema, um dos deuses demonstra remorso em matar durante uma batalha. E o outro deus do diálogo comenta, justamente, que a morte é inevitável: os que não morrerem lutando vão morrer depois por causas naturais – simplesmente porque o tempo passa, e a morte é inevitável. Ele continua: 

“Levanta-te, pois, teu é o poder;
Combate, tu serás o vencedor,
Meu braço já abateu teus inimigos;
Sê instrumento Meu; sê Meu executor.
Derrota todos: Bhishma, Drôna, Karna,
E Yayadratha com os mais heróis;
Eu já os destrui, não estremeças! Coragem!
e serás o vencedor!”

Oppenheimer sentia um remorso enorme por ter criado a bomba atômica, e se dedicou ao ativismo contra armas nucleares. Mas ele não se opôs completamente ao lançamento da primeira bomba contra Hiroshima durante a 2ª Guerra – uma postura ambivalente, que Nolan retrata bem no filme. É possível que os versos tenham lhe dado alguma forma de alívio, já que funcionam justamente como consolo para um guerreiro que não quer guerrear. 

Continua após a publicidade

Tá, mas e o Raul? 

Por fim, a curiosidade prometida no título. Sabe a música “Gita”, de Raul Seixas? Outra referência ao Bhagavad Gita. Tá aqui o trecho original, em que o deus lista seus atributos, exatamente como Raul (a lista é longa, colocamos só um pedacinho):

Entre  os  purificadores,  sou  o  puro  ar;
Entre os guerreiros, sou Rama;
Entre  os  peixes  sou  Makara;
Entre  os  rios,  sou  o  Gânges.
De tôda a criação,
Eu sou o princípio, o meio  e  o  fim.
Das  ciências,  sou  a  ciência  do Espírito
e o verbo dos oradores.
Das  letras,  sou  o  A;
nas  palavras  a  conjunção.
Eu  sou  o  tempo  perdurável
e  Aquêle  cuja face se volta para tôdas as partes.

Compartilhe essa matéria via:

Oppenheimer: O triunfo e a tragédia do Prometeu americano

Oppenheimer: O triunfo e a tragédia do Prometeu americano

Publicidade


Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

ECONOMIZE ATÉ 88% OFF

Super Promoção! Digital Completo

Apenas R$ 1,99/mês nos 3 primeiros meses
Garanta acesso ilimitado aos sites, apps, edições e acervo de todas as marcas Abril
Após o terceiro mês, cancele a qualquer momento
De: R$ 16,90/mês
Por 1,99/mês

Revista em Casa + Digital Completo

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*
a partir de R$ 14,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app. Pagamento único trimestral de R$5,97, a partir do quarto mês, R$ 16,90/mês. Oferta exclusiva para assinatura trimestral no Plano Digital Promocional.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.