Livro da Semana: “Na Fissura”, de Johann Hari
A maior e mais detalhada reportagem já escrita sobre o resultado pífio da guerra às drogas no século 20 – e sobre o que a legalização da maconha no Uruguai ou as clínicas de heroína na Suíça têm a ensinar se quisermos evitar novos erros.
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Já foi possível comprar cocaína na farmácia. Na virada do século 19 para o 20, o extrato das folhas de coca vinha misturado com cafeína – extraída das sementes de plantas africanas do gênero Cola – em um tônico de uso terapêutico. Coca-Cola.
Ela era uma de muitas receitas de soft drinks que se popularizam na época. Os médicos teciam loas aos efeitos benéficos da água com gás. Engenhocas em diversos estabelecimentos misturavam o líquido com bolhas de gás carbônico a xaropes adocicados. Essas foram as avós das máquinas de refrigerante utilizadas hoje em redes de fast food.
O farmacêutico John S. Pemberton (1831–1888) bolou a receita da Coca-Cola e começou a vendê-la em Atlanta, nos EUA, como um remédio barato para doenças brandas e também como um tratamento para militares veteranos viciados em analgésicos opioides – que tinham crises de abstinência horríveis após voltarem dos campos de batalha da Guerra Civil Americana.
Na época, enquanto os soft drinks se tornavam um fenômeno comercial, o álcool caminhava rumo ao posto de inimigo público e locais chamados bares de temperança – iguais aos bares comuns em tudo, mas sem uma única bebida alcoólica à venda – se popularizaram. Esse movimento culminaria com a Lei Seca de 1918 (seguida, naturalmente, pelo surgimento de uma enorme rede ilegal de fabricação e tráfico de álcool de baixíssima qualidade).
O que torna uma droga ilegal? Por que drogas diferentes, em épocas diferentes, eram aceitas ou não por grupos diferentes? Nativos americanos provavelmente mascam folhas de coca desde a chegada do Homo sapiens ao continente; evidências arqueológicas de 8 mil anos já mostram o consumo da planta nos Andes.
Já faz décadas que governos, polícias e exércitos de todo o mundo gastam montanhas de dinheiro público no combate violento ao tráfico. É um processo infrutífero, que mata inocentes a rodo, potencializa a degradação das periferias de cidades, alimenta o preconceito racial e perpetua a desconfiança da população mais pobre nas autoridades.
Tantos efeitos colaterais não vêm acompanhados de remédio algum: apesar do rastro de sangue, os governos sequer fazem cócegas nas enormes redes de fabricação e distribuição de drogas. Enquanto isso, os viciados são tratados como párias e padecem à abstinência forçada e outras soluções medievais – mesmo que políticas públicas realmente eficazes em ajudar dependentes químicos sejam conhecidas e bem descritas na literatura especializada.
O que realmente leva o viciado a se viciar? O consumo de uma droga, por si só, raramente é suficiente para instaurar e preservar a dependência (ainda que, é claro, um de seus pilares seja a complexa química do sistema de recompensas do cérebro humano).
Há evidências abundantes de que pobreza, empregos desetimulantes, solidão e incapacidade de manter vínculos sociais são catalisadores de vícios, e que pessoas supostamente escravizadas por moléculas na verdade as deixam para trás com naturalidade quando ganham novas vidas e laços.
No livro Na Fissura, o jornalista escocês Johann Hari viaja o mundo para entender as origens e os erros da guerra às drogas, destrincha a biografia de seus principais personagens e esclarece os erros e preconceitos que alimentam o tráfico e os vícios em vez de tratá-los.
No Uruguai, vê de perto os efeitos benéficos da legalização da maconha e conversa com o presidente Pepe Mujica. Na Suíça, narra a implantação e os resultados de um programa em que o próprio Estado fornece a heroína aos viciados – até que eles, com suas vidas reconstruídas, abandonem a droga naturalmente. Nos EUA, explora arquivos em busca das origens da guerra às drogas durante a Primeira Guerra Mundial.
O resultado é maior e mais detalhada reportagem já escrita sobre os inúmeros fracassos do combate aos vícios no século 20 – e um manifesto corajoso sobre o que precisamos fazer para avançar no século 21.