O antropólogo Thor Heyerdahl , a última viagem
Pouco antes de sua morte em abril, o antropólogo Thor Heyerdahl falou da sua aventura a bordo da jangada Kon-Tiki e das impressões de sua viagem ao Brasil, em 1954
Pablo Villarrubia Mauso
Quando zarpou do Peru a bordo de uma frágil balsa feita de juncos até a proximidade do Taiti, em 1947, Thor Heyerdahl queria provar ao mundo sua polêmica tese de que as ilhas da Polinésia foram colonizadas por peruanos – e não por asiáticos, como diziam os historiadores. Mesmo que não tenha convencido os cientistas, a aventura de 101 dias no mar, a bordo da frágil Kon-Tiki (nome de um deus da Polinésia que batizou o barco), ganhou fama mundial ao virar best-seller e se transformar num documentário premiado com o Oscar. E mais: a viagem conseguiu mostrar para os incrédulos arqueólogos que o oceano não era um limite intransponível para as frágeis embarcações dos povos pré-históricos – ou provou, pelo menos, que isso não seria impossível se um deles tivesse o espírito audacioso de Thor Heyerdahl.
No dia 16 de abril, ao morrer de câncer no cérebro, o norueguês grandalhão, de 87 anos, que encantou o mundo com suas aventuras fez sua última viagem. Poucos meses antes, quando concedeu essa entrevista, ele continuava defendendo idéias polêmicas. Em um dos seus projetos recentes, Thor viajava em busca de evidências arqueológicas que comprovassem a sua tese de que os vikings se originaram do Mar Cáspio, na Rússia, e só depois migraram para os países nórdicos. Apesar da voz cansada, já abatida pela doença, seus olhos azuis ainda brilhavam quando conversava sobre esses temas na casa em que vivia na ilha espanhola de Tenerife, no que viria a ser um de seus últimos depoimentos.
Super – Por que o senhor decidiu construir a balsa Kon-Tiki, em 1947?
Queria mostrar aos cientistas que o homem sempre buscou expandir seus horizontes. Com a Kon-Tiki, quebrei o dogma de que as barcas de junco não poderiam agüentar uma travessia da costa do Peru até a do Taiti.
Por que o senhor foi tão criticado por alguns cientistas?
Alguns acreditavam que a expedição de 101 dias da Kon-Tiki fora uma montagem publicitária, pois uma balsa com aquelas características não poderia durar mais de duas horas sem afundar. Quando eles viram o documentário, apesar de malfeito e danificado pelas condições climáticas, ficaram calados. Ainda hoje tenho muitos inimigos. Eles já não duvidam das minhas expedições, mas contestam a capacidade de alguns povos do passado de navegar longas extensões marítimas.
Quais são os principais pontos de contestação das suas idéias?
Eles não admitem, por exemplo, que o deus Kon Tiki da Polinésia seja o mesmo Viracocha, o deus barbado e de pele branca que era venerado no lago Titicaca, entre o Peru e a Bolívia. Na verdade, ele surgiu nos Andes e foi levado pelos navegantes pré-incas até a Polinésia, a milhares de quilômetros de distância. Além disso, existem inúmeras semelhanças entre as estátuas encontradas nas ilhas do Pacífico e algumas feitas pelas antigas civilizações da América do Sul e da América Central, sugerindo um intercâmbio cultural maior do que os arqueólogos imaginam até hoje.
Mas só existem essas provas?
Não, apenas lhe dei um exemplo. Posso lhe dar outros: os polinésios usavam um complicado sistema de cordas com nós que servia de código para guardar informações, iguais aos usados pelos incas do Peru. Na Polinésia, foi encontrado um tipo de pedra, o lápis-lazuli, que só existe no Chile, e uma espécie de concha que é típica do Panamá e do Equador. A partir desse e de outros dados, especialmente botânicos, concluí que os primeiros homens que povoaram as ilhas dos mares do Sul chegaram lá por volta do século V antes de Cristo, procedentes do Sudoeste asiático. Um onda migratória expressiva chegaria mais tarde, por volta de 1.100 d.C., procedente da América do Sul.
Entre 1937 e 1938, o senhor viajou até a ilha Fatu Hiva, no arquipélago das Marquesas, junto com a sua primeira esposa, para viver como Adão e Eva…
O capitão do barco nos deixou naquela ilha e só voltou um ano depois para nos buscar. Fomos morar no meio do mato. Comíamos tudo o que a terra dava, desde cocos até raízes, além de peixes. Quisemos experimentar como viviam os nativos no seu estado mais natural. Foi, na verdade, um exercício filosófico que valeu a pena.
E que respostas encontrou nessa viagem?
Primeiro, que o homem ocidental não pode voltar ao seu estado natural. E, em segundo lugar, que o vento e as correntes marítimas eram a chave do mistério da origem da vida sobre as ilhas da Polinésia. Compreendi que a civilização é necessária para o homem moderno. Porém, o homem primitivo foi mais feliz, apesar das dificuldades de sobrevivência e de um período de vida mais curto.
O que os nativos da ilha lhe ensinaram?
Tínhamos um mestre espiritual, um ancião chamado Tei Tetua, o último sobrevivente de um grupo de canibais. Ele foi convertido ao Cristianismo mas chegou a provar carne humana quando era jovem. Foi ele quem despertou minha atenção para uma estranha lenda, a do deus Tiki, o filho do Sol de pele branca , narrada pelos seus antepassados. Tiki chegou pelo mar vindo do leste, procedente de uma terra enorme chamada Fiti-Nui. Foi esse dado que me fez pensar que os polinésios receberam a visita de um rei, pertencente a alguma civilização do Peru, trazido pelas correntes marítimas.
O senhor já esteve no Brasil?
Sim, há muito tempo. Foi em 1954, quando fui convidado a participar do 30º Congresso de Americanistas que se realizou em São Paulo. Estava então acompanhado da minha esposa Yvonne. Tinha curiosidade de conhecer os índios amazônicos. Por isso, peguei um monomotor até Santa Isabel, nas margens do rio Araguaia. O avião fez um pouso forçado durante a viagem. Tivemos que voltar remando em uma canoa junto com o piloto e dois índios carajás.
O que mais lhe impressionou durante a viagem?
Durante vários dias, vimos somente a selva verde, a água marrom, muitos pássaros multicoloridos e macacos escandalosos. Achei impressionante quando milhares de olhos brilhantes nos espreitavam à noite: eram jacarés. Foi fantástico. Filtrávamos a água barrenta com os lenços, comíamos raízes e ovos de tartarugas.
O senhor é considerado um grande ecologista, uma faceta menos conhecida dos seus leitores…
Acho que fui um dos primeiros ecologistas da história, pelo menos do ponto de vista atual, pois os indígenas sempre foram os que entenderam melhor as relações entre o homem e a natureza e o respeito que se deve ter por ela. Militei durante muitos anos junto ao World Wildlife Fund (Fundo Mundial Para a Vida Selvagem) e à Cruz Verde Internacional, ambos dedicados à preservação do meio ambiente.
Quais são seus mais recentes projetos e pesquisas?
Estou muito interessado na busca da origem dos vikings. Eu mesmo tenho financiado expedições até o Mar Cáspio, na Rússia. Ali viveram os azarís, um povo que migrou até latitudes nórdicas e se tornou viking. Nas rochas encontrei muitas inscrições com embarcações semelhantes aos drakares vikings.
Frase
“Acredito que o homem primitivo foi mais feliz do que nós, apesar das dificuldades de sobrevivência”
Thor Heyerdahl
• Antropólogo norueguês, estudou em Oslo e lutou na Segunda Guerra Mundial para expulsar os nazistas do seu país.
• Em 1937, ele e a esposa Yvone foram viver como Adão e Eva no arquipélago das Ilhas Marquesas (Polinésia).
• Navegou pelo Pacífico numa frágil jangada de junco para provar que os peruanos podem ter colonizado a Polinésia.