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O que é o Navio de Teseu, paradoxo mencionado no final de WandaVision?

O conceito, apresentado pelo Visão no último episódio, é um dilema filosófico que existe desde a Grécia Antiga.

Por Rafael Battaglia
Atualizado em 20 mar 2021, 19h53 - Publicado em 9 mar 2021, 15h48

Vamos começar com o óbvio: o texto a seguir contém um monte de spoilers sobre o desfecho de WandaVision, a primeira série do Universo Cinematográfico da Marvel (o MCU) do Disney+. Se você ainda não assistiu, o aviso está dado.

 

No último capítulo de WandaVision, Wanda, Visão e os gêmeos Billy e Tommy precisaram lidar com diversas ameaças ao mesmo tempo: a bruxa Agatha Harkness, os agentes que invadiram Westview e aquilo que os fãs passaram a chamar de Visão Branco – a carcaça do sintozoide morto por Thanos em Guerra Infinita e que foi reanimada pelo diretor da S.W.O.R.D., Tyler Hayward.

Ao melhor estilo Os Incríveis, a família superpoderosa se dividiu para enfrentá-los. Contra Agatha, Wanda finalmente liberou todos os seus poderes mágicos e se tornou, de fato, a Feiticeira Escarlate. Já as crianças deram uma amostra de suas habilidades contra os agentes da S.W.O.R.D. – e contaram com uma ajudinha de Monica Rambeau, agora também um super-heroína.

Mas enquanto a briga comia solta pelas ruas de Westview, Visão decidiu ter um papo-cabeça com o seu clone – ironicamente, em uma biblioteca.

Vamos refrescar a sua memória. Quando o Visão Branco disse que sua missão era eliminar o verdadeiro Visão, a versão colorida respondeu: “Ora, mas eu não sou o verdadeiro Visão. Só um Visão condicional.”

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(Disney+/Divulgação)

A resposta deu um bug nos circuitos do robô. “Necessito de elaboração”, respondeu o Visão Branco. Foi a deixa para que o outro Visão mencionasse o tal Navio de Teseu, um paradoxo que existe desde a Grécia Antiga e que, na história, serve como uma analogia para o seguinte problema: quem, afinal, é o verdadeiro Visão?

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Calma que a gente chega lá.

O Navio de Teseu

O paradoxo do Navio de Teseu foi descrito pela primeira vez pelo historiador Plutarco (46 d.C. – 120 d.C.) na obra Vidas Paralelas, um conjunto de biografias de gregos e romanos ilustres.

Na mitologia grega, Teseu foi um importante herói, fruto de uma relação entre sua mãe, Edra, com Egeu, rei de Atenas. Em algumas ocasiões, ele é descrito como um semideus, filho de Edra com Poseidon, deus dos mares.

Em uma das versões da história, Teseu conheceu Egeu aos 16 anos, quando o herói, depois de travar várias batalhas com ladrões pelo caminho, chegou à Atenas. Ao empunhar uma espada que, no passado, havia sido sua, o rei de Atenas não teve dúvidas: aquele era o seu filho – e herdeiro do trono.

Na época, Atenas passava por uma terrível imposição de Minos, o rei da ilha de Creta. Para evitar uma guerra, os atenienses deveriam enviar, a cada nove anos, 14 pessoas (sete mulheres e sete homens) para um sacrifício. Elas eram obrigadas a entrar no labirinto do Minotauro, onde serviriam de comida para a criatura.

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Ao saber disso, Teseu se prontificou a ir à Creta como tributo, matar o Minotauro e livrar Atenas do problema. Deu certo: com a ajuda de Ariadne, filha de Minos, Teseu cumpriu a tarefa e ainda conseguiu escapar do labirinto – o que até então era considerado impossível.

O paradoxo descrito por Plutarco começa quando Teseu retorna à Atenas. Imagine o seguinte: como é uma viagem demorada, as peças do seu navio pouco a pouco se deterioram e precisam ser trocadas. Até aí, tudo bem. O problema é que as trocas são tantas que, ao final da viagem, todas as peças originais foram trocadas por novas.

A história, naturalmente, ganhou novas versões com o passar do tempo. Na cena de WandaVision, o Visão Branco diz que o barco virou uma peça de museu e, com o tempo, as peças deterioradas foram substituídas. Mas a ideia central se mantém: se a carcaça do barco mudou 100%, o navio de Teseu ainda é o mesmo?

Diversos filósofos tentaram resolver esse problema. O grego Heráclito comparou a situação com a de um rio: suas águas são constantemente renovadas, mas ele permanece o mesmo.

Já para Aristóteles, as coisas necessitam de quatro causas para existir: a material (do que a coisa é feita), a eficiente (quem a fez), a formal (como ela foi feita) e a final (a finalidade, o propósito dela). No caso de Teseu, o navio só mudava sua causa material – então ainda era o mesmo.

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No século 17, o inglês Thomas Hobbes adicionou uma camada extra de complexidade ao problema, e que também é mencionada pelo Visão: suponhamos que alguém pegou todas aquelas peças antigas do navio, restaurou-as e construiu um novo barco.

O que temos agora são dois navios: um que teve todas as suas peças gradualmente substituídas (vamos chamá-lo de navio A), e outro feito a partir das peças originais (navio B).

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(Thales Molina/Mundo Estranho)

Perceberam a analogia? O Visão colorido, marido de Wanda e pai dos gêmeos, é apenas uma manifestação dos poderes da Feiticeira Escarlate – como ela mesmo diz no final do episódio, um fragmento da Joia da Mente que vive dentro dela. A joia, vale dizer, foi o objeto que trouxe o Visão à vida em Vingadores: Era de Ultron.

Já o Visão Branco, por outro lado, é o corpo do Visão sem a memórias do sintozoide – como um computador formatado. O Visão colorido, então, possui a essência do herói, enquanto o outro tem o seu corpo.

Haja filme da Marvel para explicar.

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Possíveis respostas

Em um ótimo vídeo do canal Wireless Philosophy, Jennifer Wang, professora de filosofia da Universidade da Geórgia, nos EUA, mostra que há ao menos cinco possíveis soluções para o paradoxo. Vamos entender cada uma delas.

Antes, vale apenas dizer que não há uma única solução para o paradoxo. Para cada uma delas, existem premissas consideradas e ignoradas. Seja qual for a explicação, há pontos positivos e negativos.

A primeira solução considera a premissa de que objetos sobrevivem a mudanças graduais. Nesse caso, o navio A, ainda que tenha tido todas as suas peças trocadas, é, na sua essência, o navio de Teseu.

A segunda solução ignora essa premissa ao dizer que, algumas vezes, objetos não aguentam mudanças graduais. Nesse caso, há a suposição de que, em certo ponto das trocas de peças, o navio de Teseu quebraria. Contudo, essa solução é considerada um pouco arbitrária.

A terceira solução é ainda mais radical. De acordo com ela, objetos nunca sobrevivem a mudanças. Esse argumento foi defendido no século 20 pelo filósofo americano Roderick Chisholm – que, por sua vez, baseou-se nas ideias do britânico Joseph Butler, que viveu no século 18.

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Butler acreditava que objetos e coisas só permaneciam os mesmos ao longo do tempo por causa do senso comum. Para isso, ele usou o exemplo de uma bolota, o fruto dos carvalhos – aquela comida que o bichinho Scrat, de A Era do Gelo, está sempre buscando.

Segundo o filósofo, as pessoas só diziam que a bolota e a árvore eram a mesma coisa porque, por anos, o fruto ficou parado no mesmo lugar, crescendo sem parar. Mas se olhássemos para as partículas de cada um deles, veríamos que eram coisas totalmente diferentes.

Há algumas falhas aí. Como argumenta Wang, a teoria abre brechas para diversas interpretações. Suponhamos, por exemplo, que o navio de Teseu tenha mil peças a serem trocadas. Uma vez que os objetos não sobrevivem à nenhuma mudança, isso significa que, a cada reparo, um novo barco é criado? Teríamos, então, mil navios de Teseu? Estranho.

A quarta solução respeita duas premissas importantes: a de que objetos sobrevivem a mudanças graduais e a de que objetos estão aonde suas partes estiverem. Esses são os dois princípios necessários para a explicação do navio A e do navio B, respectivamente.

Pois é. A quarta solução admite a existência dos dois navios de Teseu. Mas calma: isso não quer dizer que A = B. Isso porque a explicação ignora um princípio chamado Transitividade de Identidade:

Se

X = Y

Y = Z

Então

X = Z

Faz sentido, não? Mas não é o caso dessa solução. Afinal, ainda que A = Navio de Teseu e B = Navio de Teseu, A ≠ B.

A quinta solução dá um passo além, e usa um conceito chamado perdurantismo – também conhecido como “teoria das partes temporais” ou “teoria quadridimensional”.

Filósofos perdurantistas acreditam que os objetos (e todas as coisas do mundo) não possuem apenas as clássicas três dimensões espaciais, mas também uma quarta: a dimensão temporal.

É uma maneira diferente de enxergar as coisas: em qualquer momento do tempo, você não é inteiramente você, mas sim uma parte de você. Os indivíduos e objetos, então, são a junção dos seus fragmentos temporais.

No caso de Teseu, nem o navio A nem o B são os barcos originais. Afinal, isso não levaria em conta a dimensão temporal do perdurantismo. O que há são duas embarcações: uma que saiu do barco original até o navio A, e outra que saiu do mesmo barco original até B. Os dois coexistem.

De acordo com Wang, a quinta solução não deixa de atender às premissas anteriores. Mas, em contrapartida, talvez seja a mais abstrata para nós – uma vez que apresenta uma nova maneira de pensar na passagem do tempo e na formação de identidade.

E agora, José?

No fim do diálogo em WandaVision, o Visão colorido e o Visão Branco chegam a uma conclusão elegante: “Nenhum é o verdadeiro navio. Ambos são o verdadeiro navio.” Analisando todas as possíveis soluções, não deixa de fazer sentido – e essa é a beleza dos paradoxos.

Mas há uma virada interessante ali. Ao devolver as memórias do Visão, que haviam sido bloqueadas pela S.W.O.R.D., o Visão Branco deixou de ser apenas um amontoado de partes remontadas do robô (navio B) e adquiriu as memórias – a essência – do herói (navio A). Nesse momento, ele tem uma epifania e diz “Eu sou o Visão” antes sair voando – até desaparecer.

Pense por um minuto no corpo humano. Células, sangue, água… Tudo isso é constantemente renovado sem que você perceba. O tecido epitelial que reveste o nosso intestino, por exemplo, é trocado a cada seis dias, em média. Mesmo assim, ainda somos os mesmos – graças às nossas histórias, memórias e cultura.

No fim das contas, somos todos pequenos navios de Teseu. E pode ter certeza: o Visão Branco ainda vai dar as caras no Universo Marvel.

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