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Por que somos loucos por novela?

Homem ou mulher, velho ou criança, o brasileiro gruda no sofá para acompanhar a vida de mentirinha na TV. Autores de telenovelas e intelectuais explicam por que a gente é assim

Por Leandro Narloch
Atualizado em 31 out 2016, 18h52 - Publicado em 31 out 2005, 22h00

Fazia 4 anos que muçulmanos da Bósnia-Herzegóvina lutavam pela independência contra os sérvios. Quase 200 mil pessoas haviam morrido e 2,5 milhões não tinham mais casa. Em uma semana de 1995, porém, a guerra da ex-Iugoslávia parou de repente. O motivo não era um acordo de paz mediado pela ONU nem a rendição de um dos lados. Mas a novela Escrava Isaura, aquela mesma, baseada no livro de Bernardo Guimarães e que tinha Lucélia Santos no papel da escrava branca. Apesar dos horrores do conflito, os dois lados pararam para ver os últimos capítulos da novela.

O mundo adora as novelas feitas no Brasil – e os brasileiros também. Quase metade do dinheiro que se ganha com televisão no Brasil vem delas. Desde 1963, quando estreou 2-5499 Ocupado, a primeira novela diária da TV, já foram produzidas mais de 400 tramas no país, cada uma com uma média de 200 capítulos. Em todo o planeta, 2 bilhões de pessoas têm costume de sentar para assistir a novelas. Por aqui, o país pára – na noite de 11 de março, por exemplo, 8 em cada 10 TVs ligadas no Brasil estavam sintonizadas no capítulo final de Senhora do Destino. Você pode dizer que não gosta de novelas, mas já parou para pensar por que tipos como Tonho da Lua, Tieta ou Juma Marruá fazem tanto sucesso aqui e em todo o planeta? Por que tantas histórias iguais são vistas por tanta gente há mais de 4 décadas? A seguir, leia os motivos listados por acadêmicos e autores de novelas para explicar o sucesso do gênero de literatura mais popular do Brasil.

Novela é tradição

Chega a noite, o pessoal se reúne para comer e depois acompanhar a história do garotão que ama a bela Helena. De tão apaixonado, ele acaba sequestrando a moça, provocando a ira do marido dela – sim, Helena é casada com um homem mau e poderoso. Baita novelão, não? Mas essa história é a mesma contada por Homero, na Grécia antiga, sobre Páris, Helena e Menelau, triângulo amoroso que resultou na Guerra de Tróia. Muitas das histórias a que assistimos hoje depois do jantar são as mesmas contadas nas liras gregas de 2 mil anos atrás ou ao redor de fogueiras na Idade Média pelas raras pessoas que sabiam ler. As telenovelas são herdeiras das novelas do rádio, que são herdeiras dos folhetins dos jornais, que vieram dos romances franceses do século 19, sucessores dos romances de cavalaria da Idade Média…

“Essas histórias fazem tanto sucesso porque, apesar de mudarem conforme o gênero, o autor e a época, tratam de questões milenares como encontro, separação, traição, segredo, mistério e disputas”, afirma Maria Lourdes Motter, professora do Núcleo de Pesquisa em Telenovela da USP. “A diferença é o enorme avanço tecnológico.”

Em muitos países, foram os best sellers que saciaram esse desejo por ficção. No Brasil, porém, a TV chegou antes de o povo se alfabetizar. Adicione a isso o fato de que fazemos parte de uma tradição católica, mais oral que letrada. Em vez de interpretar diretamente a Bíblia, como acontece entre os protestantes, preferimos a cultura oral: ouvir o padre falar. Em vez de escrever diários, preferimos contar o caso para a vizinha. Em vez de ler romances, assistimos a novelas.

Novelas são polêmicas

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Você deve se lembrar de Sassá Mutema, vivido por Lima Duarte em O Salvador da Pátria, de 1989. Depois de anos como bóia-fria, Sassá vira prefeito de Tangará, podendo revolucionar a cidade. Mas o autor, Lauro César Muniz, teve que desviar o rumo da história. “Houve uma interferência direta de Brasília na cúpula da Globo”, admitiu ele em 2002. “Era o primeiro ano de eleições diretas, Lula contra Collor, e acharam que o Sassá Mutema fazia apologia à esquerda. Assim, acabou vindo uma pressão na emissora para que a trama fosse mudada.” Sassá Mutema topou com uma máfia de “tóchico” e passou a novela lutando contra ela.

Em nenhum outro país haveria tanta preocupação com a influência que uma novela pode ter na política. Por aqui, a política faz parte das novelas e as novelas fazem parte da política. “Só no Brasil a ficção seriada é exibida diariamente no horário nobre com tanta força no espaço público”, diz Anamaria Fadul, pesquisadora da Universidade Metodista de São Paulo.

E não é só na política. As novelas também dão visibilidade a problemas sociais e mexem no vespeiro de tabus. Escalada, de 1975, fez estourar a polêmica do divórcio, que virou lei um ano depois. As palavras “ecologia” e “ecossistema” caíram na boca do povo com O Espigão, que tratou de problemas urbanos. “Ninguém aguenta ver um documentário sobre leucemia, mas esse assunto se torna atraente quando entra no enredo das novelas”, diz Maria Lourdes Motter.

Novelas são para todos

Em 1970, Irmãos Coragem, de Janete Clair, transformou em mito a história de que quem vê novela é dona-de-casa. Inspirada em filmes de bangue-bangue e livros como Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski, a novela contava a história de Duda Coragem, um jogador de futebol, e dos garimpeiros João e Jerônimo Coragem, que lutavam contra a opressão do Coronel Pedro Barros. Este faroeste cabloco que não poderia ser mais masculino foi a novela mais longa da Globo até hoje, com 328 capítulos. Em 22 de junho daquele ano, a novela teve mais audiência que o jogo de futebol do dia anterior – a vitória de 4 a 1 do Brasil sobre a Itália na final da Copa do Mundo.

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Desde então, novelas passaram a ser feitas para todos. Donas-de-casa e peões. Analfabetos e intelectuais. Adolescentes e octogenários. “A novela é feita para o público médio de 40 milhões de pessoas”, diz Aguinaldo Silva, autor de clássicos como Tieta. “O autor tem a obrigação de respeitar o público criando histórias que certamente serão aceitas por todos.”

Novelas são simples

Ou seja: se você quer escrever uma novela, não tente bolar metalinguagens, enredos circulares, longos flashbacks. Novelas fazem sucesso porque são simples, fáceis. E quem diz isso não são somente crítricos e acadêmicos ranzinzas. “A maior parte do público não tem bagagem cultural para um entretenimento mais consistente do que a telenovela, e uma boa parte que tem essa bagagem teve um dia cansativo, quer espairecer”, diz Gilberto Braga. “Não estou dizendo que uma telenovela precise ser idiota, mas não pode exigir reflexão demais.”

Ao longo de mais de 40 anos de novelas diárias, os autores aprenderam que inventar demais é problema. Tentaram fazer uma novela narrando a produção de outra novela, como Espelho Mágico, de 1977. Deu no que deu: depois da exibição dos capítulos, a Rede Globo recebia telefonemas de gente querendo entender o que havia acontecido em cada história. O mesmo aconteceu com O Casarão, que contava a mesma história em um desenvolvimento não linear, intercalando diferentes épocas e flashbacks.

Novelas tampouco podem ferir a moral e os costumes médios. Uma das maiores quedas de audiência da história do melodrama aconteceu com O Dono do Mundo, de 1991. O cirurgião Felipe Barreto (Antonio Fagundes) tinha apostado com um amigo que tiraria a virgindade de Márcia (Malu Mader), noiva de um dos seus funcionários e protagonista da trama. Quando Felipe Barreto conseguiu vencer a aposta, mais de 15 milhões de brasileiros desligaram a TV ou trocaram de canal quase ao mesmo tempo.

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Novelas são complexas

Se você não gosta de novelas, deve estar adorando este texto. Afinal, foi dito até agora que novelas fazem sucesso porque são histórias simplórias, feitas para quem não sabe ler e não entende enredos difíceis. Cuidado. Entre os mocinhos, vilãs e triângulos amorosos de toda novela, há espaço para histórias e personagens mais complexos que muitos livros com pose de literatura. “É preconceito colocar livros em um altar e novelas no inferno só porque um pertence à cultura letrada e outro à popular”, afirma Maria Lourdes. “Existem livros mal escritos, com narrativas bobas, e novelas muito bem feitas.”

As novelas brasileiras têm entre 50 e 100 personagens. Eles precisam ser de todas as faixas etárias, para atingir todo tipo de público. Devem estar interligados, aparecer pelo menos uma vez por capítulo, ter uma trajetória pessoal que siga o fluxo de toda a trama e que possibilite equilibrar situacões de tensão com descontração. “Algumas novelas têm tantos personagens e histórias paralelas que deixam de ser aceitas em países como os EUA”, diz Anamaria Fadul.

Novelas refletem o mundo

Também é mito dizer que não dá para ter personagens complexos na televisão. Ou melhor, essa afirmação valia até 1968. Nessa época, as novelas eram inspiradas em textos antigos e se passavam em desertos da Espanha ou no Marrocos. Tinham como personagens assassinos em série e cavaleiros parecidos com o Zorro, falando frases que só existiam nos livros. Mas no fim daquele ano houve uma revolução: a estréia da novela Beto Rockfeller.

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O herói dessa trama, em vez de um misterioso cavaleiro, era um vendedor de sapatos da rua Teodoro Sampaio, em São Paulo, que se fazia de grã-fino para entrar na alta sociedade da rua Augusta. “Nem mocinho e muito menos bandido”, afirma o jornalista Dirceu Alves Jr., autor do livro Telenovelas. Em vez das frases posudas, havia diálogos com gírias e frases populares. A novela não ficava só em estúdios, como antes, mas mostrava as ruas de São Paulo. Esse realismo fez de Beto Rockfeller um sucesso e virou padrão dali para a frente. As novelas começaram a mostrar favelas, incluíram os pobres nas tramas e muitas cenas externas. “Enquanto as novelas mexicanas centram-se no mundo dos ricos, as brasileiras se baseiam na classe média”, diz Mauro Porto, professor da Universidade de Tulane, nos EUA. “Esse realismo causa muito mais identidade com o espectador do que se ele estivesse vendo um filme de Hollywood”, afirma Maria Lourdes.

Além das características aí acima, há motivos para explicar o sucesso das novelas que têm pouco a ver com as tramas. “As novelas têm uma audiência garantida porque o brasileiro tem costume de ver TV à noite”, diz Maria Lourdes. Melhor ainda se a emissora chamar a atenção para a novela em seus outros programas. Também daria para falar sobre a força dos galãs das tramas. Ou das cenas de sexo… Mas é melhor parar por aqui. Já são mais de 20h30, a novela vai começar.

 

Em 10 passos, como fazer sua própria novela

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1. Faça amor

Regra número 1: o amor está acima de tudo. Crie o conflito amoroso dos protagonistas e desenhe a trajetória que eles irão traçar durante os cerca de 200 capítulos. “Trabalhe com histórias e situações que permitam desdobramentos”, diz o autor Aguinaldo Silva. Incesto, status diferentes, famílias inimigas, mortes misteriosas e desencontros são os empecilhos mais comuns. Eles nunca podem ser mais fortes que o amor. Exemplo: se a vontade de conhecer os EUA for maior que a de viver com seu amado, a personagem vai ser recusada pelo público, como aconteceu com Sol no início de América.

2. Mocinhos são do bem

O casal protagonista jamais pode ter objetivos egoístas, como fazer fortuna no exterior. Se quiser ganhar dinheiro, tem de ser para pagar o tratamento de câncer do pai ou para voltar à Itália e rever seu grande amor. Os dois precisam ter atitudes sempre morais e legais. A primeira mocinha de novela que não era virgem apareceu somente em 1998, com A Indomada.

3. Deixe sua marca

Novelas são pura indústria cultural, mas mesmo assim podem ter marcas autorais. Dias Gomes fez novelas clássicas com crítica social, como O Bem Amado. Manoel Carlos curte o cotidiano da classe média carioca. Glória Perez prefere tramas com muitas histórias paralelas e fortes no melodrama. Qual será o seu estilo?

4. Teça o pano de fundo

Escolha um contexto. Os personagens vivem no Pantanal, ao redor de uma redação de revista de celebridades ou são pescadores no Ceará? Faça-os desempenhar papéis importantes dessa história maior, para dar verossimilhança à trama.

5. Humor e imaginação

Para aliviar a tensão dos momentos tristes ou polêmicos, crie um núcleo de humor. Pode ser um bar de periferia, como em O Clone e América. Ou soluções delirantes, como as flores de Jorge Tadeu – que encantavam as mulheres em Pedra sobre Pedra.

6. Lance modas

É legal captar o ambiente que está quente na sociedade: você pode fazer uma tendência virar moda arrasadora, como aconteceu com o mundo das discotecas na novela Dancin’Days, de 1978. Começar com um fundo histórico, como a luta contra a ditadura militar, dá uma aparência de que sua novela é importante, que serve para alguma coisa.

7. Pense em todos

Qualquer que seja o contexto de sua novela, lembre-se de que você precisa conquistar todo tipo de público. Se a novela acontece no campo, crie um ou outro núcleo urbano. A dica vale também para os personagens. Eles devem ser de todas as idades e participar de situações comuns a cada faixa etária. As falas devem ser as usadas no dia-a-dia, com as gírias de rua e expressões de cada época, de cada ambiente.

8. Crie polêmica

Lembre-se de que, no Brasil, novelas fazem parte do espaço público. Fique à vontade para inserir problemas sociais, tabus e o merchandising social, como incentivar a doação de órgãos. Mas preocupe-se em amarrá-los bem ao melodrama. Se você quiser discutir o Movimento dos Sem-Terra, coloque-o entre as tramas de amor, como aconteceu em O Rei do Gado entre a sem-terra Luana (Patrícia Pillar) e o fazendeiro Bruno Mezenga (Antônio Fagundes).

9. Mantenha a audiência

“O autor é o deus de sua novela”, costuma dizer Manoel Carlos. De acordo com a resposta da audiência, você pode matar personagens, mudar sua personalidade, roupas e até o jeito de falar. Prolongue as tramas e a aparição daqueles que estão fazendo sucesso.

10. E se der errado?

“Acelere a narrativa, fazendo umas duas semanas de acontecimentos muito fortes”, diz Gilberto Braga. Se a novela for um desastre lastimável, o jeito é arranjar uma tragédia para matar metade da turma e começar do zero. Em Torre de Babel, de 1995, a saída foi explodir um shopping com todos os personagens recusados pelo público.

 

Para saber mais

Telenovelas – Dirceu Alves Jr., Coleção Para Saber Mais da SUPER, 2004

Telenovela – História e Produção, Renato Ortiz, Silvia Helena Simões Borelli e José Mário Ortiz Ramos. Brasiliense, 1989

www.teledramaturgia.com.br, Site com fotos e informações sobre novelas

 

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