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Raimundos: A corrida do ouro

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h50 - Publicado em 31 out 2004, 22h00

Texto Ricardo Schott

Se os Raimundos, aqueles quatro bocas-sujas fazendo hardcore misturado com forró, conseguiram… estava lançada a sorte à nova geração do rock nacional. Uma guitarra na mão e uma zabumba no arranjo eram o passaporte para o estrelato. A imprensa tentou cunhar um termo, MPopB, para aglomerar desde bandas de “saravá metal” até rockabilly na velocidade da luz, numa das fases mais tresloucadamente criativas do pop local

“A cada 15 dias chegavam relatórios de vendas a minha mesa. No começo, a vendagem estava em 2 mil, depois em 15 mil, 60 mil…

Até que, em janeiro de 1995, o presidente da Warner me cumprimentou: ‘Parabéns, vo-cês estão com um disco de ouro!’.” A frase de Brian Butler, então presidente do selo Banguela, distribuído pela multinacional, mostra um pouco da surpresa que se abateu sobre o selo e os próprios autores do tal disco, os Raimundos. “Não havia espaço para uma banda que tocasse punk rock e fizesse música com palavrão. Tinha tudo para dar errado”, lembra Digão, o guitarrista. O disco de estréia, sem nome, lançado em 1994, ajudou a puxar toda uma geração que já vinha se desenhando desde o começo da década, mas que, finalmente, seria reconhecida.

Retrocedendo a fita

Após diversas tentativas frustradas em sua terra natal, Brasília, desde o final dos anos 80, os Raimundos retomaram a carreira no fim de 1992, com a formação que gravaria o disco dali a dois anos. Começou a surgir um burburinho em torno da banda, especialmente quando a demo do quarteto passou a circular. A tal fita chegou às mãos de Carlos Eduardo Miranda, então repórter da revista Bizz, que abraçou a causa da banda.

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“O Miranda já havia me falado deles quando recebi uma fita muito tosca”, relembra a produtora Elza Cohen, que criou no Rio de Janeiro o festival Superdemo, responsável por catapultar vários nomes dos anos 90. “A minha sensação foi de ‘não acredito que estou ouvindo isso!’. Acabei agendando o primeiro show deles no Circo Voador.” No entanto, a grande imprensa só foi notar os Raimundos quando eles se apresentaram no festival Junta Tribo, realizado na universidade paulista Unicamp.

No que dependesse da vontade das majors, os Raimundos poderiam até ter gravado antes. “Queriam mudar o som, tirar os palavrões, dar aula de dicção para o Rodolfo, mas a gente preferiu esperar”, afirma Digão. No final de 1993, Miranda resolveu abandonar o jornalismo e convenceu os Titãs a criar o Banguela Records. Os Raimundos foram os primeiros contratados.

As 100 mil cópias de Raimundos foram vendidas graças a um hit em especial. “A gravadora lançou ‘Nêga Jurema’ e ‘Puteiro em João Pessoa’ e achou que fôssemos vender uns 30 mil discos”, lembra Digão. “Aí começou a tocar ‘Selim’ e o disco pulou para 100 mil.” A tal música era gozação pura (“Eu queria ser/ o banquinho da bicicleta…”) e, curiosamente, quase foi rejeitada por seu próprio cantor, Rodolfo: “Ele achou muito brega. Gravou, mas morrendo de vergonha”, diverte-se Digão.

Ao longo de 1995, até as faixas mais pesadas do álbum, como “Rapante” e “Be-a-bá”, ocuparam a programação das rádios roqueiras. A imagem de banda pesada, gozadora e, para muita gente, pornográfica, se sedimentou – e os Raimundos viraram febre entre adolescentes.

Contexto

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A banda de forró-core fazia parte de uma geração que propunha mudanças para o rock nacional contemporâneas à varredura promovida no exterior pelo grunge e pela música alternativa. “Chico Science & Nação Zumbi, Raimundos e Planet Hemp vieram com esse novo discurso, uma nova identidade, viam que já estava rolando repetição demais de coisas dos anos 80”, acredita Elza Cohen. “Eram bandas que adquiriram sotaque brasileiro e, ao mesmo tempo, vinham com muita informação e interação, sem aquela coisa do mito do ‘artista’.”

Digão crê que a diferença esteja nas influências (“os Raimundos eram ligados ao rock dos EUA, enquanto nos anos 80 todo mundo era inglês”), mas prefere enxergar as semelhanças: “A intenção, de certa forma, era a mesma: compor rock em português e fazer a galera cantar”. Anna Butler, diretora de relações artísticas da MTV, também vê certa continuidade: “O resgate da brasilidade já havia nos anos 80. Os Paralamas eram superbrasileiros. Os Titãs fizeram música com Mauro & Quitéria (recifenses que aparecem no álbum Õ Blésq Blom)”, relembra.

Gabriel Thomaz, então líder do Little Quail & The Mad Birds (outro grupo brasiliense lançado pelo Banguela), nota que todo o romantismo proporcionado pelo tempo esconde trabalho pesado. “O mercado de rock estava totalmente estagnado. De 1988 a 1994, nada aconteceu, as gravadoras estavam fechadas, só tinha lambada e sertanejo”, conta ele, que atualmente lidera o Autoramas. “Era difícil e caro fazer um disco, então as bandas começaram a vender fitas demo. Nós mesmos gravávamos as fitas, produzíamos os shows, colávamos cartazes nas ruas.” O resultado de toda essa trabalheira foi que o Little Quail se tornou a primeira banda independente da época a estourar um hit nas rádios, “1,2,3,4”, no final de 1993.

Eram tempos de circuito “alternativo”. Cada região tinha suas casas noturnas, selos, fanzines, programas de rá-dio e produtoras de vídeo “alternativo”. Surgiu o termo “brodagem”, “para designar coisas feitas na amizade, na vontade de ver algo novo acontecendo”, como explica Gabriel. Festivais apareciam por todo o país, além de selos novos. “Havia muito companheirismo e espontaneidade. As pessoas se falavam, trocavam telefones – a internet ainda engatinhava”, lembra Elza Cohen.

A cara da década foi exibida na grande mídia por revistas (Bizz, General) e jornais (Rio Fanzine, em O Globo, Ondas Curtas, na Folha de S.Paulo, Zap!, no Estadão), mas principalmente pela MTV brasileira, surgida em maio de 1990. “A MTV botou o rock nacional de novo em voga”, acredita Anna Butler. “Criamos o selo Banda Sim, com grupos que não tocavam em lugar nenhum. Entre eles estavam Virna Lisi, Pato Fu, Raimundos, Planet Hemp, Chico Science, que também apareciam em matérias comportamentais. Isso mudou a cara do rock nacional, transformou a relação do público com o artista.”

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Com o fim da reserva de mercado e a facilidade de importação promovida pelo governo Collor, gravar com qualidade era mais fácil e barato. Quando as multinacionais descobriram a movimentação, tudo se encaixou. Entre os selos ligados às majors, estavam o Plug/BMG, ressuscitado sob direção do radialista Maurício Valladares, e o Tinitus/Polygram, do produtor Pena Schmidt. Enquanto o Plug lançou Pato Fu e Professor Antena, o Tinitus veio com Virna Lisi, Banda Bel e Yo-Ho-Delic. No Rio de Janeiro, um selo bastante badalado foi o Rock It!, dirigido por dois rockstars oitentistas, Dado Villa-Lobos (Legião Urbana) e André X (Plebe Rude). O Gangrena Gasosa foi um dos lançamentos mais controversos do selo. “Fomos o estopim de muita coisa que mudou na música na década de 90”, garante o baterista Cid sobre os discos Welcome to Terreiro (Rock It!, 1993) e Smells Like a Tenda Spírita (Tamborete, 2000). Mas a banda tinha um feitio tão iconoclasta que era fadada a implodir. Os músicos tocavam vestidos de entidades da umbanda, com oferendas à frente do palco (galinha, farofa, pipoca) que eram atiradas no público. Sua casa habitual era o Garage Art Cult, que aglutinava os roqueiros da cidade e servia de escoadouro para quem não tocava no Circo Voador – grupos como Poindexter, Piu Piu & Sua Banda e Soutien Xiita. O Planet Hemp surgiu lá – D2 chegou até a morar no Garage por uns tempos.

Outra iniciativa carioca, o festival Superdemo projetou nomes como Skank, Chico Science, O Rappa e acabou dando frutos nas grandes gravadoras. “Criei uma série na Sony, com o nome Superdemo”, lembra Elza Cohen. Seu grande sucesso foi Usuário, primeiro disco do Planet Hemp, mas também saíram Jorge Cabeleira e o Dia em Que Seremos Todos Inúteis, da banda recifense, e Bailão Classe A, do Funk Fuckers, já pela BMG/Plug, após o fim do contrato original.

Também revelado no Superdemo, o Pato Fu vinha de Belo Horizonte, assim como o Skank – mas, diferentemente de Samuel Rosa e cia., demoraria um pouco para chegar ao mainstream. Quando os raimundos lançavam seu primeiro álbum, os patos divulgavam Rotomusic de Liquidificapum, publicado pelo selo de heavy metal Cogumelo, o mesmo que lançara Sepultura. Na época em que o Pato Fu chegou à BMG, o Skank (que em 1992 bancara seu primeiro CD, independente) já alcançava seu primeiro milhão de discos vendidos com Calango, pela Sony. O sucesso escancarou as portas para o pop mineiro de bandas como Jota Quest, Tianastácia e Sideral. Até o Virna Lisi assinou com a MCA.

Depois do ouro

Com as 100 mil cópias vendidas de Raimundos, o mercado se abriu mais ainda e novas perspectivas se iniciaram. “Para nós, era certo que todas as bandas iriam estourar”, lembra Gabriel Thomaz. Não foi exatamente assim, mas o sucesso da banda de Digão fazia com que cada gravadora quisesse ter seus “Raimundos”, a exemplo do que já acontecia lá fora com o Nirvana. O rock nacional voltava a ser um bom investimento e selos independentes poderiam ter certa sobrevida, com discos vendidos até em lojas de departamentos.

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Após o primeiro disco, os Raimundos seriam “promovidos” para a WEA, num processo complicado, segundo Digão: “Gravamos com baixo orçamento e vendemos 100 mil cópias. Depois, o Banguela gastou mais do que podia com outras bandas e nos propuseram um segundo disco com orçamento menor. A gente queria um produtor gringo. Aí apareceu a WEA”. Lavô Tá Novo sairia em 1995 pela nova gravadora e consolidaria a imagem dos Raimundos como bons vendedores de discos.

Ainda que não tão evolto em mítica quanto os anos 80, o MPopB (mais um rótulo que não pegou) deixou grandes marcas no rock nacional, seja por fomentar a independência artística, seja por ir além dos moldes instaurados na década anterior. Mesmo que não houvesse a mesma atenção das gravadoras para os grupos que apareciam, o rock já seria, mais uma vez, uma opção.

1995

JANEIRO

• Os Rolling Stones se apresentam pela primeira vez no Brasil.

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FEVEREIRO

• Acontece a primeira edição do festival Rec Beat, alternativa ao Carnaval de Olinda.

MAIO

Epidemia do vírus Ebola ataca o Zaire.

AGOSTO

• É realizado o primeiro VMB Brasil com Marisa Monte e seu Segue o Seco, escolhido como o melhor videoclipe do ano.

OUTUBRO

• O pastor Sérgio Von Helder, da Igreja Universal, chuta uma imagem de Nossa Senhora em programa da TV Record.

NOVEMBRO

• A primeira rave do Brasil acontece no bandejão da química da USP.

• Toy Story é o primeiro desenho totalmente feito por computador – o Brasil pede o título para Cassiopéia, lançado em 1996, mas produzido anteriormente.

1996

FEVEREIRO

• Os Ramones anunciam o fim da banda, com apresentações no Brasil e na Argentina.

MARÇO

• Acidente aéreo mata o grupo Mamonas Assassinas, em São Paulo.

• O Quatrilho perde o Oscar de melhor filme estrangeiro.

• A União Européia suspende a importação da carne bovina da Inglaterra com medo da doença da vaca louca.

ABRIL

• Polícia mata 19 sem-terra em Eldorado dos Carajás (PA).

MAIO

• Tiririca vira sucesso nacional com “Florentina”.

JUNHO

• PC Farias e Suzana Marcolino são encontrados mortos.

JULHO

• Começam os Jogos Olímpicos de Atlanta.

OUTUBRO

• Morre Renato Russo, 36, vítima da aids.

NOVEMBRO

• Bill Clinton é reeleito presidente dos EUA.

O produtor: Miranda

Ele personificou a tal da “brodagem” nos anos 90. O gaúcho Carlos Eduardo Miranda conquistou a confiança de praticamente todas as bandas que transitaram pelo rock brasileiro dos anos 90. Famoso como o “descobridor” dos Raimundos, Miranda também agilizou a vida de muitos outros grupos, do conterrâneo Graforréia Xilarmônica ao recifense Mundo Livre S/A, passando por Little Quail & The Mad Birds, Skank, Maskavo Roots, Party Up, Língua Chula, Maria do Relento… Produtor, músico, jornalista, diretor de selo, agitador, anfitrião, crítico de vídeos pornô (ops, isso não conta – ou conta?), Miranda se multiplicava para atender à demanda roqueira da década. Seu modo de agir, caracterizado pela falta de formalidade e pelo “vestir a camisa”, ou seja, a própria “brodagem”, ajudava a vencer o nervosismo no estúdio ou a enfrentar o showbiz. Depois do Banguela, Miranda criou os selos Excelente Discos e Matraca. Confiando no mundo virtual, elaborou um projeto de site/portal para a gravadora Trama, o https://www.tramavirtual.com.br. Ele também se aventurou como músico nos anos 80, participando dos grupos Taranatiriça, A Vingança de Montezuma e Urubu Rei. Mas, como seria de se supor, seu grande papel no rock gaúcho foi motivar os amigos a criar bandas e uma cena local. Assim foi com Jimi Joe (Atahualpa y Us Panquis), Edu K (DeFalla), Carlos Gerbase (Os Replicantes) e tantos outros.

Tesouros perdidos do MPopB

Doiseu Mimdoisema

Nunca Mais Vai Passar o Que Eu Quero Ver (fita demo, 1994)

O garoto de 19 anos gravou uma fitinha no quarto com uma espécie de nerd-rock usando uma bateria eletrônica e verteu um hit subterrâneo na época, “Epilético”.

DeFalla

Kingzobullshitbackinfulleffect92 (Cogumelo, 1992)

Edu K confundia todo mundo (ele próprio, inclusive) com micropontos de thrash metal, funk, rap, samba, rock… Importante mesmo foi influenciar para o bem gente como Marcelo D2 e Chico Science.

Concreteness

Numberum (Tinitus, 1996)

Face eletrônica/psicótica de sua geração, adotou o português e gravou “Batmacumba”, mas o abrasileiramento não bastou para o sucesso.

Catapulta

Catapulta (Roadrunner, 1997)

Depois dos Raimundos, tudo parecia permitido. Tanto é que a Roadrunner bancou o Catapulta como a revelação que o produtor Miranda fazia parecer. O negócio aqui era metal e capoeira, no hit solitário “Puêra”.

Professor Antena

Professor Antena (BMG, 1994)

Com Rodrigo Leão (futuro letrista do Skank) e Eduardo Bid (depois produtor renomado) em suas fileiras, a banda foi a participação paulista no cenário, com som multifacetado que flertava com acid jazz, samba rock, rap e reggae.

Alvin L.

Alvin (BMG, 1997)

O ex-Rapazes de Vida Fácil e atual braço direito do Capital Inicial em aventura-solo com o pop urbano e adulto movido a violões e letras bacanas.

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