Mistérios solares
V
ira e mexe, o Sol fica cheio de bolinhas. São as manchas solares, pontinhos escuros na superfície, cada um com um diâmetro comparável ao da Terra.
Com base em séculos de registros sobre o vaivém das manchas, o astrônomo alemão Thomas Schwabe notou no século 19 que o aparecimento delas não era aleatório. Havia um padrão ali. Schwabe descobriu que o fenômeno era cíclico, e se repetia em média a cada 11 anos. Primeiro um punhado delas surgia nas proximidades dos polos. Com o tempo, iam migrando para a região do equador e se tornavam mais numerosas, então retraíam. A esse processo foi dado o nome de ciclo solar – agora, em 2020, estamos no final de um desses ciclos, num momento pouco manchado.
Mais tarde, em 1908, o astrônomo americano George Hale daria o salto seguinte na compreensão das manchas. Ele percebeu que existiam campos magnéticos em cada uma delas.
Para saber exatamente como o Sol funciona, é preciso entender as idas e vindas magnéticas que observamos na forma de manchas. São essas flutuações de magnetismo que regulam o tal ciclo solar. Cada ciclo começa e termina com um período de atividade branda, o chamado “mínimo solar”, em que quase não se veem manchas na superfície. Já no “máximo solar”, elas surgem aos borbotões, sinal de que o Sol está passando por uma turbulência magnética. As manchas solares são regiões em que o campo magnético está tão forte que barra parte do calor que vem de baixo.
São, portanto, um pouco menos quentes que as regiões ao redor – por isso escurecem. Esse campo magnético não surge do nada. A pressão dentro do Sol é tamanha que descola prótons de elétrons. Isso forma o “plasma” – o quarto estado da matéria. Um átomo de hidrogênio consiste num próton com um elétron solitário em sua órbita. No estado de plasma, o que temos é uma maçaroca de prótons e elétrons livres. A gravidade descomunal do Sol mexe e remexe esse plasma. Essas sacudidas criam campos magnéticos.
Mas tem um pulo do gato aí. O campo magnético que surge é tão poderoso que passa a interferir na dinâmica do plasma também. Nossas teorias, porém, ainda patinam na hora de decifrar esse looping de causa e efeito. A ciência ainda não sabe como o magnetismo solar produz o indo e vindo infinito dos ciclos de manchas.
Outra grande questão em aberto é a da coroa solar. O Sol tem 1 milhão de quilômetros de diâmetro. A coroa é uma aura fantasmagórica de partículas em volta dele, que se estende 8 milhões de quilômetros espaço adentro. A treta: ela é mais quente que a superfície. Lá embaixo, a temperatura gira em torno de 5,5 mil graus (e é de lá que sai a luz que vemos daqui). No interior da coroa, o calor passa fácil de 1 milhão de graus.
Continua após a publicidade
Trata-se de uma temperatura tão violenta que acaba acelerando os prótons e elétrons e núcleos atômicos a uma velocidade de 1,5 milhão de km/h. Isso faz com que a coroa emane um fluxo relativamente constante de partículas – o chamado vento solar.
Faz sentido que a coroa seja mais quente que a superfície? Não. Não faz. Os físicos, então, tentam entender qual é a mágica. E há uma explicação que desponta como a mais provável.
Para entendê-la, vamos dar uma geral na dinâmica solar. O vaivém magnético do Sol acaba criando erupções solares (em inglês, flares): elas ocorrem quando descargas de eletromagnetismo arremessam para longe um monte de plasma da superfície e da coroa. Nota: não dá para ver os flares a olho nu, já que a energia se dissipa na forma de raios ultravioleta.
Quando essas nuvens de plasma atingem a Terra, causam as chamadas “tempestades solares”: jatos de prótons, elétrons e núcleos atômicos que acabam interagindo com a Terra, como veremos mais adiante.
Continua após a publicidade
Além dos flares, existem os nanoflares, rajadas bem pequenas quando comparadas com as colossais dimensões solares, e que contêm um bilhão de vezes menos energia do que a liberada por erupções solares de grande porte. Mesmo assim, cada nanoflare libera 240 megatons, o equivalente a 16 mil bombas de Hiroshima – agora imagine milhões delas pipocando a cada segundo.
Eles estão por toda a superfície solar, e também não emitem luz visível. Se emitissem, veríamos o Sol como uma grande bola de tênis, com os nanoflares no lugar dos pelinhos da bola. A teoria, então, é que a energia produzida pelos nanoflares acabe subindo para a coroa, tornando-a (bem) mais quente que a superfície.
Continua após a publicidade
Neste momento, estamos num período de calmaria do ciclo solar, sem grandes ejeções de massa coronal. O último pico de atividade foi em 2014 – e o próximo deve acontecer por volta de 2025. Mesmo assim, os nanoflares se mantêm firmes e fortes.
Quem constatou isso foi a sonda solar Parker, a protagonista dessa nova era de estudos solares em que estamos agora. Lançada pela Nasa em agosto de 2018, ela audaciosamente irá onde espaçonave nenhuma jamais esteve: a 6,1 milhões de quilômetros da superfície solar, dentro da coroa (ainda que numa região menos tórrida).
Os objetivos da Parker são investigar o aquecimento coronal, a dinâmica dos campos magnéticos e descobrir como esses processos influenciam na criação do vento solar. Até o fim de sua missão, em 2025, ela terá realizado 24 voos rasantes (ou periélios), chegando mais perto a cada ano.
E ela não deve ficar sozinha por muito tempo. Uma nova sonda da Agência Espacial Europeia (ESA), a Solar Orbiter, está com lançamento programado para o fim deste ano. Ela vai estudar os polos do Sol de perto. “Esperamos resolver o problema da origem do campo magnético olhando para os polos, porque é ali que tudo começa”, explica Clementina Sasso, pesquisadora do Observatório de Capodimonte, em Nápoles, e membro da missão da ESA.
Continua após a publicidade
Há mais ferramentas para desvendar enigmas do Sol. O DKIST, maior telescópio solar do mundo, divulgou no início do ano as melhores imagens já feitas da superfície da estrela – veja na página 41. E a Nasa tem engatilhada outra missão: deixará quatro satélites na órbita da Terra dedicados a observar o comportamento da coroa. “É um momento lindo para a heliofísica, nunca houve tanto investimento”, diz Alessandra Pacini, física da Universidade do Vale do Paraíba e especialista no estudo do Sol.
Até o Brasil tem planos de embarcar nessa onda de exploração – pesquisadores do Inpe estão desenvolvendo um projeto de telescópio espacial solar, o Galileo Solar Space Telescope (GSST).
Tantas iniciativas mostram que teremos novamente um grande salto no entendimento sobre o Sol. E isso deve ser um passo fundamental para que a gente possa se proteger de sua ira estelar.