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A chegada dos primeiros imigrantes portugueses ao Brasil

Eles chegavam em navios abarrotados. E tinham um perigo constante a enfrentar: piratas holandeses, ingleses e franceses, que enxameavam nosso litoral.

Texto: Tiago Cordeiro | Edição de Arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria

E

ntrar em um navio do século 16 era mais arriscado do que viajar ao espaço no século 20. Mais arriscado e mais desagradável. Beliches de quatro camas eram amontoados no porão, onde não entrava ar, mas entrava água do mar. A ração consistia em biscoitos – apelido dado a pães assados duas vezes para ficar mais compactos e duráveis, ainda que ainda assim embolorassem depois de algum tempo.

Qualquer outra comida era negociada no mercado paralelo dos marinheiros. Beber água era arriscado, porque ela ficava muito tempo parada e podia estar contaminada. Penico era coisa de rico, que viajava com serviçais para recolhê-lo: a maior parte das pessoas se sentava nas beiradas da embarcação e lançava as necessidades fisiológicas diretamente no mar. Um lado bom: geralmente havia vinho e cerveja a bordo.

Viajavam mais de 500 pessoas, geralmente com não mais do que dez mulheres. Eram aventureiros portugueses que vinham tentar a sorte nas capitanias hereditárias, estabelecidas pela coroa entre 1534 e 1536 numa tentativa de organizar a colonização do Brasil.

Sempre havia padres entre esses imigrantes. Nos navios, eles organizavam missas, peças teatrais e apresentações musicais de histórias bíblicas. Nem sempre isso era o suficiente para levantar o moral: se a viagem se estendia por tempo demais e faltava comida, os marujos se batiam por um dos muitos ratos que se proliferavam no meio das sacas de comida e cujas pulgas ajudavam a difundir doenças como o tifo. Agora, se uma tempestade se aproximava e a embarcação se via ameaçada de tombar, aí o arrependimento aparecia e ao menos parte da tripulação corria na direção dos padres, pedir confissão e extrema-unção.

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Uma viagem partindo da Europa até Salvador costumava demorar em torno de um mês. Para descer ao Rio de Janeiro, precisava-se de mais uns dez dias. Havia um caminho padrão, que consistia em contornar a costa da África até a altura das ilhas de Cabo Verde, e dali seguir para Oeste, aproveitando os ventos e as correntes favoráveis – afinal, a tecnologia marítima tinha dado um salto nas décadas anteriores, mas as embarcações ainda eram a vela.

Naus e caravelas

As correntes marítimas, aliás, eram tão importantes que influenciariam, por exemplo, o surgimento de um Estado separado para a região do Maranhão e do Pará: era mais fácil ir de navio de Belém até o Porto, a 6.600 quilômetros de distância, do que partir dessas duas cidades e chegar a Salvador margeando a costa, percorrendo 1.550 quilômetros muito mais tumultuados.

Acontecia, no meio da travessia do Atlântico, de parar de ventar, e então a trajetória ficava muito mais difícil: as embarcações (geralmente eram pelo menos três que viajavam juntas) ficavam à deriva, rezando para que a natureza voltasse a fazer sua parte.

A chegada à costa tampouco era simples. A navegação não era precisa o suficiente, e acontecia, com frequência, de as embarcações serem lançadas para vários quilômetros longe dos portos. Podia ser o suficiente para cair nas mãos de indígenas hostis.

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Esse foi o destino de muitos viajantes: depois de várias semanas de aperto, doenças e fome, eles se viam cercados por homens nus, gritando e lançando flechas com as pontas envenenadas. (Ou, então, por nativos que os recebiam com curiosidade e ofereciam uma taba e suas filhas – do ponto de vista dos viajantes, não havia maneira de prever o humor dos povos que viviam em cada ponto da costa.) É possível que, em vários desses casos, fosse preferível morrer a ser preso e passar por todo o ritual que terminava em canibalismo.

Eterno náufrago

Era fácil afundar, e não só na costa brasileira. O famoso Antônio Vieira, autor de poemas e cartas que todo mundo já teve que ler na escola, que o diga. O padre jesuíta, nascido em Lisboa e educado em Salvador, onde chegou com 10 anos de idade, teve problemas nada menos do que cinco vezes. Logo na primeira viagem marítima de sua vida adulta, da Bahia para Portugal, em 1641, a embarcação começou a ficar cheia de água. Foi preciso jogar fora todas as peças de artilharia, e as velas e os mastros foram muito danificados. Acabou por aportar em Peniche, 100 quilômetros ao norte do destino original, Lisboa.

Em 1647, demorou 59 dias para sair de Paço de Arcos, no estuário do Rio Tejo, e chegar a Londres – desta vez por culpa da mais absoluta falta de ventos para partir. O jesuíta retornou ao Brasil em 1653. Em 1654, partiu de volta, de São Luís do Maranhão a Lisboa. Depois de dois meses de um trajeto terrível, a embarcação ficou à deriva durante uma tempestade perto das Ilhas das Flores, nos Açores. O jesuíta reuniu os fiéis para pedir uma promessa: os sobreviventes rezariam o terço todos os dias, pelo resto de suas vidas.

Naufrago português

Sem mastro, perdido em alto-mar, dobrado pelos ventos, cheio de água, o navio foi abordado por um grupo de piratas holandeses. Eles levaram tudo, incluindo as roupas da tripulação. Abandonaram todos numa ilha chamada Graciosa. Levaria meses para o religioso conseguir chegar à capital portuguesa, a bordo de um navio britânico que apareceu na região porque também tinha se perdido durante uma chuva excepcionalmente forte. Mas a curta viagem da costa africana até a Península Ibérica foi marcada, mais uma vez, pelas tempestades e o risco de afundar. E ainda não foi tudo.

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Em 1669, uma simples viagem de Lisboa a Roma, pelo Mediterrâneo, demorou 98 dias e contou com duas paradas forçadas. Como de costume, o padre reuniu os viajantes em rezas só interrompidas quando as tempestades e ondas altas passaram. Podia ser muito difícil navegar naquela época, mas Antônio Vieira e o mar não se entendiam.

Piratas em Salvador

Naufrágios e ataques dos locais eram um risco altíssimo, mas amplamente aceito. Só que havia também outro problema constante: piratas. Quando se fala em piratas, é preciso lembrar que, nos séculos 16 e 17, os países europeus estavam em formação e as noções de nacionalidade ainda eram difusas.

Italianos, como Cristovão Colombo, ou portugueses, como Juan Díaz de Solís, podiam atuar em nome da coroa espanhola. Espanhóis podiam se ver defendendo o rei da França, assim como era possível que marujos ingleses atuassem como funcionários dos holandeses.

Nessa mistura de povos e interesses, navios podiam ser atacados por embarcações de mesma nacionalidade. Lembra do índio guarani Essomericq, aquele que experimentou uma vida longa e próspera na França? Pois foi a pirataria que mudou seu destino. Ele subia pelo litoral catarinense junto com o capitão francês Binot Paulmier quando a embarcação ficou parada por algumas horas, em algum ponto da divisa entre Rio de Janeiro e Espírito Santo.

Alguns marinheiros desceram para explorar o local e acabaram raptados por uma turma de índios goitacás. Nunca mais foram vistos. Dali o restante do grupo seguiu para Salvador, onde reforçou a carga de pau-brasil e animais locais, principalmente papagaios – isso em 1504, num momento em que, oficialmente, a região já pertencia a Portugal.

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O restante da travessia foi tranquilo, até perto do fim. Ao se aproximar do Canal da Mancha, já na Europa, Paulmier foi atacado por dois navios piratas, primeiro um inglês, comandado por Edward Blunth, e depois um francês, sob as ordens de Mouris Fortin. Para salvar parte da carga e das pessoas, Paulmier arremessou sua embarcação contra os recifes.

Não deu muito certo. Dos cerca de 60 tripulantes, metade morreu afogada. Com toda a madeira e os papagaios perdidos no mar, o capitão nunca mais retornou à América do Sul. E foi por isso que o índio guarani, que havia sobrevivido, ainda que muito doente, se tornou seu afilhado e protegido – a promessa inicial, nunca cumprida, era devolver o jovem para a família do cacique dentro de um prazo de não mais do que 20 meses.

Morte no mar.

Do ponto de vista dos reis e nobres portugueses e espanhóis, Paulmier era um invasor. Os irmãos Verrazzano também. Mas, no fim da década de 1520, a ameaça aos territórios da América tinha outro nome e sobrenome: Jean Ango. O banqueiro francês sustentou as ações dos Verrazzano no Brasil, e também a instalação de colônias francesas no Canadá. Parte de seus negócios consistia na manutenção de navios piratas, que tinham como alvo preferencial as embarcações espanholas e portuguesas.

Em reação, Portugal enviou, em 1527, um nobre com experiência prévia em viagens de proteção da costa brasileira. Cristovão Jacques já havia feito esse trabalho outras duas vezes, em 1516 e em 1521. Em junho de 1527, Jacques venceu um grupo de piratas franceses que, em Salvador, se carregavam com pau-brasil, usando inclusive uma embarcação que havia sido roubada da tripulação do próprio comandante português.

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Parte dos franceses morreu ao escapar dos portugueses e cair nas mãos de indígenas. Apesar da ação firme de Portugal, os franceses continuariam frequentando a costa brasileira por muitas décadas, até, em diferentes momentos, tomar temporariamente as regiões do Rio de Janeiro e do Maranhão. Jean Ango, porém, interromperia suas ações bem antes, em 1531, quando o rei português comprou sua “carta de corso”, a autorização por escrito que ele havia recebido do rei francês anos antes.

Piratas em Santos

Muitas vezes, como no caso dos homens enviados por Jean Ango, expedições de saque eram bancadas por reinos que não consideravam justa a divisão das Américas apenas entre Portugal e Espanha – do ponto de vista de quem atacava, portanto, não se tratava apenas de pilhar, mas de participar, à força, das riquezas disponíveis no continente. A rainha Elizabeth 1ª, da Inglaterra, foi uma das mais aguerridas críticas da divisão arbitrária do Novo Mundo, e mostraria seu descontentamento ao tomar para si a vila de Santos, em 1591.

Praticamente toda a cidade estava na igreja, assistindo à missa, realizada nos moldes que duraram quase 14 séculos, até a década de 1960: o padre passava quase todo o tempo voltado para a direção Leste, onde o sol nasce. O público também, de forma que todos louvavam juntos, olhando para o mesmo ponto. Os rituais eram proclamados em latim e as músicas, cantos gregorianos sóbrios. Com exceção de alguns poucos anglicanos que viviam na região, todas as pessoas precisavam comparecer. Ainda mais naquele dia, uma manhã de Natal.

A esquadra invasora era comandada por um nobre de 31 anos chamado Thomas Cavendish, que tinha participado de uma tentativa de colonização da região da Virginia, na América do Norte, e de uma muitíssimo bem-sucedida viagem de volta ao mundo, realizada de 1586 a 1588 e com uma passagem rápida e amigável por Ilhabela. Para essa nova expedição, ele levou consigo 330 homens, a maioria nobres e com mais experiência militar em terra do que no mar.

O objetivo era seguir de Santos até o Estreito de Magalhães, e dali para a Ásia, mais especificamente as Filipinas e a China. Depois de uma breve parada na Ilha Grande, no Rio de Janeiro, onde comeram todos os porcos e galinhas que roubaram dos europeus que viviam na região, os britânicos permaneceram dois meses por lá, até fevereiro de 1592. Depois puseram fogo em todas as cabanas.

Em Santos, ele obviamente não fazia ideia de que nunca conseguiria repetir o feito de poucos anos antes. É muito possível que sua parada na região tivesse o objetivo de estabelecer as fundações de um posto inglês no Litoral Sul, mais ou menos como fariam, em diferentes momentos, os holandeses em Pernambuco, ou os franceses no Maranhão. Cavendish carregou seus três navios e, finalmente, foi embora. Não queimou Santos, como havia feito na parada em Ilha Grande, mas parou em São Vicente e deixou a vila inteira no chão.

A chance de vingança dos portugueses chegou rápido, e foi bem aproveitada. O grupo de Cavendish pretendia atravessar o Estreito de Magalhães. Fracassou e o grupo acabou se dispersando. Perdidos, os ingleses tentaram retornar a Santos em embarcações destruídas e botes para abordagens rápidas. Estavam famintos, comeram todas as mandiocas, os abacaxis e as galinhas que conseguiram. Mas, grupo após grupo, em diferentes pontos do litoral, foram massacrados pelos portugueses.

Um último grupo, liderado por Cavendish, ainda subiu até Vitória, no Espírito Santo, apenas para atolar as embarcações. Boa parte desses últimos viajantes sofreu uma morte violenta pelas mãos dos portugueses. O comandante ainda sobreviveu para tentar uma volta para casa. Morreu, ou se matou, possivelmente no litoral de Pernambuco.

Piratas no Recife

Ainda mais espetacular, e muito mais lucrativa, foi a ação de outro britânico, James Lancaster, apenas quatro anos depois, em 1595. O alvo, Recife, ainda era apenas uma cidade portuária de pequeno porte, mas tinha uma vizinha das mais expressivas: naquele fim de século 16, Olinda era uma vila fortificada e bastante enriquecida pela plantação de cana-de-açúcar.

Lancaster tinha uma motivação pessoal para agir contra terras espanholas: ele havia passado parte da vida em terras lusitanas e perdera tudo depois que Portugal foi anexado e o rei espanhol Filipe 2º mandou confiscar todos os bens de todos os britânicos moradores da Península Ibérica. Foi quando Lancaster resolveu se tornar corsário. No caminho para Pernambuco, descobriu que um navio vindo das Índias havia naufragado na costa de Pernambuco e toda sua carga de especiarias, transferida para galpões do porto do Recife.

Ao chegar à cidade, Lancaster reuniu 80 homens, colocou-os dentro de um barco pequeno e arremessou a embarcação contra a praia, de forma que ela afundasse – mas que os soldados pudessem descer com agilidade. O grupo tomou conta do porto, que era protegido por pelo menos 600 pessoas. Boa parte dos militares do lado português fugiu.

Pirataria no Novo Mundo.

O comandante agiu rapidamente e de forma organizada: diferentemente do que havia acontecido em Santos, os homens, militares de carreira, não perderam tempo brigando por galinhas. O porto foi cercado por uma paliçada e os britânicos se mobilizaram para transportar as cargas valiosas para seus navios. Logo um grupo de holandeses, que negociava pacificamente em Pernambuco, se juntou aos ingleses. Duas embarcações francesas, que não sabiam do ataque e apareceram para comprar pau-brasil e açúcar, também acabaram sendo recebidas com cordialidade porque o comandante, Jean Noyer, era amigo de Lancaster.

A disciplina garantiu o sucesso. Apesar de os portugueses terem lançado navios em chamas contra as embarcações inglesas, e se organizado para perseguir os piratas enquanto eles fugiam, muito pouco se perdeu. Os ingleses voltaram felizes para casa, onde Lancaster se tornaria um dos fundadores de uma rota comercial estável entre Inglaterra e Índia.

Quanto ao Recife e Olinda, descobriram que precisavam melhorar suas fortificações. Mas não seria suficiente: a região acabaria sob controle holandês, poucas décadas depois.

Busca frustrada

Sebastião Caboto fracassou na procura pela terra dos incas.

Em muitos casos, os naufrágios proporcionavam importantes descobertas. Foi assim com o explorador italiano Sebastião Caboto, que em 1526 se viu perdido na região que ganhou o muito adequado nome de Ponta dos Naufragados, em Santa Catarina.
Junto com mais de 200 homens, ele fez amizade com os índios carijós que viviam naquela área e, na sequência, mandou construir uma nova embarcação enquanto se alimentava de carne de veado, ostras e mel.

Subindo pelo Rio Paraná, Caboto instalou a primeira vila de europeus no território da atual Argentina – depois, sofreu uma emboscada, perdeu 18 homens e retornou para a costa. Ele ainda se manteria na região sul do continente até 1529, quando passou por São Vicente, reabasteceu, comprou 50 escravos índios e finalmente retornou a Madri.

Barril de vinho.

Estava frustrado, porque não havia conseguido viajar pelo Rio da Prata. Acreditava-se que, subindo por ele, seria possível chegar a um reino mitológico, cheio de ouro e com animais esquisitos que forneciam lã. As lendas eram baseadas em fatos: os animais eram as lhamas e o reino coberto de riquezas inestimáveis era o Império Inca.

Outros navegadores tentaram, e se viram cercados por indígenas hostis. Muitos morreram, ou suas expedições retornariam a Santa Catarina em frangalhos. Quem alcançaria os incas seria Francisco Pizarro, seguindo uma rota muito diferente: ele viajou por mar, partindo da região onde hoje fica o Panamá. Assim, sem saber, evitou o encontro com as tribos hostis que viviam nas terras ao Sul.

Quanto ao aventureiro Sebastião Caboto, suas jornadas o levaram para diferentes pontos do planeta. Terminou a vida recebendo pensão do governo da Espanha enquanto morava na Inglaterra, onde ajudou a organizar uma expedição à China.

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