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Champanhe: a saga da bebida que pisca

A origem acidental. As aventuras de Dom Pérignon e da Viúva Clicquot. Os segredos da produção. E um brinde ao vinho com gosto de estrelas.

Texto Rafael Battaglia  Ilustração Fido Nesti  Design Juliana Alencar  Edição Alexandre Versignassi

P

or quase duas décadas, meu avô, o seu José, produziu o próprio vinho. Não para vender, mas por hobby, para presentear os amigos. Tudo era feito na garagem de sua casa em Guarulhos (SP). Não tinha muito segredo: todo ano, caixas de uva chegavam de caminhão e rumavam para uma prensa de madeira. O líquido fermentava por algumas semanas em barris, e voilà. 

Certa vez, ele decidiu fazer espumante. Deu ruim. Claro: você precisa submeter a bebida a uma segunda fermentação e evitar que o gás carbônico que a torna borbulhante escape. Não é fácil.  

Tanto que os vinhos com bolhas são algo recente. Pois é. Em 8 mil anos de história do vinho, o champanhe surgiu há pouco mais de três séculos. Na França, claro.  Se a linha do tempo da vinicultura fosse tão extensa quanto a da evolução humana, os vinhos seriam o equivalente ao nosso ancestral comum com os chimpanzés, de 8 milhões de anos atrás; e os espumantes, ao Homo sapiens, de 300 mil. Acontece que, por muito tempo, as bolhas no vinho eram sinal de que algo tinha desandado no processo de fabricação.

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Vinho estragado

A região de Champagne fica no nordeste da França, 160 quilômetros ao leste de Paris. Tem pouco mais de 25 mil km2 (menor que Alagoas) e uma temperatura média de 10 °C.

Os primeiros a plantar videiras e a fazer vinho por lá foram os romanos, a partir de 50 a.C. “Champagne”, aliás, vem do latim campania – significa “terra de planícies”. Campos. 

E naqueles campos, em se plantando uva, sempre deu vinho. Mas era em um esquema mais parecido com o do seu José: era tudo para consumo próprio mesmo. A região, na verdade, era mais conhecida pela produção de lã. 

Produção que dava um bom dinheiro, a ponto de, por volta do ano 1000, Reims, capital de Champagne, ter se tornado um grande centro. Tanto que, em 1088, um filho de viticultor de lá virou papa: Urbano 2º.

Esse foi o sumo pontífice que lançou as Cruzadas. E as guerras contra o islã deram um boost na vinicultura local, por vias tortas. Muitos vinicultores morreram nas batalhas. Suas terras viravam propriedade da Igreja Católica. E foi nos monastérios, justamente, que o vinho daqueles campos se aperfeiçoou. 

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Os monges eram produtores dedicados (e ainda são). Não por alcoolismo, mas porque era do comércio de vinho que essas comunidades religiosas tiravam seu sustento. Nisso, surgia uma nova cultura na região de Champagne: a produção de vinhos foi aumentando gradativamente. Até que os vinhos de lá passaram a concorrer com os da Borgonha, a região mais vinífera da França – não na qualidade, que não era lá essas coisas, mas no preço. 

Mas os vinhos de Champagne ainda não borbulhavam.  

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A origem das bolhas 

Fermentação é um processo no qual seres microscópicos (as leveduras) comem o açúcar do suco de uva e defecam dois subprodutos: álcool e gás carbônico. Na produção normal, o álcool fica, e o gás escapa pelo ar. Alguns vinhos, no entanto, repetem o processo espontaneamente depois de engarrafados – meses depois. E você tem um vinho borbulhante produzido por acidente.   

Não dá para dizer com exatidão quando o primeiro espumante surgiu, uma vez que a efervescência incidental é algo comum – há registros do fenômeno desde a Grécia Antiga. Mas uma coisa é certa: as bolhas eram vistas como algo a ser evitado. Afinal, a pressão do gás às vezes explodia as garrafas. Mau negócio. 

O espumante, então, pode ter sido descoberto em vários lugares, simultaneamente. Na França, o primeiro registro da bebida data de 1531, em uma abadia de monges beneditinos próxima a Limoux, no sul da França. Mais tarde, em 1600, observou-se que um tipo de vinho francês, o Gris, teimava em sofrer uma segunda fermentação acidental quando era embarcado para a Inglaterra. Ao chegar lá, a bebida apresentava bolhas – e foi um sucesso.

Os ingleses curtiram tanto a novidade que passaram a tentar reproduzi-la em seus vinhos adicionando mais açúcar ao processo – para forçar a segunda fermentação de forma controlada. O primeiro a descrever esse método por lá foi o cientista inglês Christopher Merrett, em 1662. Estava criada a cidra moderna, borbulhante – que os ingleses seguem bebendo ferozmente. 

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Dom Pérignon 

De volta a Champagne, contudo, as bolhas ainda eram vistas como um problema. A região possui um forte inverno, e o frio interrompe o processo das leveduras. A efervescência era frequente por lá, já que a bebida estocada nas garrafas voltava a fermentar na primavera. Algumas pessoas que trabalhavam em adegas, inclusive, usavam máscaras de ferro, para o caso de as garrafas começarem a explodir. 

Em 1668, o monge beneditino Pierre Pérignon, filho de um oficial da corte, assumiu o comando da abadia de Hautvillers (lê-se “ôvilê”), ao sul de Reims. Ele tinha duas missões: restaurar as vinhas da região e controlar as bolhas. De cara, acabou com uma máxima que reinava até então: quanto mais uvas, mais vinho – e mais dinheiro. Dom Pérignon passou um pente fino nas parreiras de Hautvillers. A partir dali, só os melhores frutos para a prensa. O francês estipulou regras para uma boa colheita e cuidou melhor da terra em que as uvas cresciam.

Pérignon também refinou o método da assemblage, que consiste em misturar uvas de plantações, safras ou variedades diferentes para obter a bebida ideal. Dotado de paladar e olfato aguçados, ele harmonizava e equilibrava vinhos com perfeição. “Ele foi o primeiro enólogo de Champagne”, diz François Hautekeur, enólogo da Moët Hennessy, produtora que cuida hoje da abadia, e é a responsável pelo rótulo que leva o nome do monge.

Não demorou para que os vinhos de lá virassem sensação – o rei Luís 14, por exemplo, só tomava vinhos de Champagne. Era o garoto-propaganda perfeito, já que a corte francesa e as dos outros países o imitavam. A região se desenvolveu, e a disputa com Borgonha acirrou. Não raro, produtores de ambos os lugares pagavam para que estudantes de medicina escrevessem que o seu vinho era o mais benéfico. Pérignon, por outro lado, provavelmente não se incomodou com isso. Além de salvar as finanças da abadia, ele confiava no próprio taco. Em uma das poucas cartas preservadas dele, o monge escreveu a um prefeito de Épernay que estava lhe enviando “26 garrafas do melhor vinho do mundo”.

Para coroar sua obra, Pérignon desenvolveu em 1697 o método champenoise de produção de espumantes. Uma lenda diz que o monge provou certa vez um vinho duplamente fermentado, por acidente, e disse: “Estou bebendo estrelas”. É mentira. Pérignon simplesmente criou algo para domar a segunda fermentação. 

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Na essência, era o mesmo processo que Merrett tinha inventad 30 anos antes – baseado na adição de açúcar à bebida. Mas, lembre-se, Pérignon era um gênio. Não apenas (re)criou a segunda fermentação controlada, mas também uma receita completa de como dar ao bebedor a sensação de beber estrelas. Estava criado o champanhe as we know it.

Dom Pérignon não inventou o champanhe, mas desenvolveu o seu método de produção.

Outra invenção de Pérignon, aliás, ajudaria a bebida a se tornar a favorita das festas de fim de ano: o arame que segura a rolha (que, junto da garrafa mais grossa, evita que a fermentação número dois cause uma explosão). Soltá-lo para fazer a rolha voar e o líquido jorrar é um espetáculo tão marcante que virou sinônimo máximo de celebração. Mas a novidade não pegou da noite para o dia.

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(Ilustração: Fido Nesti | Design: Juliana Alencar/Superinteressante)
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Veuve Clicquot

A própria abadia de Pérignon não se tornou de cara uma grande produtora de sua criação – seguia com os vinhos normais. Os primeiros produtores exclusivos de espumantes em Champagne foram as casas Ruinart, de 1729, e Moët, de 1743. Àquela altura, só 2% dos vinhos da região tinham bolhas – mas isso logo aumentaria. O rei seguinte a Luís 14, o 15, virou um entusiasta da bebida borbulhante, e fazia questão de bebê-la no Palácio de Versalhes. Este, aliás, é o principal motivo para a produção de espumante ter deslanchado.

No fim do século 18, Barbe-Nicole Ponsardin, herdeira de um empresário do setor têxtil, casou-se com um jovem chamado François Clicquot. O pai de François, Phillipe, era outro empresário do ramo dos tecidos e, em paralelo, tocava um pequeno negócio de vinhos. Na época, metade da produção em Champagne já era de espumantes. 

François achava que a família deveria se concentrar exclusivamente na bebida. Ele chegou a expandir a produção, mas não viveu o suficiente: morreu em 1805, seis anos após o casamento. Triste, Phillipe decidiu fechar a vinícola, mas Barbe-Nicole o impediu. Com o dinheiro da herança e um empréstimo do sogro, ela assumiu os negócios.    

A bebida que Clicquot fazia era bem doce: 140 gramas de açúcar por litro – mais do que Coca-Cola (105 g). E quem gostava mesmo de uma bebida doce eram os russos: na época, o champanhe que ia para lá poderia chegar a 300 g/L. Eles, inclusive, tinham o hábito de adoçar o espumante na taça (alô, diabetes).

O problema era que a Rússia estava em guerra com a França, controlada por Napoleão Bonaparte, sem possibilidade de comércio. Clicquot, então, fez uma aposta: achou que Napoleão perderia e tudo voltaria ao normal. Ela produziu milhares de garrafas e as estocou em Amsterdã, na Holanda, que tem uma ligação mais rápida com a Rússia. Deu certo: a guerra acabou, e toda a bebida chegou à Rússia antes da concorrência. 

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Clicquot ganhou o mercado – e o coração do czar Alexandre 1 º, que passou a dizer que só bebia o champanhe da viúva. Como a aprovação de um nobre de primeiro escalão era a grande publicidade da época, foi o primeiro passo para que sua marca se tornasse a mais valiosa do mundo do champanhe: a Viúva Clicquot (ou melhor, Veuve Clicquot). 

Com a popularização do champanhe no século 19, a bebida se tornou a preferida para celebrações – a ideia, sempre, era se aproximar do modo como os ricos festejavam.

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(Fido Nesti/Superinteressante)
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A Champagne deles, e a nossa

A região que deu à luz Dom Pérignon e Barbe-Nicole Clicquot hoje produz 300 milhões de garrafas. A colheita em Champagne acontece entre o fim de agosto e setembro. 13,6 mil pessoas trabalham lá, mas, nessa época, outras 120 mil aparecem, já que tudo é feito à mão – tá na lei. Assim como os tipos de uva que devem ser usados: pinot noir, pinot meunier e chardonnay. As pinot são vermelhas, mas as cascas não vão para a prensa – por isso que o champanhe é claro.

Atualmente, a região produz 300 milhões de garrafas, que rendem 5 bilhões de euros por ano – por lá, quase não se produz mais vinhos tradicionais, também chamados de tranquilos. Foi de lá, inclusive, que saiu a tradição do champanhe na Fórmula 1. Em 1950, o primeiro Grande Prêmio da França foi disputado em Reims. Presentearam o vencedor, Juan Manuel Fangio, com um garrafão de três litros de Möet & Chandon. 

Já o costume de espirrar a bebida surgiu em 1966, quando o piloto Jo Siffert venceu as 24 Horas de Le Mans, também na França. A garrafa reservada para ele ficou sob o Sol, o que aumentou a pressão. Quando Siffert a abriu, voou goró para todo lado. No pódio da edição do ano seguinte, Dan Gurney estourou seu champanhe de propósito e jogou nos colegas. Começava mais uma tradição.

Foi no século 20 também que surgiu aquela lei que você provavelmente já conhece: só espumantes da região de Champagne podem ostentar a palavra “champagne” no rótulo. Os vinhos gasosos do resto da França recebem o nome de crémant. Os da Itália, de prosecco. Os da Espanha, de cava. Os da Alemanha, de sekt. No resto do mundo, “espumante” mesmo. Na verdade, só 10% dos espumantes consumidos no mundo hoje vêm de Champagne. E o que não falta são proseccos, cavas e sekts capazes de encarar seus irmãos da terra de Dom Pérignon. A começar pelos espumantes brasileiros.  

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(Ilustração: Fido Nesti | Design: Juliana Alencar/Superinteressante)
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Sim. O Brasil é um produtor reconhecido nessa área. Nossos vinhos mais premiados em concursos internacionais são justamente os espumantes. A vantagem da Serra Gaúcha é que as condições são relativamente similares às de Champagne: noites frias, insolação razoável, altitude elevada e um solo bom para uvas brancas e pinot noir. Não à toa, a Moët & Chandon começou a produzir espumantes no Brasil em 1973. Até as variedades de lá, como a chardonnay e a pinot noir, são usadas por aqui. 

A qualidade dos espumantes gaúchos se reflete bem no mercado. Por aqui, só 12% do vinho consumido é nacional (dos importados, metade vem do Chile). Já os espumantes brasileiros representam 66% do total. Afinal, eles são bons e mais baratos que os gringos – e cairão muito bem para terminar este ano intragável. 

Ilustração: Fido Nesti | Design: Juliana Alencar/Superinteressante
Ilustração: Fido Nesti | Design: Juliana Alencar/Superinteressante (Fido Nesti/Superinteressante)
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Fontes: Livro Champanhe: como o mais sofisticado dos vinhos venceu a guerra e os tempos difíceis, de Don e Petie Kladstrup. Sites Champagne.fr, History, Revista Adega, Smithsonian, Uvibra e Wine Mag. Canais Business Insider, Elicité e Science Channel. Agradecimento: Daniel Salvador, presidente da Associação Brasileira de Enologia.

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