O que você come influencia diretamente o que você sente. Veja como a alimentação pode mexer com os seus neurotransmissores, alterar estruturas cerebrais, desregular o apetite – e até estimular ansiedade e depressão.
Texto Bruno Garattoni e Eduardo Szklarz | Ilustração Felipe Del Rio | Design Carlos Eduardo Hara
Qual foi a última coisa que você comeu? Uma maçã, um bife, um pedaço de pizza? O processo digestivo, seja qual for o alimento, é sempre o mesmo: o organismo quebra as moléculas e extrai a energia contida na comida. E o órgão que mais consome energia é o cérebro. Ele é responsável por 20% da taxa metabólica basal (calorias que o corpo gasta em repouso, simplesmente para sobreviver), e queima até 320 kcal por dia. O cérebro recebe a energia na forma de glicose, um açúcar que o sistema digestivo obtém dos carboidratos (e também pode, caso necessário, sintetizar a partir de proteínas e gorduras). Mas novos estudos têm demonstrado que a coisa não é tão simples assim. A comida tem o poder de aumentar ou reduzir os níveis de neurotransmissores, provocar alterações em tecidos cerebrais, estimular ansiedade e depressão ou influir no comportamento de maneiras mais insidiosas. Inclusive, até, controlando o que e quanto você vai comer.
Depois que você faz uma refeição, o intestino produz um hormônio chamado uroguanilina. Essa substância age, de forma ainda não plenamente compreendida, sobre os rins, o coração e o próprio sistema digestivo. Ele também está relacionado à saciedade: é um aviso para o cérebro de que o corpo recebeu calorias suficientes, e ele pode cortar o sinal de fome, para que você pare de comer. Isso foi demonstrado pela primeira vez em 2011, quando cientistas de duas universidades americanas criaram ratos de laboratório geneticamente modificados, incapazes de produzir uroguanilina (1). Isso eliminou o controle de apetite dos bichinhos, que comiam de forma insaciável e invariavelmente se tornavam obesos. Nos anos seguintes, pesquisas examinaram a ação da uroguanilina em humanos e constataram que ela desempenha um papel similar. Mas o mais interessante veio em 2016, quando pesquisadores das universidades Stanford e Thomas Jefferson, nos EUA, voltaram aos camundongos de laboratório para fazer um teste: o que acontece com a uroguanilina se você pegar ratos normais, que produzem esse hormônio, e deixar eles se esbaldarem de comida?
Durante 14 semanas, os camundongos tiveram acesso irrestrito, 24 horas por dia, a uma dieta altamente calórica (2). Resultado: a superalimentação estressou as células do intestino, que pararam de produzir uroguanilina. E, sem esse hormônio, o cérebro não disparava os sinais de saciedade. Percebeu? O consumo excessivo de comida, num período contínuo (equivalente a 10% do tempo de vida dos ratos de laboratório), tornou as cobaias biologicamente incapazes de parar de comer.
Segundo os cientistas, a chave do problema está no retículo endoplasmático, uma organela das células que fabrica proteínas e hormônios. Ele foi sobrecarregado pela alimentação excessiva e parou de funcionar. Comer demais, e de forma crônica, pode desregular os mecanismos hormonais e cerebrais de controle do apetite.
Alimentos ultraprocessados também têm o poder de fazer isso. Foi o que descobriram cientistas do Instituto Nacional de Saúde dos EUA (3). Eles dividiram 20 voluntários saudáveis, sendo dez homens e dez mulheres, em dois grupos por 15 dias. O primeiro grupo se alimentou de alimentos in natura, pouco processados (frutas, verduras, carne, peixe, leite, ovos, grãos), e podia comer o quanto quisesse. O segundo grupo também tinha essa liberdade, mas com uma diferença: passou os 15 dias comendo alimentos altamente industrializados, ricos em gordura trans, xarope de milho com alta frutose (HFCS) e todo tipo de aditivo. Depois das duas semanas, as dietas foram invertidas entre os grupos e o estudo prosseguiu por mais 15 dias. Os participantes fizeram a mesma quantidade de exercícios.
Em média, as pessoas ficavam satisfeitas depois de comer 2.600 calorias diárias quando estavam na dieta pouco processada – mas, com a alimentação industrializada, só paravam depois de 3.100. E isso também tem a ver com hormônios que agem sobre o cérebro. O estudo descobriu que, quando as pessoas estavam na dieta composta por alimentos in natura, tinham maiores níveis do hormônio PYY, que inibe o apetite, e menos grelina, hormônio que dispara os sinais de fome. O que você come influi diretamente sobre os mecanismos de controle do apetite – e ganhar ou perder peso não é só uma questão de força de vontade. Longe disso.
O cérebro tenta impedir os gordos de emagrecer, num círculo vicioso que mantém a obesidade. A primeira pista disso veio em 1994 com a descoberta da leptina, um hormônio que é produzido pelas células adiposas e avisa ao cérebro que o corpo está com bastante energia estocada (na forma de gordura corporal). Com o tempo, o corpo dos obesos se torna menos sensível à leptina, e o cérebro passa a não detectar os sinais de saciedade.
Em 2013, pesquisadores da Universidade Brown, nos EUA, descobriram que outro hormônio entra na equação. É o alfa-MSH, que suprime o apetite e promove a queima de calorias. Durante 12 semanas, eles alimentaram um grupo de ratos (4) com uma dieta hipercalórica e outro grupo com uma dieta normal. Os animais superalimentados ficaram obesos, e isso impediu a produção do alfa-MSH. A raiz do problema, de novo, estaria no retículo endoplasmático – ele fica sobrecarregado e para de fabricar o alfa-MSH, o que descontrola o apetite e realimenta o processo, num círculo vicioso.
A boa notícia é que comer bem pode condicionar positivamente o cérebro – e modificar naturalmente o apetite. A chave disso está no chamado “sistema de recompensa”, um conjunto de neurônios que engloba três regiões cerebrais: o nucleus accumbens (ligado à motivação), a amígdala (relacionada ao estresse) e o córtex pré-frontal (responsável pela tomada de decisões). Esse sistema libera dopamina, um neurotransmissor relacionado a sensações prazerosas. Em obesos, ele é ativado quando o indivíduo vê imagens de alimentos altamente calóricos. Mas cientistas da Universidade Tufts, nos EUA, provaram que é possível treinar o cérebro para abandonar a fissura por junk food. Durante seis meses, eles acompanharam 13 adultos com sobrepeso, que foram divididos em dois grupos: um comeu normalmente, como sempre, e o outro seguiu uma dieta saudável, com direito a encontros semanais por videoconferência e lições sobre alimentação. O cérebro dos voluntários foi escaneado, via ressonância magnética, no começo e no fim do estudo (5).
O grupo da dieta perdeu em média 6 kg, enquanto o outro ganhou em torno de 2 kg. Mas isso é óbvio. O surpreendente estava nos exames de ressonância magnética. O primeiro exame mostrou que o sistema de recompensa era ativado, em ambos os grupos, quando as pessoas viam fotos de comidas muito calóricas (frango frito, por exemplo). Após seis meses, porém, o grupo da dieta demonstrou mais ativação cerebral ao ver alimentos saudáveis, como um sanduíche natural. Seu cérebro havia mudado. No fim das contas, não precisamos abrir mão do prazer na hora de sentar à mesa. Só precisamos transformar o círculo vicioso em nosso favor, tendo cautela com certos alimentos. Alguns deles, mais do que simplesmente desregular o apetite, podem provocar alterações de comportamento – e estimular ansiedade e depressão.