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Ciência

Racismo disfarçado de ciência: como foi a eugenia no Brasil

"Embranquecer” a população já foi política de Estado. Apoiada por muito acadêmico que hoje é nome de rua: Vital Brazil, Dr. Arnaldo, Sílvio Romero...

por Ale Santos (@Savagefiction) Atualizado em 18 nov 2021, 12h10 - Publicado em 19 nov 2019 16h21

No final do século 19, o Brasil tinha 17 milhões de habitantes. Mais da metade era formada por ex-escravos e seus descendentes.

Desde 1888, a lei proibia que essas pessoas fossem tratadas como posse. A ideia de que elas fossem inferiores por serem negras, porém, seguia firme – inclusive entre a elite intelectual do País. Sem o apoio das leis para justificar uma hierarquia racial, esses sujeitos lançaram mão de outra arma: a pseudociência racista. Estamos falando da eugenia, nascida na Europa, e que logo se adaptou à realidade canarinha.

A eugenia brasileira e a Academia conviviam lado a lado: foi entre os professores das primeiras faculdades de medicina, os políticos e os sociólogos que ela cresceu. Boa parte dos nomes desses eugenistas é familiar – eles batizam ruas e avenidas País afora. Esta é a história deles.

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O início

O termo “eugenia” foi criado por um certo Francis Galton, na década de 1880. O eu vem do grego, e significa “bom”. Genia quer dizer “linhagem”.

Galton era geógrafo, membro da elite britânica e primo de Charles Darwin – que, àquela altura, era o intelectual mais respeitado do planeta. Sua intenção não era exatamente criar uma “raça superior”, mas uma “sociedade perfeita”. E de perfeita a sociedade londrina da época não tinha nada. Faltavam saneamento e água tratada. Sobravam alcoolismo, doenças contagiosas e pobreza. Galton, então, tentou interpretar o cenário sob o prisma da seleção natural de Darwin.

De acordo com a Teoria da Evolução, pequenas diferenças inatas em indivíduos de uma mesma espécie levam alguns a se adaptar melhor ao ambiente que os demais. Eles, daí, tendem a sobreviver por mais tempo, e a deixar mais filhos. Essas diferenças se propagam por hereditariedade, e se tornam mais comuns na população.

Galton acreditava que a miséria era uma dessas características inatas. E que a fórmula para eliminá-la era simples: bastava que os ricos deixassem mais descendentes que os pobres. Com o tempo, todos os londrinos teriam o que ele chamava de “boa linhagem”. E nunca mais haveria gente pobre, doente, alcoólatra.

A tal “sociedade perfeita” passou a ser sinônimo de uma sociedade menos semita, menos cigana, menos negra.

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A eugenia de Galton logo se tornou “base científica” para toda sorte de racistas. A tal “sociedade perfeita” passou a ser sinônimo de uma sociedade menos semita, menos cigana, menos negra.

O Brasil pós-abolição do século 19 era um terreno fértil para os disparates da eugenia. Tinha uma população negra gigantesca e paupérrima. A sociedade também se tornava mais miscigenada – e distante de qualquer ideal eugenista de brancura.

Imbuídos das ideias que cresciam na Europa e nos EUA, brasileiros influentes se mobilizaram em um projeto de construção de uma “raça superior”, ou seja, branca. E a noção de uma seleção artificial que promoveria nascimentos de maior qualidade foi se instalando em universidades, hospitais e até na política.

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(Estevan Silveira/Superinteressante)
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Made in Brazil

Na mesma época em que os ideais eugênicos se espalhavam pelo País, também nasciam as primeiras metrópoles. Muita gente concentrada, muita pobreza e muita sujeira eram a combinação perfeita para a proliferação de epidemias. Nasce, então, o movimento sanitarista, que buscava resolver os problemas de saúde pública nos centros urbanos.

O sanitarismo em si não era um problema. A divisão entre os que pretendiam higienizar o País e os que queriam “purificar a raça”, porém, era tênue. Vários nomes influentes participavam simultaneamente dos movimentos sanitaristas e eugenistas. É o caso de Belisário Pena, fundador da Liga Pró-Saneamento do Brasil, e de Artur Neiva, discípulo de Oswaldo Cruz – e defensor do branqueamento da população brasileira.

O branqueamento era pautado pela ideia de que o “sangue branco” se sobrepunha a qualquer outro, até do ponto de vista biológico. Por consequência, os descendentes de negros e brancos ficariam progressivamente mais claros… até se tornarem brancos.

João Batista de Lacerda, médico e diretor do Museu Nacional, era partidário dessa ideia. Em 1911, ele representou o Brasil no Congresso Universal das Raças, em Paris. A programação era um show de horrores: tinha temas como “O destino da raça judaica” e “A posição mundial do negro e do negroide”.

Ao contrário de boa parte dos eugenistas, Batista via a miscigenação como uma estratégia interessante. Ele supunha que a força do “sangue branco” diluiria o “sangue negro”. Batista calculava que, se o embranquecimento fosse estimulado e novos africanos não chegassem ao País, “no espaço de um século, os mestiços desaparecerão do Brasil, fato que coincidirá com a extinção paralela da raça negra entre nós”, escreveu.

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As ideias de Batista acabaram abandonadas pelo próprio movimento – até porque não faziam o menor sentido; a mistura que a miscigenação promove não pende para nenhum lado.
A tal hegemonia branca teria de vir de outro jeito. Sílvio Romero, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras (e que dá nome a uma grande praça em São Paulo), acreditava que a “solução” era outra: deixar os negros morrerem.

“Pela seleção natural, o tipo branco irá tomando preponderância até mostrar-se puro e belo como no Velho Mundo”, escreveu Romero em 1879. “Dois fatos contribuirão largamente para esse resultado: de um lado, a extinção do tráfico africano e o desaparecimento constante dos índios, e, de outro, a imigração europeia.”

Essa “seleção natural” não tinha nada a ver com a de Darwin. Ela se referia à taxa de mortalidade de pessoas negras que, em 1908, ultrapassava o dobro do índice para pessoas brancas. Morriam 25 a cada mil brancos, segundo o Anuário Demógrafo-Sanitário do Rio de Janeiro.

Entre negros, eram 67 a cada mil. Romero e outros eugenistas se entusiasmavam com a ideia de trazer uma população europeia para ocupar o lugar do grupo que estava desaparecendo. A morte de negros e mestiços era tratada como benéfica.

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Euclides da Cunha, outro membro da Academia Brasileira de Letras e um dos mais importantes autores da literatura nacional, também tratou de raça e miscigenação sob um olhar eugenista. Em Os Sertões (1902), ele associa mestiçagem, degeneração e criminalidade: “O mestiço … é, quase sempre, um desequilibrado (…), um decaído, sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem altitude intelectual dos ancestrais superiores”.

Mas era nas faculdades de medicina e psiquiatria que as convicções eugenistas atingiam seu estado mais avançado. Raimundo Nina Rodrigues – que até hoje dá nome ao Instituto Médico Legal (IML) de Salvador e a um hospital em São Luís do Maranhão – foi quem começou a adaptar à realidade brasileira as ideias racistas de teóricos como Cesare Lombroso, criador da teoria do “criminoso nato”. Em Mestiçagem, Degenerescência e Crime, Nina Rodrigues descreve o mestiço e o negro como “naturalmente delinquentes”. Com base nisso, ele propôs uma reforma penal que atribuísse penas mais rígidas para africanos e seus descendentes.

Além da psiquiatria, Nina Rodrigues se dedicava ao estudo das culturas e etnias oriundas da África, que ele enxergava como selvagem e intelectualmente subdesenvolvida. Segundo o médico, esse atraso tinha motivo científico: era “produto da marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade”, escreveu em 1932. Mesmo assim, Nina Rodrigues ainda é considerado um dos primeiros “africanólogos” do País.

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Os clubes da eugenia

Enquanto Nina Rodrigues liderava o pensamento sobre higiene racial na Bahia, outros Estados fundavam associações para refletir sobre o futuro eugênico no Brasil. No Rio, o movimento foi endossado por nomes influentes como o médico Miguel Couto, diplomado pela Academia Imperial de Medicina em 1883, membro-titular da Academia Nacional de Medicina desde 1886 e seu presidente entre 1914 e 1934.

Nesse período, o médico Renato Ferraz Kehl, que havia atuado no Departamento Nacional de Saúde Pública, organizou uma reunião de médicos em São Paulo para discutir a eugenia. Ele era um dos maiores extremistas dessa seara – e um dos poucos que, hoje, são abertamente condenados nos livros de história.

Algumas das discussões da reunião se tornaram notórias – em especial, o debate sobre casamento consanguíneo. Se a ideia era estimular pessoas brancas e ricas a procriar entre si até formar uma raça “superior”, não faria sentido incentivar o matrimônio entre primos brancos de primeiro grau, por exemplo? O grupo acabou chegando à conclusão de que o aumento na transmissão de doenças hereditárias não valeria o risco – mas que o debate rolou, rolou.

Surgiu desse encontro a Sociedade Eugênica de São Paulo. Entre seus membros ilustres, estavam Arnaldo Vieira de Carvalho (fundador da Faculdade de Medicina de São Paulo, que dá nome à Avenida Dr. Arnaldo, em São Paulo), Vital Brazil Mineiro da Campanha (fundador do Instituto Butantan, cujo endereço atual é Avenida Vital Brazil, nº 1500), Arthur Neiva (sanitarista e também nome de rua), Franco da Rocha (psiquiatra e nome de cidade), e Monteiro Lobato. O escritor do Sítio do Pica-Pau Amarelo patrocinou as primeiras publicações do movimento, imprimindo ele mesmo os Annaes de Eugenia, lançados em 1919.

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A Constituição de 1934 determinava que era dever do Estado “estimular a educação eugênica”. E muitos eugenistas ainda são nome de rua.

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(Estevan Silveira/Superinteressante)
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Aspirações políticas

No dia 17 de agosto de 1926, o historiador e deputado federal Alfredo Ellis Júnior colocou em votação um projeto de lei para dificultar a entrada de imigrantes asiáticos e negros no Brasil. Seu projeto ganhou apoio de Oliveira Viana, um influente jurista e imortal da Academia Brasileira de Letras.

Três anos antes, segundo a pesquisadora Lorenna Ribeiro Zem El-Dine, da FioCruz, Viana tinha apoiado um projeto similar do deputado Fidélis Reis, que proibia a entrada de imigrantes negros, restringia parcialmente a “imigração amarela” e estimulava a imigração europeia em todo o território nacional.

Em 1929, o primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia é sediado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e pelo Instituto dos Advogados. O evento fazia parte das comemorações do centenário da Academia Nacional de Medicina, e foi presidido por Edgard Roquette-Pinto, o homem que inaugurou as transmissões de rádio no Brasil.

Um dos grandes temas ali foi a “educação para promover a consciência eugênica”. O intuito era estimular jovens estudantes a não contrair matrimônio com raças e classes sociais diferentes. O objetivo final era o mesmo de Galton: que os jovens eugenicamente sadios, casados entre si, tivessem mais filhos que as “raças degeneradas”, contribuindo para o desenvolvimento de uma nação “perfeita”.

A sessão foi presidida por Levy Carneiro, advogado, escritor e presidente da Associação Brasileira de Educação. Ao todo, participaram 200 profissionais, entre médicos, jornalistas e deputados, além de representantes do Peru, Chile, Paraguai e Argentina.

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Renato Kehl ficou eufórico, e inaugurou então a maior publicação eugênica do Brasil: o Boletim da Eugenia, suplemento do jornal médico Medicamenta.

Por três anos, o Boletim publicou textos de brasileiros e atualizou os eugenistas nacionais sobre as ideias de seus colegas estrangeiros – como o alemão Erwin Bauer que, junto com Fritz Lenz e Eugen Fischer, escreveu os dois volumes de Principles of Human Heredity and Racial Hygiene (“Princípios de Hereditariedade Humana e Higiene Racial”), uma das influências principais do Mein Kampf, de Adolf Hitler.

Depois do trauma do Holocausto, a eugenia, finalmente, perdeu força na política e na Academia.

Durante o Estado Novo, Renato Kehl conseguiu, junto com Roquette-Pinto, integrar uma comissão no Ministério do Trabalho. Durante toda a década de 1930, os eugenistas influenciaram as políticas públicas de imigração e educação. Evidência disso é a própria Constituição Federal de 1934: o artigo 138 determinava que “estimular a educação eugênica” era dever da União, dos Estados e dos Municípios.

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A restrição racial de imigrantes que, até então, era apenas projeto de lei, foi oficializada pelo Decreto nº 7.967 de 1945, assinado por Getúlio Vargas. O texto diz, com todas as letras, que a admissão de imigrantes no Brasil era condicionada “à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia”.

Concursos de beleza que elegiam as crianças e adultos com as melhores “qualidades eugênicas” foram promovidos por emissoras populares de rádio, como a Tupi, e apoiados financeiramente pela Secretaria Geral de Educação e Cultura.

Depois do trauma do Holocausto, a eugenia perdeu força no mundo todo. Aos poucos, as discussões sobre raça ganharam outros contornos. Ainda que as ciências tenham abandonado oficialmente a eugenia, os estereótipos difundidos por seus precursores ainda encontram lugar na sociedade – a exemplo do que disse o vice-presidente Hamilton Mourão, na época candidato: “Gente, deixa eu ir lá, que meus filhos estão me esperando. Olha, meu neto é um cara bonito, viu ali? Branqueamento da raça.”

Grande nome do movimento eugênico brasileiro, Renato Ferraz Kehl concentra hoje, sozinho, quase todas as críticas ao assombroso affair do Brasil com a eugenia. Nem por isso deixou de receber loas. Em 1968, mais de 20 anos após o fim da 2ª Guerra, foi eleito Membro Emérito da Academia Nacional de Medicina por sua “atividade médica e científica em prol da pátria”.

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