O escrutínio público é universal e atemporal: do ostracismo grego ao Big Brother, passando pelos bodes expiatórios e berlindas, todas as sociedades desenvolveram métodos para exilar e humilhar quem se desvia de certas normas. Conheça alguns deles.
Texto Rafael Battaglia Edição Bruno Vaiano
Design Juliana Alencar Ilustração Thobias Daneluz
Em 1968, pesquisadores do Instituto Arqueológico Alemão fizeram uma importante descoberta em Kerameikos – um sítio arqueológico ateniense, a noroeste da Acrópole, que, na Antiguidade, era um polo produtor de cerâmica (a palavra “cerâmica”, inclusive, deriva do nome do lugar).
Eles encontraram 8.500 óstracos. Na Grécia, ostrakon era um termo genérico para coisas duras e inflexíveis. Foi daí que saíram, por exemplo, as palavras óstreon e ostéon – as bisavós de “ostra” e “osso”. No caso da descoberta de Kerameikos, os 8,5 mil óstracos eram cacos de cerâmica com nomes inscritos. Eles eram usados como cédulas em votações em Atenas. Não votações para aprovar leis ou escolher representantes. Votações para cancelar pessoas.
Entre 487 a.C. e 416 a.C., os cidadãos da célebre cidade-estado praticaram o que ficou conhecido, graças ao nome dos cacos, como ostracismo – um processo no qual os cidadãos concordavam pelo exílio de quem representava algum tipo de risco à comunidade e à ordem pública. Os campeões de rejeição nesse paredão eram forçados a se retirar da Ática, região onde fica Atenas, por dez anos. (Outras pólis, como Mileto, Siracusa e Argos, faziam algo parecido.)
Primeiro, uma assembleia realizada todo inverno em Pnyx, uma colina no coração de Atenas, decidia se haveria ou não uma reunião para escolher exilados naquele ano. Sim: eles votavam para decidir se iriam votar. Caso a maioria aprovasse, era hora de organizar a ostrakophoria – o grande dia, quando todos se reuniam na Ágora para decidir os cancelamentos da temporada.
Todos os cidadãos (lembrando que mulheres, escravos e estrangeiros não eram “cidadãos”) podiam votar e ser alvo de votos. Até Péricles, o maior estadista ateniense do século 5 a.C., esteve ameaçado por alguns óstracos.
A insatisfação, geralmente, recaía sobre duas ou três figuras, que faziam campanha para não serem chutadas da cidade. E os votados recebiam os mais diversos elogios: “traidor”, “mentiroso”, “adúltero”, “incestuoso”. Mais de 500 conselheiros e funcionários públicos acompanhavam a apuração; rodava quem recebesse ao menos 6 mil votos (sempre secretos).
Apesar da ligeira baixaria na cerâmica, o grau de civilização do procedimento era uma aula para o Twitter. Não havia castigos físicos nem confisco de bens, e o exilado não deixava de ser um cidadão. Quando o olho da rua piscava para alguém, o expulso tinha dez dias para organizar seus negócios antes de cair fora. Ao final da década de punição, ele poderia voltar e continuar participando da vida pública de Atenas. E aí, é claro, havia brecha para um segundo cancelamento: o grego Mégacles foi exilado duas vezes, em 486 a.C. e 471 a.C., pelo seu estilo de vida extravagante e luxuoso.
O caso desse rei do camarote foi uma exceção. O ostracismo era um instrumento usado para punir quem fosse na contramão do status quo de Atenas, geralmente por exprimir ideias antidemocráticas ou apoio à Pérsia, inimiga dos gregos nas Guerras Médicas. Com o tempo, porém, interesses pessoais tomaram conta das votações, que passaram a ser palco de cenas dignas de Brasília.
Em 416 a.C., os políticos Alcibíades e Nícias corriam risco de ser exilados. Então se uniram numa frente ampla contra um certo Hipérbolo, que também estava no páreo. A campanha deu certo, mas a manobra pegou mal pelo excesso de politicagem, e os atenienses decidiram aposentar a prática. O ostracismo acabava ali, mas o termo é sinônimo de esquecimento até hoje. E esse não é o único vocabulário da seara do cancelamento que permanece.