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70.072: A tatuagem eterna do Holocausto

Sobrevivente de Auschwitz conta como era a vida no campo de extermínio e diz que levou 70 anos para aprender a amar.

Por Salus Loch, de Cracóvia (Polônia)
Atualizado em 17 fev 2022, 17h10 - Publicado em 22 Maio 2015, 15h00

Você provavelmente já disse “eu te amo” para alguém. Com sorte, também já deve ter escutado essas palavras da boca de outra pessoa. Afinal, a capacidade de amar é importante para as interações humanas na sociedade. É tão natural que a gente nem para pra considerar que algumas pessoas simplesmente não se sentem capazes de amar. Por sete décadas, essa foi a realidade de Lidia Maksymowicz. A bielorrusa de 75 anos acredita que só sentiu amor de verdade pela primeira vez há cerca de dois anos, quando nasceu seu primeiro bisneto. E antes?

Lidia nasceu em Minsk, na Bielorrússia, com o nome de Lyudmila Botcharova, em 1940. Apenas três anos depois, ela foi mandada, junto com sua mãe e avós maternos, para o campo de extermínio Auschwitz II-Birkenau, ao sul da Polônia. Estima-se que 1,1 milhão de pessoas tenham morrido neste lugar nãos mãos do regime Nazista, durante a II Guerra Mundial. Lidia sobreviveu. E só saiu de lá no dia 27 de janeiro de 1945, quando o campo – construído em 1940 – foi libertado pelo Exército Russo. No entanto, o que ela viu e sentiu nas mãos do III Reich deixou cicatrizes eternas. O número – 70.072 -, que servia para identificá-la entre os 1,3 milhão de prisioneiros, continua lá, tatuado no antebraço esquerdo de Lidia. As lembranças, também.

Lidia, que diz ser a mais longeva sobrevivente em todo o mundo entre as crianças que deixaram Birkenau vivas, recebeu a reportagem da Superinteressante no Galicia Jewish Museum, em Cracóvia – cidade ao sul da Polônia onde ela mora, a pouco mais de 60 km de Auschwitz. Durante mais de uma hora, ela contou sua história de vida, falou sobre traumas e superação. “Naquela época eu era apenas um número. Hoje, sou uma sobrevivente”, diz.

A seguir, os principais trechos da conversa, que contou com a tradução – do inglês para o polonês – de Anna Wencel, coordenadora de Educação do Galicia Museum (Lidia só fala polonês e russo).

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A morte de cada dia

Novembro de 1943. Soldados alemães invadiram Minsk e arrastaram centenas de “prisioneiros de guerra” para vagões de trens que mais pareciam abatedouros de gado. Empilhados, sem água ou condições de higiene (um balde servia como latrina), aqueles que resistiam à viagem ou à violência dos oficiais de Adolf Hitler, chegaram a Auschwitz depois de três semanas.

Entre eles, estavam Lidia (então Lyudmila, de 3 anos) sua mãe, Anna, e os avós, que imediatamente após o desembarque foram encaminhados para o “lado da morte”. Este procedimento, supervisionado por médicos nazistas, era comum. Lidia explica que só iam para os dormitórios quem apresentasse boa saúde ou fosse jovem. O resto era descartável. “Eles não queriam gente que não pudesse trabalhar. As pessoas de mais idade e os doentes, em regra, eram encaminhados direto para as câmaras de gás”, conta.

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Sua mãe e ela sobreviveram à primeira “seleção”. No entanto, foram separadas e acabaram ficando em diferentes espaços de Birkenau. Coube a Lidia se abrigar como pode num dos barracões junto às demais crianças – muitas das quais eram submetidas aos testes do ‘anjo da morte’, o médico alemão Josef Mengele. Ela mesma, com pouco tempo no campo, recebeu uma vacina com uma substância “parecida com sangue”, que deixou feridas na pele e que até hoje lhe dá calafrios. Sua anemia, diz, teve origem também graças aos testes de Mengele.

Lidia conta que a mãe – que trabalhava fora do campo – conseguia trazer-lhe, com alguma frequência (apesar do risco), pão preto e cebola. “Isto, com certeza, colaborou muito para que eu conseguisse sobreviver. Afinal, a comida que eles nos davam era pouca”.  Sem a comida contrabandeada, a solução era seguir o instinto de sobrevivência e roubar comida das outras crianças. “O frio que chegava a -20°C no inverno nos deixava ainda mais fracas, pois nosso dormitório não tinha nenhum isolamento nem calefação. Tínhamos que dormir empilhadas, em grupos de cinco, seis até sete crianças para tentarmos nos esquentar. Imagina, éramos crianças de três, quatro, cinco anos. Apesar disso, a barraca era meu mundo”, diz.

Além de levar comida, Anna sempre fazia a filha repetir seu próprio nome e o de seus pais. Por causa da guerra, o nome do pai e sua profissão (Alexandre, um oficial soviético) foram as únicas informações que Lidia teve sobre ele.

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Para a criança Lyudmila, a morte, assim como viver em meio a baratas e ratos, era algo cotidiano. Dezenas morriam ao seu redor todos os dias. Os corpos eram levados aos crematórios. “Eu era muito nova, mas lembro que o cheiro era estranho. Mais tarde, fui descobrir que era de carne queimada”, suspira.

Em meados de 1944, um grupo de jovens enfermeiras de Varsóvia chegou a Birkenau para cuidar das crianças. “Foram as primeiras pessoas que nos ajudaram lá dentro”, lembra Lidia. Na mesma época, ela notou que sua mãe tinha deixado de lhe trazer comida, e comentou o fato com as outras crianças. Uma delas apontou para uma pilha de cadáveres e sentenciou: sua mãe está ali. “Eu não sabia o que pensar. Achei que era possível, e normal. A cada segundo você podia perder a sua vida lá”, revela, sem emoção.

Café e pão com margarina

Ela sobreviveu à guerra. Contudo, a outrora criança forte – mais encorpada e mais alta do que a média das demais em Auschwitz II-Birkneau – se transformou numa esquálida Lyudmila que viu, no fim de janeiro de 1945, a chegada de um novo grupo de soldados ao seu barracão. Estes, conta ela, vestiam uma “roupa diferente”. Com estrelas. “Eu reconhecia aquilo, mas não sabia de onde. Ficamos assustadas. Corremos. Gritamos. Tentamos nos esconder. Mas, de repente, notamos que eles não queriam nos fazer mal. Pelo contrário, nos deram uma xícara de café e pão com margarina. Lembro até hoje do sabor. Era tão gostoso. Foi maravilhoso. A melhor sensação da minha vida”, conta.

Os soviéticos encontraram 600 cadáveres em Auschwitz. Dos 7,5 mil prisioneiros vivos que viviam no local, 500 eram crianças. Cerca de 58 mil prisioneiros tinham sido evacuados do campo de extermínio antes da chegada do exército vermelho, e faziam a Marcha da Morte a pé rumo a outros campos, em pleno inverno europeu.

Logo após deixar Auschwitz, a menina foi adotada por uma família católica polonesa que lhe deu uma vida e um novo nome. Ela passou a viver em Oswiecim, o nome polonês para a região de Auschwitz, onde três campos de concentração nazistas funcionavam.

O impacto da mudança, porém, foi duro. Mesmo tendo cama, água quente para o banho e comida farta, a menina adoeceu e ficou de cama por meses. “O choque físico e mental foi grande”, explica. “Depois de recuperada, nas brincadeiras com as demais crianças, minhas atitudes chamavam a atenção. Lembro que eu dizia que quem não fizesse direito, ou não ganhasse, iria para as câmaras de gás ou para o paredão de fuzilamento. Eu não era uma criança normal. Não sabia brincar”, revela.

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Anos depois, Lidia descobriu que a mãe não tinha morrido em Auschwitz. Anna estava viva e morava em Donestk (cidade soviética que hoje faz parte da Ucrânia). “Primeiro fiquei com raiva dela por não ter me procurado depois de tantos anos. Depois, descobri que ela pensou que eu estava morta. Na verdade, também pensei que ela estava morta. Entendi sua situação”, explica.

Minha vida é composta de duas partes. Em primeiro lugar, a infância em um campo de concentração e extermínio Nazista. A segunda é o resto dela… vivido de um modo estranho…

Durante o encontro, no entanto, Lidia teve uma reação mais do que fria. “Não senti nada. Sabia que estava diante de minha mãe, mas eu não a conhecia. Não consegui ter sentimento algum. Via que ela estava emocionada, mas eu não sentia nada”, revela, para em seguida arrematar: “Veja como são as coisas. Eu sobrevivi a Auschwitz, mas, se tivesse voltado a viver com minha mãe e minhas três irmãs (que ela também não sabia que existiam até o encontro com a mãe biológica), possivelmente estaria hoje no meio de outra guerra, que é a travada entre os rebeldes russos e o governo da Ucrânia – tendo Donetsk como um dos principais focos de destruição, bombardeios e tensão. Por isso, pensando bem, e apesar de tudo, posso dizer que tenho sorte”.

A descoberta do amor

Lidia se casou. Teve filhos. Netos. Graças ao trabalho e às indenizações da guerra, conseguiu viver confortavelmente. Adquiriu propriedades. Foi e continua indo a shows e concertos em Cracóvia e demais cidades da Polônia. Fez e faz diversas viagens internacionais – há quatro anos, esteve no Brasil, em plena Sapucaí, prestigiando o carnaval carioca.

Mas, assim como não sabia brincar, também não sabia amar. Até que algo aconteceu. “Não sei explicar. Isso foi há dois anos, com o nascimento do meu bisneto. Senti, pela primeira vez, algo diferente; forte e carinhoso. Aquela criança me mostrou que eu poderia amar alguém. Vi então que nada é para sempre. Senti-me humana de verdade”, conta. “Todos temos momentos bons e ruins, precisamos valorizar os bons. Acho que meu bisneto me deu isso, um incrível bom momento. O momento de amar. Que eu possa prolongá-lo o máximo possível”, ensina ela, finalmente, emocionada.

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