A globalização do medo
Em 11 de setembro, um mundo morreu e outro nasceu. Deste, só sabemos que será marcado pela paranóia
Leandro Sarmatz
O terrorismo ronda o mundo atual como um espectro. Os Estados Unidos e todas as potências da Europa uniram-se numa “guerra santa” contra esse inimigo. Desde o fatídico 11 de setembro, o presidente George W. Bush tem produzido discursos em que a velha retórica belicista americana aproxima-se do tom pouco amigável dos xerifes do Velho Oeste retratados por Hollywood. Num pronunciamento na TV, Bush declarou querer capturar Osama bin Laden “vivo ou morto”.
Os atentados contra os Estados Unidos comprovaram um fato que vem sendo observado pelos analistas políticos: as próximas guerras não se darão somente entre Estados-Nações, mas entre países e grupos terroristas. A tragédia americana demonstra que a guerra tradicional pode ter acabado. O novo fronte é formado por uma série de conflitos internos provocados por grupos políticos bem armados e, em muitos casos, contando com o respaldo de alguns Estados organizados.
O principal combustível das guerras do passado era a animosidade entre nações e blocos econômicos. Hoje, o que insufla novos e sangrentos conflitos é o descontentamento com políticas externas e posturas econômicas hegemônicas. Antecipada em livros como Os Demônios, do escritor russo Fiódor Dostoiévski (que mostra o nascimento do terrorismo entre os opositores do czar na Rússia do século XIX), e O Agente Secreto, do polonês naturalizado britânico Joseph Conrad (no qual um grupo de anarquistas ingleses tenta explodir uma bomba em Londres), a guerra terrorista é sempre motivada pela paranóia, seja ela política ou religiosa. É o temor de ver determinado território ocupado, é a desconfiança em relação àqueles que não partilham dos mesmos credos religiosos. É a guerra do fanatismo, da intolerância e da insatisfação.
Grande parte dos exércitos ainda não está preparada para essa nova forma de guerrear. Antigas estratégias, desenhadas quando a perspectiva de combate era observada atentamente no mapa-múndi e não nos mapas de grandes centros urbanos como Nova York, Paris ou Londres, envelheceram muito nas últimas semanas. O terrorismo é um inimigo sem país determinado e muitas vezes com “posições” dentro do território do oponente. As nações dispostas a enfrentá-lo devem aprender a lidar com táticas de guerrilha e a estabelecer limites de segurança mais rigorosos em locais tumultuados como aeroportos, estações de metrô e avenidas comerciais.
“A batalha contra o terrorismo terá que ser global, envolvendo cooperação não apenas de Estados, mas de organizações sociais e religiosas. Será uma aliança global”, afirma o jurista americano Christopher Kutz, professor de jurisprudência e política social na Universidade de Berkeley, no Estado americano da Califórnia, uma instituição de ensino historicamente ligada à esquerda e aos movimentos sociais. Mas essa “aliança global” não poderá provocar uma paranóia igualmente mundial, em que os direitos individuais serão podados em nome da paz? Kutz enxerga esse risco, mas prefere acreditar na sobrevivência de valores como a liberdade e a privacidade. Ele teme por algumas conseqüências da desconfiança generalizada em relação a qualquer indivíduo que pareça islâmico.
“O grande perigo que todos nós corremos é o de constrangermos ainda mais pessoas que pareçam diferentes, ou seja, de pele mais escura”, afirma Kutz. O que seria apenas transportar a intolerância e o fanatismo dos grupos extremistas para as sociedades democráticas.
Por incrível que pareça, a discussão acerca das liberdades individuais num período conflagrado por ataques terroristas apagou muito da tradicional polarização entre direita e esquerda nos Estados Unidos. Ao longo da história americana, republicanos e democratas sempre habitaram nichos políticos opostos. O que também significava visões do mundo bastante diversas. Os republicanos são francamente favoráveis à postura de “delegados do mundo” encarnada pelos Estados Unidos desde o início do século – principalmente durante a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria. Já os democratas marcam sua atuação por uma postura mais crítica e um pouco menos intervencionista.
Membro do Conselho Diretivo da John Birch Society, um dos bastiões mais conservadores do espectro político americano, e editor da publicação The New American, órgão porta-voz dos republicanos, o jornalista William Norman Grigg procura adotar um discurso mais moderado em relação à perda de direitos civis em nome do combate ao terrorismo e à possibilidade de uma guerra. “Ao contrário de um endurecimento das liberdades individuais e de uma guerra, seria maravilhoso se a América se inspirasse nesta tragédia para se devotar mais uma vez aos valores não-intervencionistas”, afirma. Grigg diz ainda que uma aliança global antiterrorismo poderá servir como uma luva a países como Rússia e China, dispostos a aniquilar movimentos separatistas islâmicos nos territórios da Chechênia e de Xinxiang, velhos causadores de enxaquecas nos intransigentes governantes locais.
Parece difícil, no entanto, acreditar que alguns respingos da nova atuação americana não venham parar na América Latina. O primeiro sinal de uma ação mais presente no Brasil foi a abertura, em setembro, de uma divisão da CIA, no consulado americano em São Paulo, destinada a investigar a lavagem de dinheiro de grupos terroristas atuantes no continente. Para Maria Lígia Coelho Prado, professora de história da América Latina contemporânea na Universidade de São Paulo (USP), outras medidas propostas por Bush poderão repercutir no Brasil e nos demais países do continente. Principalmente determinações a respeito de segurança nos aeroportos e na caçada aos suspeitos de terrorismo.
Em alguns países latino-americanos há grupos terroristas ou paramilitares atuantes. É o caso das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), que há três décadas promovem ações de caráter terrorista dentro de um território que faz fronteira com o Brasil. “Embora a batalha de Bush seja contra os terroristas islâmicos, não há como negar a perspectiva de uma atuação mais firme no combate aos movimentos da América Latina”, afirma Maria Lígia.
É um exercício perigoso de futurologia, porém, antecipar qualquer prognóstico sobre o comportamento dos Estados Unidos nesta nova ordem mundial forçosamente inaugurada em 11 de setembro. O mais provável, no entanto, é que estejamos diante de um período de exceção que ocorrerá dentro e fora dos Estados Unidos e que, patrocinado pelos próprios americanos, abrirá mão, interna e externamente, de alguns valores que sempre estiveram presentes no discurso daquele país: liberdades políticas, proteção ao indivíduo, autodeterminação dos povos.
Embora atos terroristas sempre tenham ocorrido, o quadro atual, com a idéia de Estado-Nação enfraquecida diante da atuação de Estados corporativos ou religiosos, converge para essa maneira violenta de ação que deve marcar a política externa americana. Em Turbocapitalismo: Perdedores e Ganhadores na Economia Globalizada, o estrategista americano Edward Luttwak percebe que a mudança estrutural acelerada em muitas economias acaba reduzindo o controle democrático e a autonomia dos países no quadro global. Isso, segundo Luttwak, pode lacrar as portas para as liberdades individuais em todos os cantos do mundo. “As conseqüências humanas do turbocapitalismo são liberadoras e desorientadoras. A perda da autenticidade pessoal caiu sobre nós com força total”, afirma.
Talvez estejam aí, num mesmo e explosivo pacote, a pergunta e a resposta para o recrudescimento da atuação internacional americana e para as reações brutais do novo terro- rismo contra a nação mais poderosa do mundo. O curso da história mudou, ainda que não se possa antever com certeza sua direção. O certo é que a ordem mundial forjada com a derrocada da União Soviética e o fim da Guerra Fria, e com a vitória dos Estados Unidos na Guerra do Golfo (1991) – que durou quase uma década e foi marcada por um movimento de globalização dos capitais, dos produtos e das pessoas – acabou.