Assine SUPER por R$2,00/semana
Continua após publicidade

A guerra que já começou

Número de conflitos aumenta, árabes e ocidentais passam por sua maior crise em 50 anos. Bem vindo à 3ª Guerra Mundial.

Por SUPER
Atualizado em 3 jan 2020, 18h24 - Publicado em 31 ago 2006, 22h00

Aqui está a receita: para acabar com as guerras, só mesmo a própria guerra. Nada como uma boa dose dessa experiência traumática para o mundo aprender que a paz, afinal, é o melhor negócio. Bom, pelo menos era o que alguns dos nossos antepassados achavam quando estourou a 1a Guerra Mundial. Veio o conflito mais sangrento da história até então e, apenas 20 anos depois, estourava outra guerra, ainda mais arrasadora. O “remédio” se mostrou inócuo.

É assim desde o início dos tempos: basta as coisas se acalmarem um pouco para os países voltarem a resolver seus problemas na pancada. Em julho de 2006, o alerta vermelho voltou a acender. Os conflitos no Líbano dispararam uma reação em cadeia que ainda pode incendiar vários cantos do planeta. A popularidade do Ocidente entra em queda livre no mundo árabe, enquanto a de extremistas atinge níveis inéditos. A milícia fundamentalista Hezbollah já disputa a preferência do povo com a sunita Al Qaeda. Massas saíram às ruas do Egito e da Arábia Saudita em apoio ao Hezbollah, embora os governos de Cairo e Riad também sejam alvo de suicidas. O governo inglês diz que há mais de 20 células terroristas prontas para atuar em seu território. O presidente iraniano fala abertamente em varrer Israel do mapa.

Para completar, a Turquia já não esconde sua intenção de invadir o norte do Iraque para desmantelar bases de terroristas curdos. Afegãos acusam os paquistaneses de dar abrigo a membros do Talibã e os confrontos entre os dois lados são cada vez mais freqüentes. A Índia acusa o Paquistão por atentados e fala em retaliação – briga de cachorros grandes, com bombas atômicas no lugar de dentes. Será que o ciclo está fechando de novo? Estamos nos aproximando de um novo conflito global? Para encontrar a resposta, precisamos ver que o cenário de hoje é bem diferente daquele do século 20. Se antes os protagonistas das pelejas eram as superpotências, os novos atores às vezes nem chegam a ser nações, como a Al Qaeda. Outros são países capengas, tipo o Congo, que têm pouco controle sobre seu território e viram solo fértil para o terrorismo e a proliferação de armas (leia quadro ao lado).

O estilo de violência também mudou. A maior parte dos conflitos armados já não ocorre entre países, mas dentro deles. O front de batalha está migrando das fronteiras internacionais para dentro das cidades, em disputas geralmente acirradas por extremismo religioso. O conflito entre Israel e Hezbollah serve de exemplo, mas talvez seja só a parte mais visível de um fenômeno mais amplo: o crescimento do fanatismo em lugares onde antes as disputas eram apenas étnicas ou nacionalistas. E hoje o extremismo alimenta confrontos nas Filipinas, Indonésia, Chechênia, Bósnia, Sri Lanka, Argélia e China, para citar alguns exemplos.

Mais: nos últimos anos, grupos terroristas passaram a fazer parte de Estados. No Sudão, tomaram o poder via revolução. Na Palestina, o Hamas venceu pelas urnas. No Líbano, o Hezbollah arrebatou 10% das cadeiras do Parlamento em 2005. E seu líder, Hassan Nasrallah, está entre os políticos mais queridos do país.

Se a moda pega em outros lugares, quer dizer que teremos mais bombas pela frente? Pode ser, mas o fanatismo não é a única variável dessa equação. “As convicções que levam as pessoas à guerra podem ser seculares (esquerda, direita), nacionalistas (separatismo, expansionismo), culturais ou religiosas. Talvez o ponto central não seja um extremismo cego, mas o cálculo de que ‘provavelmente venceremos se escalarmos esse conflito à violência’”, diz o cientista político Peter Wallesteen, do Departamento de Pesquisas sobre Paz e Guerra da Universidade de Uppsala, Suécia.

Continua após a publicidade

Esse raciocínio tem dado bons frutos para o Hezbollah, cujo ibope cresce a cada civil morto no Líbano. Segundo muitos analistas, porém, quem mais tem se beneficiado com a crise é o Irã. Há 3 anos, ele emergiu como potência regional no Oriente Médio após a derrubada de Saddam Hussein no vizinho Iraque. Sua influência aumentou no ano passado, quando a Síria se retirou do Líbano cedendo a pressões internacionais, e dando espaço aos iranianos. O ex-agente da CIA Robert Baer deixou isso claro em agosto de 2006, ao revelar uma conversa que teve com um empresário sírio ligado ao presidente Bashar al-Assad. Baer lhe perguntou o que pensava sobre o Líbano. “Isso não é problema da Síria”, disse o informante. “Vocês nos tiraram de lá. Entregamos o Líbano para o Irã.”

Agora o governo de Teerã gera temor no Ocidente por seu programa nuclear, que pode colocar o país no clube das nações com armas atômicas nos próximos anos. Mas não é de hoje que ele vem mexendo seus peões. Nos anos 80, o aiatolá Khomeini ajudou a fundar o Hezbollah durante a ocupação israelense no sul do Líbano, e desde então vem financiando e armando o grupo via Síria. Em 1993, membros da Guarda Revolucionária iraniana estavam bem longe de casa, presenciando na Coréia do Norte o teste do míssil Nodong, que serviria de base para o Shahab-3, a nova estrela do arsenal iraniano. Hoje, a parceria continua: o Irã entra com o dinheiro; os norte-coreanos, com a tecnologia. Em 4 de julho passado, funcionários iranianos voltaram à capital Pyongyang para assistir ao lançamento de mísseis sobre o mar do Japão.

Assim, alguns analistas consideram que a própria crise no Líbano não se resume a um confronto entre Hezbollah e Israel, ou entre esse país e o Irã. Ela iria além: seria uma disputa entre EUA e Irã pelo controle do Oriente Médio (leia-se das maiores reservas mundiais de petróleo). Nesse contexto, Israel serviria como um braço armado dos americanos. E o Hezbollah, como um do Irã. “Esse grupo terrorista é o maior obstáculo aos planos de domínio dos EUA na região”, diz o jornalista iraniano Emadeddin Baghi. “Se a guerra continuasse, o Irã começaria a dar apoio ao Hezbollah por meio dos radicais do Iraque. Há 150 mil soldados americanos lá, e eles poderiam virar reféns.”

A crise no Líbano também mostrou o fortalecimento da frente contra a existência de Israel. O discurso é o mesmo dos líderes árabes nos anos 60, mas a inspiração é diferente. Em vez do nacionalismo puro e simples, ele vem mais do que nunca insuflado pela ideologia islamita – que pretende derrubar governos ocidentalizados e instaurar regimes que sigam uma interpretação extrema da sharia, a lei islâmica.

Mas, se o extremismo religioso e o apetite bélico movem os radicais de um lado, eles também alimentam os do outro. O presidente americano sempre justifica suas ofensivas militares citando o nome do Todo-Poderoso. Pesquisas recentes mostram que 2 em cada 5 americanos acreditam que Deus entregou Israel aos judeus. Sem falar que 42% dos filhos do Tio Sam concordam que a guerra é algo necessário sob certas condições, contra apenas 11% dos europeus.

Continua após a publicidade

No fim das contas, quem mais se beneficia da postura radical dos dois lados são líderes como o iraquiano Moqtada al-Sadr, que semanas atrás liderou a maior manifestação anti-EUA e Israel já feita, e no coração da ocupada Bagdá.

“Essa combinação de elementos inflamáveis coloca a maior ameaça à estabilidade global desde a crise dos mísseis em Cuba, em 1962”, disse o ex-embaixador americano na ONU Richard Holbrooke em um artigo no jornal The Washington Post. Naquela época, os EUA usaram um bloqueio naval e muita diplomacia para a URSS retirar seus mísseis nucleares da ilha de Fidel. Mas e agora?

Os 4 atos da guerra

Você pode achar a hipótese da 3a Guerra um disparate. Mas, quando as outras duas começaram, ninguém fazia idéia da dimensão que elas ganhariam. “Pensava-se que a 1a Guerra Mundial seria um conflito que duraria 3, no máximo 6 meses. Quando os primeiros líderes declararam guerra uns aos outros, não imaginavam que estavam acendendo o pavio do maior conflito internacional até então”, diz o historiador australiano Geoffrey Blainey no livro The Causes of War (“As Causas da Guerra”, inédito em português). O jornalista e escritor americano Edwin Black, especialista no assunto, aplica esse raciocínio aos nossos tempos: “Estamos nos aproximando da 3a Guerra. Mas, ao contrário das anteriores, esta não vai começar de repente. Não vai estourar às 6 h de 1o de setembro de 1939, como a 2ª. Tudo começou há décadas”.

Segundo ele, a primeira semente da pendenga atual foi lançada em 1920, quando as potências vencedoras da 1a Guerra lotearam o Oriente Médio para satisfazer interesses petroleiros. Até então, as tribos árabes locais viviam sob domínio dos turcos otomanos. Um personagem famoso da época foi Lawrence da Arábia, enviado pelos ingleses para ensinar guerrilha aos clãs árabes na luta contra os turcos. Com a vitória, os europeus criaram ali Estados árabes e puseram líderes para endossar as concessões.

A imposição desagradou ao mundo islâmico. Com a derrocada do poder turco, a vontade era reconstruir o império árabe de 1 000 anos antes, cuja influência se estendia da península Ibérica à fronteira com a China e que tinha peitado a Europa ao longo das cruzadas. Virar uma colônia do Ocidente? De jeito nenhum.

Continua após a publicidade

Tanto que em 1928 o egípcio Hassan al-Banna fundou o grupo Irmandade Muçulmana, que acusava os ocidentais de serem a fonte da decadência do islã. Banna organizou um exército terrorista e tentou tomar o poder no Egito, mas acabou enforcado pelo governo. Sua ideologia, no entanto, se propagou pelo mundo muçulmano e hoje sobrevive em grupos como Hamas, Al Qaeda e Hezbollah.

O terceiro ato dessa seqüência veio nos anos 40, quando a Inglaterra estava com uma batata quente nas mãos: conter os crescentes enfrentamentos entre árabes e judeus na Palestina. Ambos reivindicavam aquelas terras para a construção de seu lar nacional. Em 1947, os ingleses abriram mão da colônia e passaram a bola para a ONU, que votou pela partilha da Palestina em dois Estados, um árabe e um judeu. Mas os muçulmanos rejeitaram o plano, vendo nele outra imposição ocidental. E, em 1948, começava a primeira guerra entre árabes e israelenses.

Quando veio o cessar-fogo, no ano seguinte, o Estado de Israel controlava um território 20% maior que o estabelecido pelas Nações Unidas. O conflito expulsou milhares de palestinos de suas casas. E eles passaram a viver em campos de refugiados da ONU na Faixa de Gaza, Cisjordânia, Líbano e Síria. Era só a primeira das 6 guerras que os dois travaram.

O colonialismo europeu e a criação de Israel ainda provocam ressentimentos e são usados por líderes extremistas para promover suas idéias. Em entrevista à imprensa americana em julho de 2006, o primeiro-ministro palestino, Ismael Haniyeh, disse que “o importante é resolver as questões essenciais de 1948 [criação de Israel] antes das secundárias, de 1967 [quando Israel ocupou outros territórios árabes durante um dos maiores quebra-paus da região, a Guerra dos 6 Dias]”. Esse raciocínio torna mais difícil a política de trocar “territórios por paz”, como Israel fez com o Egito ao devolver a região do Sinai, ocupada nos anos 60.

O quarto ato desse entrevero global começou em 1979 com a Revolução Islâmica no Irã, que derrubou o líder pró-americano Reza Pahlevi e instaurou uma teocracia disposta a exportar seu modelo ao mundo islâmico. Já no ano seguinte, durante a guerra Irã-Iraque, ela inaugurou o uso de suicidas em larga escala – repetido depois em lugares como Nova York, Bali, Madri, Londres e Bagdá (nesse caso, nas lutas entre sunitas e xiitas).

Continua após a publicidade

O conflito no Líbano é o mais novo elo dessa corrente. Depois de resistir ao Exército israelense com uma milícia formada por algumas centenas de homens, Hassan Nasrallah virou herói. “O líder do Hezbollah ganhou admiração em todo o mundo árabe e islâmico, inclusive entre inimigos”, diz o jordaniano de origem palestina Samer Abu-Taha, traduzindo o clima na região. “Seus combatentes fizeram o que os exércitos árabes não conseguiram em 50 anos: em 32 dias, os israelenses não avançaram mais do que poucos quilômetros da fronteira.”

O contra-ataque massivo de Israel contra alvos civis, que deixaram 806 libaneses mortos (contra 157 israelenses), e centenas de milhares de refugiados, despertou a ira mesmo entre os mais alinhados com o Ocidente. “Éramos o único povo árabe que realmente acreditava no programa democrático dos EUA”, afirmou Osama Safa, presidente do Centro Libanês de Estudos Políticos e tradicional crítico do Hezbollah, à revista britânica The Economist. “Agora fomos jogados contra um muro a 200 km/h.”

Do ponto de vista de quem vive em Israel, no entanto, o contra-ataque era uma questão de sobrevivência. “Acho que não há ninguém aqui que não tenha pesadelos com a guerra. Todos querem a paz em suas casas”, diz o brasileiro Daniel Waisberg, que se mudou para o país recentemente. “Acho até que o Hezbollah quer a paz, mas só depois que Israel for apagado do mapa. E, se alguém quer destruir Israel, não vamos esperar sentados até que algum intelectual pacifista o convença de que a paz é boa.”

Israel, diga-se, não é o único alvo dessa onda. “Que Deus inflija sobre as crianças da Jordânia, Egito e Arábia Saudita o que Ele impôs sobre as crianças do Líbano”, dizia o cartaz de um manifestante em Beirute. Era um recado árabe aos países aliados dos americanos na região.

“A Europa e os EUA têm pavor de que uma eventual vitória do Hezbollah se reflita no mundo inteiro. Eles sabem que podem ser os próximos alvos”, diz o jornalista israelense Aaron Klein, especialista em assuntos militares e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém.

Continua após a publicidade

Edwin Black concorda: “Não é nossa política no Oriente Médio que eles abominam, mas nossa presença. O desfecho desse confronto será apocalíptico, como diz o próprio presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad.”

Diz e escreve. Em agosto, o iraniano postou uma pesquisa em seu blog (sim, até ele tem um blog, o https://www.ahmadinejad.ir). Mahmoud perguntava: “A intenção de Israel e dos EUA ao atacar o Líbano é detonar outra guerra mundial?” Até o fechamento desta edição o “não” ganhava com 71% dos 565 mil votos.

O inimigo invisível

Se estamos ou não à beira de um confronto global, o certo é que os embates deste início de século já deixaram várias lições. A primeira é a falência da guerra virtual no estilo da de Kosovo, na ex-Iugoslávia, onde pilotos da Otan despejavam bombas seguindo decisões tomadas por videoconferência. Na euforia dos anos 90, muita gente chegou a proclamar o fim das vítimas civis. O presidente americano Bill Clinton falava em operações cirúrgicas com “morte zero”.

Pois bem-vindos à realidade. Os americanos ensaiaram uma guerra virtual no golfo Pérsico, mas agora estão afundando o pé no lamaçal do Iraque. Os israelenses começaram pelos ares a contra-ofensiva ao Hezbollah, mas joysticks não serviram para combater a guerrilha. Para isso, é preciso botas no chão.

Quanto ao “programa morte zero”, não poderia haver fracasso maior. Até 1950, metade dos mortos em guerras eram civis. Nos anos 80, a proporção já tinha saltado para 85%. No final dos 90, pelo menos 95% dos mortos eram pessoas comuns. Seguindo essa tendência, as vítimas civis também foram muitas no Líbano – até porque os guerreiros do Hezbollah não pertencem a um Exército: são estudantes, dentistas, engenheiros. E não estão em campos de batalha: mantêm seus QGs em prédios de apartamentos e imóveis comerciais. O xeque Ahmed Murad, porta-voz da organização, se apresentou num hospital de Tiro para vociferar contra Israel vestindo turbante e túnica. Depois da coletiva, saiu com 3 guarda-costas e logo reapareceu na rua com calça e camiseta. Os israelenses chamam essa estratégia de “desaparição”.

Essa é a novidade: enquanto a guerra tradicional apontava para um adversário com território definido e força concentrada, as ameaças agora são difusas. E às vezes chegam ao absurdo. Em alguns países da África, por exemplo, a linha entre militar e guerrilheiro já deixou de existir. “Em Serra Leoa, existem os chamados ‘sobel’ (soldier by day, rebel by night), ou seja, os que de dia fazem o papel de soldados do exército oficial e, de noite, assumem o papel de rebeldes”, diz o sociólogo alemão Peter Waldmann no livro Sociedades em Guerra Civil.

“A globalização contribuiu para dissolver as distinções entre guerra e crime organizado”, diz Mary Kaldor, diretora do Centro de Estudos de Governança Global da London School of Economics e autora de As Novas Guerras. Hoje é também cada vez mais freqüente a figura do warlord, ou “senhor da guerra”, uma alusão a militares como os que instauraram feudos na China dos anos 20. Os warlords modernos entram onde há vazios de poder e precisam da guerra para se perpetuar, usando crianças em exércitos financiados por comércio de armas, petróleo e diamantes, como em Angola. O conflito no Congo, que acontece nesse molde, é o que mais matou desde a 2a Guerra, com pelo menos 4 milhões de mortos.

O Iraque também é palco de um fenômeno crescente: a privatização da guerra. Segundo o Instituto Internacional de Pesquisas da Paz de Estocolmo (Sipri), a terceirização da violência mais do que dobrou nos últimos 15 anos e movimentou 100 milhões de dólares em 2004. “Há mais de 100 companhias realizando serviços ligados a conflitos armados, como treinamento e logística em zonas de combate”, diz a pesquisadora Caroline Holmsqvist, do Sipri. E tudo isso acaba invertendo a ordem das coisas: as nações ficam mais vulneráveis à ação de grupos independentes do que o contrário.

Tanto que, para os EUA, o termo “guerra contra o terrorismo” não é mera retórica. No livro Contra Todos os Inimigos, Richard Clarke, ex-chefe do Conselho Nacional de Segurança americano, chega a traçar um paralelo entre ela e a Guerra Fria, dizendo que ambas são conflitos mundiais, com embates regionais, células secretas e ideologias em disputa.

“A Al Qaeda declarou guerra aos EUA. Podemos classificá-la como um Exército? Não, mas ela tem membros, liderança, estratégia e objetivos definidos”, diz o especialista em relações internacionais Francisco Doratioto, da Universidade Católica de Brasília. O desafio agora é guerrear com um inimigo invisível, cujos soldados nem esperam voltar vivos.

Segundo analistas, esse conflito nas sombras será longo e sem vitórias decisivas. Não haverá lugar livre de batalha nessa virtual 3ª Guerra. Para William Wechsler, ex-diretor do Conselho Nacional de Segurança dos EUA, o melhor jeito de derrotar a Al Qaeda é bloqueando suas transações financeiras. “Ela não se abastece só dos 300 milhões de dólares de Bin Laden. Tem outras grandes fontes de recursos: investimentos legais em setores como agricultura e construção, cultivo de drogas e doações – algumas de simpatizantes da causa e outras de pessoas que dão dinheiro a ongs de caridade sem saber o real destino dos fundos. Cortando essas fontes, vamos estrangular a hidra”, diz ele num artigo da coletânea Why did it Happen? (“Por que Isso Aconteceu?”, inédito em português).

Polícia global

Afinal, será que algum dia poderemos viver sem guerras? Em geral, existem duas frentes que tentam responder a essa questão: a dos realistas e a dos idealistas. Os primeiros dizem que a guerra sempre vai existir porque os países necessitam dela para garantir sua sobrevivência, já que não há nenhum governo acima deles para cuidar disso. Sem recorrer à força, ficariam à mercê dos demais. É uma posição pessimista: ela diz que os conflitos sempre existiram, continuarão existindo e, o que é pior, não há muito que possamos fazer. “Poderíamos pensar em acabar com a guerra, mas teríamos que reinventar a forma de organização da sociedade humana. É possível viver sem guerra tanto quanto é possível viver sem água, desde que você invente uma outra maneira de hidratar os organismos vivos”, diz o especialista em relações internacionais José Augusto Guilhon.

Já os idealistas afirmam que, tudo bem, não conseguimos acabar com as guerras hoje, mas um dia elas vão terminar de vez graças ao progresso da sociedade e à cooperação entre os países. Com mais leis e regras em comum, os interesses nacionais tenderão a convergir e reduzirão os atritos que causam as guerras.

Mas o excesso de idealismo não tem ajudado. No início do século 20 muitos achavam que a 1a Guerra Mundial tinha sido um mal-entendido, pois ninguém a queria, e que chegara o momento da paz definitiva. A tarefa ficou a cargo da Liga das Nações, que, capitaneada pelos EUA, conduziria os países ao novo mundo remando sobre a liberdade, a economia de mercado e a democracia. Quando a Alemanha começou a agitar as águas nos anos 30, os líderes ocidentais pensaram que bastaria fazer algumas concessões aos nazistas, como a Tchecoslováquia, que eles responderiam de bom grado. “O desejo de paz era tão grande que, em lugar de conter Hitler, os europeus buscaram a conciliação. Com isso, ele pôde se fortalecer e provocar a 2a Guerra Mundial”, diz Doratioto. Em 1945, a ONU substituiu a Liga com uma novidade: a decisão sobre o uso da força em questões ligadas à segurança internacional, que antes requeria unanimidade, ficou restrita aos 15 membros do Conselho de Segurança (CS). Entre eles, os 5 permanentes (EUA, Inglaterra, França, URSS e China, vencedores da guerra) tinham poder de veto. Durante a Guerra Fria, porém, o CS ficou engessado pela disputa entre americanos e soviéticos. A queda da URSS não melhorou sua eficiência, pois os EUA passaram a concentrar tanto poder militar, econômico e político que o mundo se tornou quase unipolar. “Mesmo se a França ou a Rússia vetarem uma nova ação militar, os EUA dirão: tudo bem, nós vamos do mesmo jeito”, diz o cientista político americano Kenneth Waltz, da Universidade Columbia. Essa sucessão de equilíbrios e desequilíbrios de poder se repete desde a criação dos Estados porque não há nenhum governo acima deles – o que analistas chamam de “anarquia internacional”. No máximo, o que os Estados conseguem são tratados de paz ou regimes contra armas químicas ou nucleares. Só que essas resoluções não têm poder de lei, então podem ser violadas sem uma punição efetiva.

Para o cientista cognitivo Steven Pinker, da Universidade Harvard, EUA, a lógica das relações entre os países é igual à dos traficantes de drogas que disputam pontos-de-venda, já que nenhum dos dois pode recorrer à polícia para se proteger dos rivais. Nos dois casos, o jeito é se armar até os dentes e esperar pelo pior. “Em um meio hostil, pessoas e países têm de apregoar sua disposição para retaliar, e isso significa manter a reputação de vingar qualquer deslize, por menor que seja”, diz Pinker no livro Tábula Rasa. Moral da história: “Enquanto não houver uma autoridade mundial dotada de meios de coerção próprios para garantir a eficácia da lei internacional, as guerras continuarão”, diz o coronel Geraldo Cavagnari, do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp. Então, imagine que houvesse uma polícia global, com monopólio sobre o uso da força. Bastaria discar 190 e as nações agressoras seriam “presas”. Mas, pensando bem, será que ela funcionaria? Seria à prova de corrupção, por exemplo? Certa vez, o físico Albert Einstein refletiu sobre a possibilidade de criar um órgão para arbitrar os conflitos entre as nações. Mas reconheceu que, em última instância, esse tribunal seria uma instituição humana. Uma instituição tão vulnerável às nossas falhas quanto qualquer outra. E você? O que acha?

Celeiros do terror

Até os anos 80, países debilitados como Somália e Serra Leoa eram sinônimos de fome e doença. Desde o fim da Guerra Fria, porém, a coisa ficou ainda mais séria. Muitos deles viraram fontes de terroristas, crime organizado e genocídios. “O 11 de Setembro deixou claro um novo problema. O Afeganistão era um Estado tão fraco que podia ser seqüestrado por um ator não estatal, a Al Qaeda”, diz o cientista político americano Francis Fukuyama, da Universidade Johns Hopkins, EUA. No jargão político, eles são chamados de failed states (Estados fracassados) ou failing states (Estados em vias de fracassar). Em geral, não têm pleno controle sobre seu território nem o monopólio do uso da força. Pesquisadores sugerem que o fim da Guerra Fria abriu terreno para uma erupção de conflitos étnicos, religiosos e sociais em países que antes estavam engessados pelas superpotências. O resultado foi sua fragmentação, como aconteceu na Iugoslávia. O fato é que os failed states andam tirando o sono dos países ricos. A Estratégia de Segurança Nacional dos EUA conclui que os americanos sofrem menos ameaças dos países fortes que dos em vias de fracassar. Organizações até criaram índices de Estados assim. Um deles é o Failed States Index, elaborado pelo instituto Fund for Peace. O Sudão lidera, seguido por Congo, Costa do Marfim, Iraque e Zimbábue. O Haiti ocupa o 8o lugar e é o único latino-americano entre os 10 primeiros.

War III

O planeta gastou 1,11 trilhão de dólares com despesas militares em 2005. Mais de 80% dessa bolada saiu dos países que estão neste mapa – só os EUA são responsáveis por quase metade dos gastos bélicos mundiais. Veja quem é quem no jogo da guerra.

EUA

• Gastos militares em 2005: 507 bilhões de dólares.

Eles gastam 45% de todo o dinheiro aplicado em armas, equipamentos e soldados no mundo. E podem mobilizar tropas em qualquer lugar do globo: há 702 bases militares americanas em 132 países. O que não falta é estrela no arsenal deles: são 2 506 caças de 1ª linha, 20 bombardeiros “invisíveis” B-2, de 2,1 bilhões de dólares cada… Mas o que deixa clara a supremacia ianque é o poder atômico. Das 128 mil bombas atômicas já fabricadas desde 1945, 55% foram construídas nos EUA.

Otan

• Gastos militares em 2005: 271 bilhões de dólares.

EUA, Canadá mais 24 países europeus formam a maior aliança militar da história: a Organização do Tratado do Atlântico Norte, criada em 1949. O 5º artigo do tal tratado que batiza a aliança deixa claro seu propósito: “Qualquer ataque contra um país membro será considerado uma agressão a todos os outros”. Reino Unido e França (os países nucleares da Europa) mais Alemanha e Itália respondem por 67% do orçamento militar da Otan, quando tiramos os EUA da conta, claro.

Israel

• Gastos militares em 2005: 10 bilhões de dólares.

O país é do tamanho de Sergipe, mas tem tantos veículos de guerra quanto Inglaterra e Alemanha juntas. O trunfo ali é a tecnologia: seus tanques Merkava, de fabricação própria, estão entre os melhores do mundo. Sem falar que desenvolve, com ajuda dos EUA, um sistema de defesa anti-mísseis à base de raios laser, que deve estrear em 2007. O material humano também é de elite. Os homens cumprem 3 anos de serviço militar; as mulheres (também obrigadas a servir) ficam 21 meses.

“Eixo do mal”

• Gastos militares em 2005: 16 bilhões de dólares.

Irã, Líbia, Síria e Coréia do Norte são os países mais fortes do grupo que os EUA chamam de “eixo do mal” – que também inclui os militarmente irrelevantes Cuba e Iraque. Juntos, os 4 formariam o 2º maior contingente do mundo. A Coréia do Norte é a potência ali: tem 1 milhão de homens, bombas atômicas e, entre os países com Exército grande, é o que mais compromete seu orçamento com gastos militares: 12% do PIB, contra 7,7% de Israel, o 2º colocado, e 4% dos EUA.

China

• Gastos militares em 2005: 45 bilhões de dólares.

Apesar de ter o maior Exército do mundo em número de homens, o aparato militar chinês é defasado. A Força Aérea, por exemplo, se sustenta em modelos de fabricação própria que não passam de clones de aviões jurássicos da ex-URSS. Mas o governo de Pequim quer mudar essa história logo: nesta década, o país aumentou seu orçamento militar em 12,5% ao ano – 3% acima do crescimento anual de seu PIB. Na agenda, consta aumentar o número de mísseis nucleares.

Rússia

• Gastos militares em 2005: 30 bilhões de dólares.

No auge da Guerra Fria, Moscou gastava pelos menos 300 bilhões de dólares (em valores de hoje) para manter o status de superpotência. Com o fim da URSS, em 1991, a torneira dos militares secou. Tanto que, de suas quase 6 mil bombas atômicas, “só” 3 500 são de grande porte, capazes de arrasar cidades inteiras (contra mais de 5 mil dos EUA) . Em 2006, o país anunciou que deve gastar cerca de 200 bilhões de dólares na compra de novos equipamentos até o fim da década.

Índia

• Gastos militares em 2005: 22 bilhões de dólares.

Tem duas vezes mais veículos de combate e o mesmo número de bombas nucleares que o inimigo Paquistão, com quem disputa o território da Caxemira, no noroeste da Índia. E conta com o 3º maior contingente do mundo: existe tanta gente nas Forças Armadas de lá quanto nas da América Latina inteira (onde o Brasil lidera, com cerca de 300 mil homens e orçamento de 10 bilhões de dólares). Também é o 2º maior fornecedor de soldados para as forças de paz da ONU, atrás dos EUA.

Coréia do Sul

• Gastos militares em 2005: 21 bilhões de dólares.

A Guerra da Coréia nunca acabou. Apesar do armistício de 1953, a tensão entre a do sul e a vizinha comunista do norte é constante. Resultado: numa área pouco maior que a do Paraná, ficam dois dos Exércitos mais poderosos do mundo. A vantagem tecnológica está na do sul. Além de ter caças americanos, eles contam com a poderosa indústria local: a montadora Hyundai faz tanques; a Daewoo e a Asia Motors, blindados; e a Samsung fabrica metralhadoras.

Guerra fria

Por 4 décadas, o mundo acabava toda semana. A paranóia começou no final dos anos 40, quando americanos e soviéticos iniciaram uma disputa econômica, geopolítica e ideológica: comunismo x capitalismo. Para que ninguém precisasse baixar a cabeça para o outro lado, era preciso manter a o poder de fogo pau a pau. Resultado: mais de 30 mil bombas nucleares de cada lado do planeta. Com tanto poder, eles dividiram o mundo em áreas de influência. Europa Ocidental e Américas orbitavam ao redor de Washington. Europa Oriental, Cuba e parte da Ásia batiam continência para Moscou. Os gigantes nunca entravam em confronto direto. Mas esse desastre chegou perto uma vez. Foi em 1962, quando os soviéticos instalaram mísseis nucleares em Cuba, a meros 150 quilômetros dos EUA. Os presidentes John Kennedy e Nikita Kruschev trocaram mensagens tensas, até que o soviético decidiu tirar os mísseis de lá. Em retribuição, Kennedy prometeu nunca invadir a ilha comunista. E o mundo, veja só, não acabou. Parece contraditório, mas isso não aconteceu justamente porque as duas superpotências se armaram demais. A abundância atômica dos dois lados fez com que nenhum deles se metesse a besta de dar o primeiro tiro. O câncer da Guerra Fria acabou extirpado com o fim da União Soviética, em 1991. Mas o das bombas atômicas, você sabe, não teve cura: o planeta ainda carrega mais ou menos 12 500 ogivas nucleares em suas entranhas.

Para saber mais

https://www.sipri.org – Instituto dedicado a pesquisas sobre geopolítica.

https://www.globalsecurity.org – Organização que compila dados sobre Forças Armadas.

https://www.fundforpeace.org – Traz o Failed States Index, ranking de nações fracassadas.

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 12,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.