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A mulher medieval

Rainhas, poetisas, filósofas, freiras: havia muito mais que ser uma donzela salva de uma torre.

Por Fábio Marton
Atualizado em 7 Maio 2020, 17h56 - Publicado em 25 mar 2020, 12h31

A Idade Média veio de uma cultura patriarcal e continuou patriarcal, não há o que discutir. Como as classes sociais, os papéis das mulheres eram vistos rigidamente, biblicamente determinados, sempre citadas as ideias do apóstolo Paulo, em I Coríntios 11:3, que não deixam muito espaço para a interpretação: “Mas quero que saibais que Cristo é a cabeça de todo o homem, e o homem a cabeça da mulher; e Deus a cabeça de Cristo”.

Mas a relação não é simplesmente a de vítimas passivas sofrendo de opressão imutável. As ideias medievais sobre as mulheres têm um contrapeso no papel da própria Virgem Maria, a figura terrena mais importante de toda a cristandade então, cujo culto foi crescendo ao longo do período. Com um limite expressado pelo papa Inocêncio 3º em 1210: “Não obstante o quanto a mais abençoada Virgem Maria esteja acima, e é mais ilustre que todos os apóstolos juntos, não foi a ela, mas a eles, que o Senhor confiou as chaves do Reino dos Céus”. Santidade sim, autoridade, nunca.

Na ponta oposta estava outra figura bíblica: Eva, a tentadora, a que aceitou a maçã da Serpente e a entregou a Adão, causando a queda da humanidade. Santo Agostinho, ainda no século 5, assim se expressava: “Não será por que ele [Adão] não podia acreditar [na Serpente] que a mulher foi apresentada [ao fruto proibido]; ela que tinha pouca inteligência e talvez vivesse de acordo com o senso corporal e não de acordo com o senso da mente?”.

Ao fim da Idade Média, o infame Malleus Maleficarum, o guia de caçar bruxas, mostrava como a ideia só havia se reforçado: “Apesar do Diabo ter tentado Eva a pecar, foi Eva que seduziu Adão. O pecado de Eva não teria trazido morte para nosso corpo e alma se o pecado não tivesse sido transmitido depois a Adão, sendo tentado por Eva, não o Diabo; portanto ela é mais amarga que a morte”. A compreensão dos homens medievais sobre as mulheres era determinada por essa dualidade: imaculada e assexuada como a Virgem, ou uma tentadora sexualizada como Eva.

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Flora – Deusa das Flores, 1403, no manuscrito De Claris Mulieribus, (Mulheres Famosas), por Giovanni Boccaccio. (Print Collector/Getty Images)

Saída pela clausura

No começo da Idade Média, mulheres sequer respondiam juridicamente. Era o marido que podia ser julgado por falhas da esposa. A partir do ano 1000, elas começam a aparecer como rés em processos penais, sem uma decisão formal, mas uma mudança de jurisprudência. Estupro também era inicialmente considerado uma ofensa contra o marido ou o pai, com leis na Dinamarca, em 1170, sendo as primeiras a reconhecer um crime contra a mulher. Em geral, por todo o período, havia uma enorme desconfiança de que a vítima havia “tentado” o estuprador.

Mas a família medieval não era uma família dos anos 1950. Mulheres trabalhavam em ofícios externos, num esquema de dupla jornada. Além de cuidar dos filhos, fazer roupas, começando pelo tear, e até cerveja – ofício tido por feminino, como uma forma de cozinha, até o século 15 –, camponesas tinham que ajudar na colheita e mulheres e filhas de artesãos e comerciantes urbanos ajudavam no trabalho ou na loja, servindo em estalagens e tavernas. Quando o marido morria, elas herdavam o negócio.

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Na nobreza, para a qual qualquer trabalho que não fosse intelectual ou militar era visto como inferior, as mulheres viviam mais ou menos num ócio confinado, e isso era visto como símbolo de status. Mas havia uma saída dentro do “sistema”: o convento. Após o estabelecimento da vida monástica católica, antes da queda de Roma, no século 5, era a opção a quem quisesse se dedicar a estudos (e, obviamente, oração), escapando do casamento.

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Mulheres nobres caçando em iluminura de Robinet Testard, século 15. (Hulton Archive/Getty Images)

E era uma saída considerável, que inclusive podia levar a poder e influência. Santa Hilda de Whitby (614-680) se tornaria uma das figuras mais importantes da cristianização da Grã-Bretanha, ao fundar a Abadia de Whitby e presidir, como abadessa, sobre homens e mulheres. Sob ela, o Sínodo de Whitby decidiu que o reino da Nortúmbria, futura Inglaterra, adotaria os ritos romanos, e não celtas, reintegrando o país aos costumes do continente.

Santa Hildegarda de Bingen (1098-1179) foi uma polímata que se dedicou a música, ciências naturais, medicina, filosofia e teologia, a ponto de ser apelidada de “Sibila [oráculo] do Reno”. Santa Catarina de Siena (1347-1380) influenciou a teologia católica por seu livro Diálogo da Divina Providência, que tratava da união do humano ao divino pelo ascetismo – ela era conhecida por sobreviver ingerindo apenas uma hóstia por dia. As duas, junto com as pós-medievais Santa Teresa de Ávila (1515-1582) e Teresa de Lisieux (1873-1897), são as únicas mulheres a figurar entre os Doutores da Igreja, a lista oficial dos maiores teólogos católicos.

Às vezes, o convento liberava mesmo sendo uma imposição. A freira francesa conhecida simplesmente como Héloïse (1100-1164), forçada à vida religiosa, influenciara muitas escritoras pela história por sua correspondência com seu ex-amante, também obrigado a ser monge, Abélard, com quem havia tido uma relação escandalosa e um filho fora do casamento. Entre as opiniões da freira, estava que casamento, se não for amor, como o que ela própria havia tido, é simplesmente “prostituição por contrato”.

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COMO UMA SANTA – A primeira coisa a se entender sobre a guerreira é que ela foi uma figura intrinsecamente religiosa. Ela foi aceita enquanto santa e a guerra foi o veículo para sua santidade. A camponesa de 17 anos vestida de homem foi levada à corte do Delfim (herdeiro do trono) Carlos 7º da França, em 1429, pedindo a ir para o campo de batalha, após afirmar ter tido visões de São Miguel, Santa Margarida e Santa Catarina, dizendo para expulsar os ingleses do país. Um minucioso exame de sua vida foi ordenado e concluiu que era uma cristã ilibada, provavelmente sincera. Diante disso, o rei corria risco de perder a graça divina se não a testasse. Assim, Carlos deu a ela uma armadura e a enviou para a frente de combate com uma bandeira. Essa seria sua “arma”. Por seu próprio testemunho, Joana não matou ninguém, apenas motivou e deu conselhos. (duncan1890/Getty Images)

Poder secular

Rainhas com poder real – e não consortes, esposas do poder – eram raras, mas as que existiam podiam ser decisivas. A lei que permitia mulheres governarem variava de país a país. Nenhum, exceto o reino basco de Navarra, adotava a primogenitura absoluta, de que a filha ou filho mais velho assume, independente do gênero. A maioria tentava coroar primeiro os filhos homens e, apenas na ausência destes, as filhas. Outros preferiam passar o poder a um irmão do rei, ou sobrinho ou parente mais distante ainda. Muitos casos eram nebulosos e acabavam em confronto, como Beatriz de Portugal, que chegou a ser reconhecida por alguns meses em 1383, mas perdeu o trono para um tio.

No caso mais extremo, em países que seguiam normas derivadas da Lei Sálica da época do rei Franco Clóvis (466-511), não só uma mulher nunca poderia ser feita rainha, como alguém sequer podia clamar um trono por parte de mãe (isto é, por ser filho de uma filha do rei). Mas, mesmo nesses, rainhas podiam acabar governando como regentes, quando se tornavam viúvas, em nome de seus filhos menores de idade.

Portugal teve uma rainha antes de ser reino. Teresa de Leão (1080-1130) era filha ilegítima do rei Afonso 6º de Leão e Castela e herdou dele o título de Condessa de Portucale, poder passado ao marido, Henrique de Borgonha, em seu casamento, em 1093. Com a morte desse, ela assumiu o poder do condado em 1112 e, em 1116, seria reconhecida como rainha pelo papa Pascal 2º. Seu período foi de guerra: ela batalhou com a também rainha Urraca, de Leão, Castela e Galícia – que, por sua vez, se declarava Imperatriz de Toda a Espanha (a Península Ibérica).

Em 1121, a rainha portuguesa acabou derrotada e forçada a aceitar o status de vassala dos reinos espanhóis. Mas não seria o fim da violência: em 1128, Teresa foi deposta pelo próprio filho, Afonso. A causa era um romance dela com o conde Fernando Pérez de Traba, da Galícia, que a havia apoiado contra Urraca e, temiam os nobres portugueses, dominaria o país. Afonso seria considerado oficialmente o primeiro rei de Portugal – mas vários historiadores preferem conceder o título a Teresa.

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A Polônia também teve um evento fundador com uma rainha. Em meio a uma crise de sucessão, em 1384, os nobres poloneses apoiaram a ainda criança Edviges (1373-1399) como “rei” da Polônia – a palavra masculina foi escolhida para não deixar dúvidas de seu poder. Pouco depois, uma jogada realmente inusitada: ela se casaria com o rei pagão Jogalia, da Lituânia, que se converteria imediatamente, encerrando séculos de guerras religiosas. A união dinástica dos dois países (reinos com a mesma família real, administrados separadamente) levaria à Polônia-Lituânia, maior potência do Leste Europeu até o século 17. País do astrônomo Copérnico (1473-1543), que provou que a Terra gira em torno do Sol.

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Semíramis, Rainha da Assíria, semimitológica conquistadora do Oriente Médio no século 7 a.C., em iluminura de 1403. (Print Collector/Getty Images)

Mesmo quando não tinham poder formal, as rainhas ainda poderiam deter enorme influência. Leonor da Aquitânia (1122-1204) foi rainha consorte tanto da França (1137-1152) quanto da Inglaterra (1154-1189). Como rainha da França, participou da Segunda Cruzada. Perderia o trono ao ter seu casamento anulado por consanguinidade. Em verdade, um pretexto aceito pelas duas partes, porque o casal se odiava. Casada com Henrique 3º da Inglaterra, teria oito filhos, inclusive o famoso Ricardo Coração de Leão. Acabaria presa por 16 anos, entre 1173 e 1189, após incentivar seus filhos a tentar tomar o trono do pai, numa guerra civil de 18 meses, na qual milhares padeceram. Os filhos foram perdoados.

Quando Henrique morreu, Leonor saiu da prisão para assumir o trono da Inglaterra – regendo em nome do filho Ricardo Coração de Leão, enquanto ele atuava na Terceira Cruzada (1189-1192). O efeito mais duradouro das ações da rainha Leonor é na cultura: alguns dizem que ela é responsável pela invenção do amor (isto é, o conceito atual de amor, intenso e sexualizado). Por toda sua vida, atuou como patrona das artes, principalmente música, poesia e literatura. Nos anos antes da prisão, entre 1168 e 1173, sua corte instalada em Poitiers, França, ganharia o apelido de Corte do Amor – onde, provavelmente lenda, o amor era livre e Leonor e suas filhas julgavam pessoalmente disputas entre amantes.

Os artistas patrocinados por Leonor espalharam uma ideia que vinha de antes, mas que teve um impulso decisivo então: o amor cortês, idealizado, sexual, geralmente impossível, típico de romances de cavalaria. Que desembocou no que a gente chama hoje de amor romântico, visto como o ideal. Até antes, atração sexual era mais ou menos (mal)vista como uma coisa iníqua e separada do amor no casamento.

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Mulheres vendendo pão e manteiga no manuscrito Tacuinum Sanitatis, tradução de um trabalho árabe do século 11. (DeAgostini/Getty Images)

Enquanto isso, nas cidades, a nascente classe da burguesia, vinda de artesãos cada vez mais ricos, passava por idas e vindas. Alguns ofícios, como tecelagem e cervejaria, eram vistos como tipicamente femininos e tinham guildas femininas. As masculinas aceitavam as viúvas de seus membros, que podiam subir até a posição de mestres no ofício. Assim, elas passaram a ocupar algumas profissões que ainda hoje são popularmente vistas como masculinas, como a de açougueiro. A reação dos homens, a partir do século 15, foi de começar a barrá-las das guildas.

Dessa época são os escritos de uma grande precursora do feminismo: Cristina de Pisano (1363-1430). Filha de um alquimista veneziano, teve uma educação incomum. Ao perder seu marido, já com três filhas, em 1390, acabou forçada a achar um outro meio de vida: a literatura.

Em seu Tesouro da Cidade das Mulheres, Cristina começa comentando como passou a se sentir deprimida, uma aberração da natureza, ao ler um texto de um famoso da época falando das mulheres. Ela recebe então uma visita das três virtudes cristãs: Fé, Esperança e Amor. As virtudes a convidam a construir a Cidade das Mulheres, um reduto para abrigar as almas das mulheres virtuosas da história, e Cristina recebe uma nova virtude que irá acompanhá-la: a Razão.

Ao longo dos três volumes, a escritora comenta sobre a vida de mais de 150 mulheres da história, da mitologia e algumas contemporâneas vivas. Várias são figuras celebradas, como a Virgem Maria, a heroína bíblica Judite e diversas santas. Também a poetisa Safo de Lesbos, cujos versos dariam origem à expressão “lésbica”. E, subversivamente, várias vilãs nas histórias dos homens, como Medusa, as amazonas e a esposa de Júpiter (Zeus), Juno.

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