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A nova cabeça do Islã

As idéias de Tariq Ramadan, o mais badalado pensador islâmico da atualidade (só não peça que ele fale sobre terrorismo)

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h20 - Publicado em 31 jul 2007, 22h00

Eduardo Szklarz

Eu sabia que seria uma entrevista tensa. Do outro lado estava não apenas o mais comentado intelectual islâmico da atualidade, mas também um dos mais polêmicos. Apontado como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista Time, Tariq Ramadan divide os críticos. Uns dizem que ele é a voz do islã moderado. Outros, que ele adota um discurso raivoso quando está entre radicais. Ele também é neto de Hassan al Banna, fundador da Irmandade Muçulmana, berço de organizações fundamentalistas. “Você falou que a entrevista seria sobre o Profeta e vem agora com esses assuntos”, disse ele, incomodado com minhas perguntas. Ele queria falar sobre seu novo livro, uma elogiada biografia de Maomé, sem tradução no Brasil. Mas eu havia avisado que gostaria de debater temas relacionados ao islã – dos imigrantes na Europa ao sucesso do Hamas – e os motivos que levaram os EUA a cancelarem o visto que o autorizava a dar aulas na Universidade Notre Dame. “Estou farto de jornalistas repetindo falsidades sobre mim.”

No fim, a tensão se desfez. Falar da sua paixão pela seleção brasileira ajudou. O que foi bom: doutor em estudos árabes e islâmicos pela Universidade de Genebra, pesquisador da Faculdade St. Antony’s, na Inglaterra, e da Universidade Doshisha, no Japão, Ramadan tem muito a dizer sobre os dias que vivemos.

Quem foi Maomé?

Ao contrário da figura de Jesus na tradição cristã, Maomé foi apenas um ser humano. Ele recebia revelações divinas, mas, na hora de tomar as decisões, podia estar certo ou errado. Uma vez, um homem se aproximou dele durante a preparação de uma batalha e perguntou: “Estamos neste lugar porque assim lhe foi revelado por Deus ou por uma decisão pessoal sua?” O Profeta respondeu que era uma decisão pessoal. O homem então disse: “Penso que está errado. Temos que sair porque este não é o melhor lugar estratégico para ficar”. E eles mudaram de lugar. Maomé também trouxe uma mensagem de liberação – e, ao contrário do que se pensa, uma liberação em favor da mulher. Ele resistia a qualquer tipo de poder injusto e propagou a mensagem do islã, dizendo que existe um Deus e que todos os seres humanos são iguais.

Como o movimento de liberação da mulher foi levado adiante?

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Maomé permitiu que elas ocupassem seu lugar no âmbito público e privado. Casou-se com uma comerciante, Hadija, para quem no início havia trabalhado. Hadija era mais velha do que ele, um comportamento bem diferente do que se vê na cultura árabe. Durante a época do Profeta, todas as mulheres freqüentavam mesquitas, inclusive para expressar suas idéias. Ele era contra os casamentos forçados e até promoveu o divórcio.

Qual era a visão dele sobre o jihad?

Maomé ensinou que o jihad não tem relação com a guerra, mas com usar o Alcorão para responder aos conflitos entre as pessoas. Jihad também significa atuar contra a dimensão ruim de sua vida interior – por exemplo, quando você sente atração por mentir ou por outros maus atos, você deve resistir. Em terceiro lugar, o jihad é o direito de resistir quando você é oprimido. Seu verdadeiro significado é “esforço”, não “guerra santa” – um termo não islâmico que vem dos cruzados.

Hoje vemos uma realidade bem diferente dessa pregação. Por quê?

Estamos enfrentando uma crise profunda. E escrevi o livro para reconciliar os muçulmanos com o verdadeiro significado de seus textos e mensagens. Notamos hoje dois grandes problemas. Primeiro, algumas pessoas lêem o Alcorão de forma literal. Pegam um verso sem colocá-lo em seu contexto e dizem “esse é o Alcorão”, o que é muito perigoso. O outro problema é cultural: a violência doméstica, o patriarcado, os casamentos forçados e a oposição ao divórcio não são islâmicos. Derivam mais da cultura árabe que propriamente da religião islâmica.

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Você defende a criação de uma nova identidade muçulmana, um “islã europeu”. Como ele seria?

Islã europeu significa o indivíduo ser muçulmano pelos princípios e europeu pela cultura. Quando estive nos EUA, disse aos muçulmanos de lá: “Vocês têm de ser consistentes com seus valores, mas sua cultura é americana. Podem aproveitar tudo o que é bom em sua cultura, mas também têm de ser seletivos”.

Um muçulmano pode ser seletivo num país secular como a França, que proíbe o uso do véu em escolas públicas?

Esse é um dos poucos exemplos em que há conflito. Em geral, porém, existe suficiente liberdade na Europa para que os muçulmanos permaneçam bons muçulmanos. Eu diria aos muçulmanos franceses que busquem lidar com isso de forma razoável. Tentem evitar as más decisões e tomar as melhores. Vão à escola, aprendam e tentem achar seu caminho.

Europeus estão errados ao pensar que a atual onda de imigração coloca em risco sua cultura?

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Na Europa e nos EUA, as pessoas estão com medo por 3 razões. Primeiro, os muçulmanos são muito mais visíveis hoje que antigamente. Segundo, as pessoas sabem que precisam de imigrantes para a economia, mas têm uma rejeição cultural a eles. E o terceiro fator é o terrorismo e a violência. Os europeus dizem que os imigrantes estão mudando sua religião. Minha resposta é: assim é a vida, estamos sempre mudando. Não temos uma só i­den­tidade, não há um país que continue igual por séculos. Sim, as sociedades européia e americana estão mudando por causa da imigração. Temos duas opções: rejeitar os imigrantes, dizendo que “estão prejudicando nossa identidade exclusiva de europeus”, ou entender que temos valores comuns, estamos lidando com seres humanos e queremos viver juntos numa sociedade pluralista.

Muitos europeus dizem que os imigrantes muçulmanos tentam impor seus hábitos a eles.

Ninguém está tentando impor nada. Apenas querem continuar muçulmanos. O problema é que, ao tentar continuar muçulmanos, a percepção é que estão tentando ser muçulmanos demais. Então esse é um problema da sociedade européia.

Suponhamos que uma onda de imigração ocidental tomasse o Irã ou a Arábia Saudita. Qual seria a reação?

A reciprocidade não é fator que você pode usar aqui porque falta democracia nos regimes iraniano e saudita. Mas está claro para mim que a decisão saudita de impor o véu a todo o povo não é correta. É preciso deixar as pessoas ser muçulmanas ou não. Você pode pensar que os ocidentais não terão direitos nesses países, mas não se esqueça de que os muçulmanos que vivem neles não têm direitos também.

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Um fato que choca o Ocidente é a maneira como muitos muçulmanos lidam com a morte. Há gente de sobra disposta a morrer em ataques suicidas, há mães orgulhosas do filho morto. O que nós não estamos entendendo?

Eles não querem morrer. Ninguém quer morrer. Apenas querem ter dignidade e respeito em lugares como Iraque e Palestina. Há 50 anos, quando europeus resistiram aos nazistas, entenderam que alguém poderia morrer por isso também. Então as pessoas dizem: “Oh, eles não gostam da vida!” e não aceitam que morram, mas não percebem que isso também é nossa responsabilidade na medida em que eles estão vivendo sem casa, sem dignidade e sem futuro.

Mas suicídios não acontecem apenas em Israel e no Iraque. Há casos nas Filipinas, na Turquia, na Europa. Os terroristas de Londres tinham bom nível social e boas perspectivas de futuro.

Isso não tem nada a ver com a pergunta que você fez sobre a mãe do filho morto. Se voltar ao que aconteceu em Londres, Madri e Nova York, condenamos esses atos, não há discussão. Mas tentamos entender quem eram aquelas pessoas. Elas eram integradas socialmente, se encontravam em pubs e até bebiam álcool às vezes. Mas tinham uma aproximação muito dogmática dos textos. Além disso, não tinham senso de pertencimento aos países ocidentais. Não se sentiam em casa. Diziam: “Vocês matam nossos irmãos lá, vamos matar vocês aqui”. Isso não tem nada a ver com o islã, e sim com uma leitura específica e com um entendimento político muito superficial. Também não tem nada a ver com a pobreza.

Se a questão é a falta de perspectivas, como explicar que os pobres na América Latina não se suicidem?

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Você está confundindo. Quando eu falo em Londres, você fala em Israel. Você tem que organizar suas perguntas. Por 4 décadas, os palestinos nunca usaram suicidas. Só usaram em 1994, depois que pessoas foram mortas numa mesquita e eles não conseguiam atacar o quartel do exército. No Iraque e na Palestina a resistência é legítima, e o que podemos questionar é a maneira que estão usando para resistir. É possível matar pessoas inocentes? Penso que não. É normal resistir a um exército ocupante? Creio que é legítimo.

Como você recebe as críticas a seu respeito, entre elas a de que seu visto americano foi negado por ligações com terroristas?

As investigações têm mostrado que estou limpo em relação a qualquer tipo de suspeita desde a resposta que tive do governo americano um ano atrás. Eles disseram: “Você deu dinheiro a uma organização palestina e deveria saber que essa organização estava conectada com o Hamas”. O problema dessa afirmação é que eu dei o dinheiro entre 1998 e 2002 – um ano antes que essa organização fosse colocada na lista negra dos EUA. Então eu precisaria ter sabido disso antes que os próprios EUA soubessem, o que é ridículo. Essa organização [Association Suisse Palestine] ainda está a­tuan­­do na Suíça e nunca esteve na lista negra da Europa, onde vivo. Se o governo americano tivesse outra coisa contra mim poderia mostrar. Mas não tem nada. Eles estão apenas tentando explicar a revogação do visto com algo completamente errado. Revogaram o visto principalmente por minhas visões políticas contra seu governo, por dizer que a Guerra do Iraque foi um erro e que o apoio unilateral a Israel contra os palestinos é um erro.

Tariq Ramadan

• É um dos mais influentes pensadores muçulmanos.

• Visitou o Brasil nos anos 80, quando fazia trabalho comunitário com crianças. Na época, encontrou-se com Lula e com o arcebispo dom Helder Câmara .

• Seu livro preferido é Os Irmãos Karamazov.

• Jogou futebol na liga profissional da Suíça. Diz que o único time para o qual torcia, e ainda torce, é o Brasil.

A Irmandade Muçulmana

Promover o renascimento da sociedade islâmica através da educação. Esse era o lema do professor egípcio Hassan al Banna, avô de Tariq Ramadan, quando fundou em 1928 a Irmandade Muçulmana, organização que influenciou e inspirou grupos extremistas atuais – do Jihad Islâmico à Al Qaeda. Ramadan, porém, diz que é preciso separar as coisas: a resistência de seu avô contra a colonização britânica era passiva e pacífica.

Banna foi morto em 1949 por ordem do rei Faruk, do Egito, que acabaria derrubado 3 anos depois. O novo líder, Gamal Nasser, reprimiu os religiosos. “Nesse momento, a Irmandade se dividiu: um grupo seguiu os passos da resistência não violenta; outro passou a afirmar que era preciso atuar de novas maneiras”, afirma Ramadan. “A radicalização veio após a repressão, não antes.”

Entre os novos líderes do grupo emergiu Sayd Qutb. Admirador do Ocidente, ele passou por uma mudança radical após visitar os EUA no final dos anos 40. Voltou de lá condenando o capitalismo, a emancipação feminina, a liberdade sexual e as mazelas da vida americana. Converteu-se num militante político que defendia a pureza islâmica. “Qutb transformou a ideologia de Banna em um chamado às armas”, diz John Esposito, especialista em islã da Universidade Georgetown. Hoje, textos dele estão entre os livros de cabeceira de Osama bin Laden.

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