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A vida segundo o Dalai Lama

Nunca se falou tanto sobre ele no Oriente. Nunca se leram tantos livros seus no Brasil. Afinal, o que o pensamento desse monge tibetano tem de tão especial?

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 22 jan 2023, 15h45 - Publicado em 31 jul 2001, 22h00

Karen Gimenez

Ele tem o riso fácil, a cabeça raspada, usa óculos enormes e veste sempre um manto amarelo e vermelho. Calça humildes chinelos de dedo mesmo diante dos mais poderosos chefes de Estado. É alegre e curioso. Demonstra querer saber tudo como se, aos 66 anos, ainda fosse uma criança descobrindo o mundo. Inquire seus circundantes a todo momento. Como se todas as pessoas lhe interessassem. Seu nome é Tenzin Gyatso. Mas você pode chamá-lo de Dalai Lama.

Para os adeptos do budismo em suas mais diversas ramificações, ele é a Sua Santidade. Corresponderia à figura do Papa na Igreja Católica. A grande diferença é que, quando um Papa morre, seu substituto é eleito. Quando o Dalai morre, a cúpula do budismo sai pelo mundo em busca da sua reencarnação em um bebê que tenha nascido, no máximo, alguns anos depois da morte do seu antecessor.

Identificado por meio de uma série de longos testes nos quais precisa reconhecer objetos pessoais do último Dalai Lama em meio a bugigangas comuns, o futuro Dalai passa a morar em um mosteiro onde, desde criança, é educado para a função que vai assumir aos 18 anos. Ao entrar no templo, tem seu nome mudado. Tenzin Gyatso, por exemplo, nasceu Lhamo Thondup.

Muitos perguntam se o Dalai Lama é a reencarnação de Buda. A questão está mal formulada. É que há, segundo o budismo, centenas de budas espalhados pelo mundo. Siddhartha Gautama, ou Buda Shakyamuni, talvez o mais famoso deles, imortalizado em livro pelo escritor alemão Hermann Hesse, foi o quarto Buda. O Buda, portanto, não é uma entidade única nem um ser sobre-humano. Considera-se Buda (a palavra significa “O Desperto”) o indivíduo que tenha “acordado do sono da ignorância”, para usar a terminologia budista, depois de muito trabalho mental e espiritual. A “iluminação” pode acontecer com qualquer um e é justamente esse o cerne da doutrina budista.

Quanto ao Dalai Lama, nome que significa “Oceano de Sabedoria”, acredita-se que ele e os seus 13 antecessores são reencarnações de um desses budas, Avalokiteshvara, conhecido como o Buda da Compaixão. O título de Dalai Lama foi concedido pela primeira vez em 1578, pelo príncipe mongol Altan Jan, à terceira reencarnação do Buda da Compaixão. O agraciado foi o abade Gedun Drub, um difusor do budismo que recebeu o título postumamente, junto com seus antecessores, o primeiro e o segundo Dalai Lama.

Eis o que o Dalai significa para os budistas. Para os chineses, no entanto, ele é simplesmente uma pedra no coturno. E, para ocidentais devoradores de pizza como você e eu, ele é uma figura simpática, talvez um pouco exótica, que só agora começamos a conhecer melhor.

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Exilado na Índia desde 1959, quando a China invadiu o Tibete (veja quadro na pág. YY), o Dalai atrai multidões onde quer que vá. Ele mora em Dharamsala, uma cidade ao norte do continente indiano. Trata-se de uma comunidade fundada nos anos 60 pelos refugiados tibetanos e por monges budistas. Hoje, ela abriga cerca de 100 000 pessoas. Foi nessa cidade, que se apresenta como a sede do governo do Tibete no exílio, que o Dalai Lama promulgou a última constituição tibetana, em 1963. Ele vive atualmente em um mosteiro, que também funciona como um centro de estudos filosóficos e religiosos, onde alguns estrangeiros passam temporadas fazendo pesquisas. (Leia mais sobre Dharamsala na edição de agosto da revista Viagem & Turismo.)

Um desses estrangeiros foi a jornalista Lia Diskin, uma argentina que mora há 30 anos no Brasil, onde ajudou a fundar e dirige o Centro de Estudos Filosóficos Associação Palas Athena, em São Paulo. Em Dharamsala, em 1984, ela conheceu o Dalai Lama e acabou organizando suas duas visitas ao Brasil.

“Dificilmente se encontra um líder religioso que encante tanto as pessoas quanto o Dalai. Não só pelas palavras mas também por assumir a sua condição humana tão claramente”, afirma Lia. De fato, o Dalai se coloca como apenas um velho monge que deseja paz e felicidade a todas as pessoas. Não se arvora nenhum caráter divino. Tanto que assume seus defeitos em público: leves irritações e uma obsessão por relógios que o acompanha desde criança, quando queria ser engenheiro e montava e desmontava qualquer máquina que encontrasse no Potala, centro religioso e político localizado na capital do Tibete, Lhasa.

O Dalai viaja muito e acaba ficando pouco tempo em Dharamsala. As visitas ao Brasil foram agendadas com mais de dois anos de antecedência. Num dia, suas palavras encontram milhares de pessoas no Vale do Silício, o cérebro eletrônico da indústria tecnológica americana. No dia seguinte, ele conversa com comunidades isoladas nas montanhas do Nepal.

Os discursos do Dalai originaram mais de 200 livros – 20 deles traduzidos para o português. No Brasil, seus livros venderam 500 000 exemplares. A Arte da Felicidade – Um Manual Para a Vida, editado pela Martins Fontes, cuja seqüência o Dalai está escrevendo neste momento em parceria com o psiquiatra americano Howard Cuttler, aparece há quase 70 semanas na lista dos livros mais vendidos da revista Veja. Afinal, o que faz do Dalai Lama um sucesso crescente entre cientistas, escritores e, sobretudo, entre o público médio?

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A primeira parte da resposta está no fato de que a maioria das sociedades ocidentais está vivendo um processo de mudança antropológica: de uma cultura mais materialista, imediatista e individualista para uma outra mais espiritualizada, mais holística, mais solidária. Isso explica em parte a evidência que o Dalai Lama e suas idéias vêm ganhando no Ocidente nos últimos tempos. A segunda parte tem a ver com o teor mesmo da sua mensagem e pode ser resumida em duas palavras: simplicidade e lógica.

Para o Dalai, tudo é muito simples. Estar no mundo é fácil, viver é descomplicado. Segundo ele, ninguém precisa sair em peregrinação ou praticar mendicância para se tornar um ser humano melhor. Em sua filosofia, que tem muito menos a ver com religião do que com um manual de condutas éticas para viver e deixar viver, de modo a que cada um possa se inserir harmonicamente no meio dos outros, a verdadeira transformação espiritual do indivíduo está nas pequenas e fundamentais atitudes do dia-a-dia, independente do credo, do estilo de vida, das preferências sexuais ou políticas que se possa ter.

O Dalai apresenta o mundo como uma rede de ações em constante interferência recíproca. Assim, o que um sujeito faz ou deixa de fazer alteraria indelevelmente o meio em que está inserido. A vida funcionaria como um jogo de dominó em que se derruba uma pedra e milhares de outras vão caindo, sucessivamente, durante horas a fio, até formar um enorme desenho do qual muitas vezes nenhum dos participantes tinha idéia no início. Para o Dalai, nada – nem ninguém – está isolado. Uns sempre precisam de outros para realizar a própria felicidade.

Quem for assistir a uma de suas conferências achando que vai escutá-lo falando das vantagens de se converter ao budismo perderá a viagem. O Dalai deixa muito claro em seus discursos que cada um deve seguir a fé que escolher. Ou até mesmo nenhuma, caso lhe pareça mais conveniente. A devoção das pessoas, ao contrário da esmagadora maioria dos líderes religiosos, é o que menos interessa ao Dalai, segundo ele mesmo diz. Quem já assistiu a uma de suas palestras sabe que o eixo básico do seu discurso é a universalidade dos conceitos. Para ele, há alguns valores, como a ética, que são constitutivos do ser humano em qualquer cultura ou tempo e que deveriam ser cultuados por todos.

A ausência quase completa de proselitismo religioso e a lógica evidente de sua argumentação, que não requer uma fé específica para ser compreendida e aceita, faz com que até o mais empedernido dos ocidentais tenha condições de incorporar os ensinamentos do Dalai em seu cotidiano. Mas que ensinamentos são esses? E como eles podem ser úteis para a sua vida diária? Com você, alguns dos principais pontos do pensamento do Dalai Lama.

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Ação e Engajamento

Quem vê o Dalai falando em meditação não pressupõe que ele considera a ação e o engajamento fundamentais. E que ambos, para ele, devem andar de mãos dadas com a espiritualidade. Para o Dalai, rezar é importante, mas não basta. É preciso arregaçar as mangas, deixar de lado a preguiça e o eterno álibi da falta de tempo e agir sobre as situações. Não há necessidade de atos heróicos nem de uma grande alteração de rotina. Afinal, segundo o Dalai, o mundo depende mais dos pequenos do que dos grandes atos para ser transformado. Para ele, colocar a mão na massa faz toda a diferença. É como cruzar uma ponte numa noite gelada e ver uma criança passando frio. Você pode se encher de pena e rezar para que a Providência faça chegar a ela um agasalho. Pode também seguir seu caminho indignado porque o Estado não faz nada. Mas você pode, por outro lado, fazer alguma coisa a respeito. Um gesto, uma ação. Que opção tem mais chances de diminuir o sofrimento imediato daquela criança?

Desapego

Para o Dalai, amor requer desapego. Isso soa torto para mentes ocidentais, acostumadas a pensar o contrário: amor e apego como sinônimos. A intensidade do apego, segundo ele, é a mesma da raiva quando se perde a pessoa. Portanto, o apego está relacionado à posse e ao desamor. No limite, apegar-se é hipotecar o amor que se sente. Afinal, que diabo de amor é esse que se transforma em ódio quando não se pode mais ter o ser amado ao lado?

Você certamente já ouviu falar de algum casal que, depois que se separou, se dedicou a infernizar um a vida do outro. Ou buscando uma reconciliação ou um tentando impingir ao outro o sofrimento que a perda lhe causou. Ou, ainda, os dois trancafiando a sua própria felicidade naquele falecido projeto de vida em comum. Isso, para o Dalai, é apego e não amor. Afinal, impedir que o ser amado seja feliz, em nome da sua própria infelicidade, é um ato de rancor e ódio e não de amor.

O apego estreitaria a visão de felicidade, descartando novas possibilidades de viver momentos de alegria, influenciaria negativamente a compaixão e seria prejudicial à própria auto-estima. Para o Dalai, a baixa auto-estima nada mais é que o apego excessivo a si mesmo. Portanto, uma conseqüência do excesso de amor-próprio, de vaidade. Isso faria com que nos exigíssemos a perfeição em todos os momentos e que jamais estivéssemos satisfeitos com as nossas conquistas.

Caminho do Meio

Para o Dalai, não existem verdades absolutas. Um dos princípios do budismo é o Caminho do Meio. A imagem que se faz é a de uma corda de violão. Se ela ficar muito solta, não produzirá som algum. Mas se você esticá-la demais, ela arrebentará ao primeiro toque. Pela óptica desse conceito, antagonismos aparentemente insuperáveis poderiam ser resolvidos se ambas as partes cedessem um pouco. O segredo do equilíbrio seria nunca se deixar seduzir pelos extremos.

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Carma

No senso comum, a palavra carma está sempre associada a um castigo imutável, a uma situação ruim e invencível. Para o Dalai, o carma nada mais é do que uma lei eterna de causa e efeito que cada um de nós pode modificar todo dia. Na sua visão, não somos seres impotentes diante da vida. Nem há sinas inelutáveis. Portanto, aceitar esse ou aquele revés como um carma e se conformar com ele seria apenas um ato de preguiça.

Compaixão

O dicionário apresenta a pena e a dó como sinônimos do termo compaixão. Para o Dalai, esses conceitos têm uma sutil e ao mesmo tempo profunda diferença. A representação da compaixão seria horizontal. A da pena e da dó seria vertical.

Eis o que essa metáfora geométrica quer dizer: ter pena, segundo o Dalai, é olhar alguém como um ser inferior, que precisa de caridade. É, em resumo, o sujeito se sentir melhor e mais digno do que o seu interlocutor. Já a compaixão enxergaria o sofrimento de forma solidária. A postura aí seria encarar aquele que sofre como um ser em igualdade de condições que precisa de ajuda naquele determinado momento.

Ter compaixão, para o Dalai, é lembrar que a dor do outro poderia ser sua. E é mostrar a capacidade de reconhecer o sofrimento do próximo e ajudá-lo a superar o momento difícil. A compaixão estaria intimamente ligada à ação. Na visão do Dalai, somente condoer-se está muito longe de ser uma atitude suficiente.

Ecologia

Nada é mais precioso que a vida. Não só a humana, mas a de todos os seres que habitam o planeta. O Dalai recomenda dieta vegetariana para evitar que se tire o direito à vida dos animais, já que para o budismo eles também têm alma e as pessoas podem reencarnar como animais, até mesmo como ostras e camarões.

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Segundo ele, no entanto, é possível se preocupar com a natureza sem precisar adotar atitudes que a maioria das pessoas considera indigestas, como se alimentar exclusivamente de vegetais ou colocar o peito na frente do arpão de um baleeiro no meio do oceano. Bastaria ter sempre a preocupação de se relacionar eticamente com os demais seres do planeta.

A preservação do ambiente, além de demonstração de respeito à vida, inclusive a das futuras gerações de humanos, seria uma forma de o sujeito melhorar a sua própria existência. O budismo tibetano, tanto quanto várias outras doutrinas, é antropocêntrico e vê o homem como um ser superior. A diferença da doutrina do Dalai em relação às outras está no significado do conceito de superioridade. Para ele, isso não quer dizer que a natureza esteja a serviço do homem e nem que possa ser subjugada. Como os únicos seres inteligentes, nós teríamos a responsabilidade de agir como guardiães da vida na Terra.

Ética e Religião

Segundo o Dalai, não é preciso ter religião para ter ética. Ou seja, a retidão do comportamento humano não dependeria de leis divinas. Para ele, espiritualidade e religião não são sinônimos. O Dalai é um grande defensor de ações sociais ecumênicas. Ele acredita que a ética transita em qualquer fé e é a viga central na construção de um mundo mais feliz. Ter fé é importante, ele reconhece. Mas a ética seria mais do que suficiente. Isso inclui ateus e agnósticos nesse projeto de mundo mais solidário e integrado de que fala o Dalai.

Mas, para ele, o que é a ética? Aqui, ele concorda com o dicionário. Trata-se de um conjunto de valores morais e princípios de conduta que devem ajustar as relações entre os diversos membros da sociedade. Nada mais é, no fim das contas, do que a velha premissa de não fazer a ninguém o que não se deseja para si mesmo. A sutileza trazida pelo Dalai é a consciência de que o não prejudicar os outros começa nos pequenos atos. Algo que pode não soar como prejudicial a você, como marcar um encontro e simplesmente não aparecer, pode atrapalhar a vida da outra pessoa que desmarcou um outro compromisso por sua causa.

Felicidade

O objetivo da vida humana, segundo o Dalai, é a felicidade, a preservação da alegria. Para ele, ser feliz não é um estado grandioso e eterno. Ao contrário, é uma soma de pequenos momentos luminosos que o sujeito vai colecionando ao longo da vida.

Um dos caminhos mais curtos para a infelicidade, na opinião do Dalai, é colocar a própria satisfação nas mãos de algo ou de alguém. Ou então empurrá-la para o futuro. O sujeito que diz que só será feliz quando se formar em medicina ou quando se casar com uma determinada pessoa está, segundo o Dalai, jogando fora uma série de oportunidades presentes de felicidade. A satisfação estaria dentro de cada um. Não estaria fora, em elementos externos que seriam meros instrumentos ou partes coadjuvantes.

Segundo o Dalai, os principais ingredientes da felicidade são o sorriso e o bom humor. Tentar olhar todos os aspectos de uma situação e destacar os bons – e não os maus, como costumamos fazer – é a grande receita da satisfação pessoal. Para ele, é preciso saborear cada mordida no pão quentinho de manhã. E se o chefe estiver nervoso, é preciso que o sujeito se sinta feliz por não estar.

Humildade

Associados com freqüência no Brasil, humildade e pobreza não têm nenhuma relação entre si na visão do Dalai Lama. Descrever como humildes aqueles que passam fome ou vivem debaixo da ponte, para ele, não faz sentido. Humildade nada tem a ver com a presença ou a ausência de posses materiais. Trata-se, segundo o Dalai, de uma forma de comportamento das mais veneráveis. Ser humilde seria enxergar todos os circundantes como seres iguais – o garoto que pede um trocado no semáforo ou o presidente da República. É difícil pensar dessa forma quando a sociedade relaciona humildade com inferioridade, submissão e pobreza. Mas é fácil ser humilde em uma sociedade que associa essa condição à simplicidade, à clareza, à elegância. A humildade, segundo o Dalai, deixa o homem mais confiante. Só quem tem plena consciência do seu valor não precisa demonstrar, às vezes de forma grosseira, o seu poder ou a sua erudição.

Imparcialidade

Para o Dalai, a verdade é relativa. Perceber que não há axiomas inquestionáveis e tentar enxergar as situações sob todos os ângulos antes de tomar uma atitude é fundamental. Mas isso, segundo o Dalai, leva tempo e requer alguns exercícios. A mente humana teria a tendência de elevar as próprias idéias à condição de verdades inexoráveis. Diante de uma situação de discórdia, diz o Dalai, o sujeito se enche de argumentos que o levam a tomar determinadas atitudes a partir do seu ponto de vista unilateral, desconsiderando a trajetória dos outros envolvidos.

Impermanência

A única certeza que um ser humano pode ter, segundo o Dalai, é a de que vive o momento presente e de que pode morrer a qualquer momento. Por mais catastrófica que essa idéia possa parecer, para o Dalai ela é uma verdade incontestável e um motivo de alegria. Significa que, se as coisas boas podem ficar ruins de um momento para o outro, as coisas ruins também podem ficar boas de repente. Para ele, essa certeza também serve para que preparemos o que ele chama de “boa morte” – a tentativa de manter um saldo positivo na própria existência. Ou de, pelo menos, zerar a contabilidade entre as atitudes boas e más de que inevitavelmente se compõe uma vida.

Para o Dalai, a incerteza do que pode acontecer no próximo momento – o sujeito pode perder a vida ou o emprego, a mulher ou a fortuna a qualquer momento – ajuda-o a sofrer menos com os revezes da vida. E a se apegar menos às coisas e às pessoas que ama, dependendo menos delas para ser feliz. Por outro lado, a noção da própria impermanência faria com que o workaholic que passa 16 horas por dia no escritório revisse suas prioridades ao perceber que o seu cargo não vai durar para sempre. E que o marido que há mais de ano não reserva tempo para namorar a esposa percebesse que ela não vai ficar do seu lado para sempre. E que o sujeito que há décadas tem um pedido de desculpas entalado na garganta finalmente verbalizasse o seu arrependimento, porque nem ele e nem o seu antigo desafeto vão durar para sempre.

Interdependência e Rela

As pessoas morrem de fome no Nordeste. Você sente pena, se lamenta pelo povo castigado mas vê aquela realidade como algo distante do seu dia-a-dia. A coisa não funciona bem assim, segundo o Dalai. Afinal, tudo no mundo estaria relacionado. Uma atitude banal que se toma aqui pode iniciar uma cadeia que vai refletir do outro lado do Atlântico daqui a anos. (Se você lembrou aquela metáfora clássica da teoria do caos que dizia que o bater de asas de uma borboleta em Hong Kong pode causar um tornado no Texas, bingo.)

Para o Dalai, o conceito da interdependência está bastante ligado ao da relatividade. Para ele, as circunstâncias podem mudar a aplicação de um conceito. Por isso não seria possível ter conceitos isolados ou eternamente válidos. Para quase todas as religiões, por exemplo, a reprodução é uma das principais funções do ser humano. Mas hoje, em um mundo com mais de seis bilhões de pessoas, onde há problemas globais de alimentação e espaço, o óbvio para famílias de qualquer classe social é realizar essa função numa escala menor do que acontecia há algumas gerações. O dogma religioso, portanto, para o Dalai, precisa ser relativizado. Provavelmente daqui a algum tempo, se boa parte da população mundial tiver envelhecido e morrido, a reprodução voltará a ter sua importância original. (Isso, aliás, já acontece em alguns países europeus, que estimulam financeiramente os casais a terem filhos.)

Paciência e Pressa

A paciência é a maior defesa que um sujeito pode desenvolver, diz o Dalai. Ela serve para que tudo seja colocado no seu devido lugar antes de se tirar conclusões ou fazer julgamentos. Às vezes é preciso ficar em silêncio, recuar antes de voltar à cena e dar um passo adiante. Paciência, no entanto, para o Dalai, não é omissão. É a determinação do tempo ideal para cada coisa. É o sujeito saber tratar do seu inimigo interior antes de lidar com as adversidades externas. Trata-se de um conceito difícil de entender pois a cultura ocidental cultua a pressa. É fato que as pessoas vivem cada vez em maior velocidade, comem cada vez mais rápido. É como se estivéssemos todos, você e eu inclusive, em busca de algo que nunca vem. Fazer o maior número de coisas no menor espaço de tempo virou sinônimo de eficiência. Sujeitos entre nós que se mostrem tranqüilos e pacientes são considerados omissos e passivos.

Para o Dalai, no entanto, paciência é compreender que as melhorias gradativas são as verdadeiras e que as mudanças rápidas não passam de fachada.

Raiva

Talvez o ponto mais difícil de aprender na doutrina do Dalai seja lidar com a raiva. Ele a divide em dois tipos: a raiva proveniente do apego e aquela proveniente da compaixão. O primeiro tipo distorce a visão dos fatos e prejudica a capacidade de julgamento. Se o sujeito se sente ofendido por alguém, tem a vontade de prejudicar quem ele julga lhe ter feito mal. Só que, pelas regras do carma e da interdependência, a vingança só vai aumentar o seu saldo negativo. Em outras palavras: prejudicar quem teoricamente lhe fez mal vai trazer uma satisfação imediata e ilusória e nenhum lucro futuro. Afinal, o julgamento ocorreu sob a intensidade da raiva. O perigo aí, segundo o Dalai, é criar uma bola de neve de ações e reações ruins. O correto seria o sujeito sublimar a sua raiva por meio da dedicação a coisas que façam bem a ele e aos outros. Para o Dalai, não vale a pena trocar horas de sono ou de prazer brincando com os filhos para arquitetar uma vingança que só adicionará mais sofrimento àquela situação.

Isso não quer dizer que se deva ficar passivo diante das injustiças. A raiva motivada pela compaixão, pela solidariedade ao ser vilipendiado, segundo o Dalai, deve ser usada para gerar uma ação que busque justiça de uma forma imparcial, serena e que ande sempre pelo caminho do meio.

Serenidade

A serenidade caminha ao lado da imparcialidade e não da apatia, diz o Dalai. Ter serenidade é pensar antes de agir. Algo que, num estágio mais avançado, nada mais é do que a meditação. A sabedoria, segundo o Dalai, está em não colocar a imaginação no meio do processo de análise e em saber esperar sem ansiedade. Na prática, um sujeito sereno criaria sempre um espaço de tempo entre a ação e a reação. Tempo para analisar a situação com parcimônia, pensar nas conseqüências da sua reação e encontrar formas de resolver o problema e não de piorá-lo.

Sofrimento

Situações que causam sofrimento jamais faltarão nem para a mais contente das criaturas. E se o sofrimento é um fato, é preciso aprender a lidar com ele. Não apenas lamentar a sua existência e se acomodar com a dor. Para o Dalai, é sempre possível minimizar o sofrimento ou extrair dele algo de positivo. Para tanto, é preciso tratar as causas do sofrimento e não, apenas, os sintomas. Ao identificar as causas, diz o Dalai, a imparcialidade e a serenidade são fundamentais para que não haja erro no julgamento. É que, segundo ele, é sempre possível que parte do sofrimento seja criado pelo próprio ser que sofre, independente dos fatores externos. Ele diz que há duas reações ao sofrimento: entregar-se à dor ou descobrir a si mesmo na tragédia.

É que os momentos difíceis, por piores que sejam, desenhariam uma grande oportunidade para o sujeito avançar no último e talvez mais essencial dos pontos do pensamento do Dalai Lama, combustível para a efetivação de todos os outros: o autoconhecimento. É isso, por fim. Conhecer-se melhor, mais fundo, com mais detalhes, sem máscaras nem retoques é a primeira e a última coisa que um ser humano em busca de ser mais feliz e de fazer mais gente feliz deve realizar. Não é tarefa fácil nem rápida. Melhor começar já.

O tao do Dalai

1935

Nasce Tenzin Gyatso, em 6 de julho, em Taktse, no Tibete

1937

Monges o descobrem. Começam os testes para verificar se ele é a reencarnação do 13º Dalai Lama

1939

Ele é levado para Lhasa, capital do Tibete. Passa a morar no Potala, centro religioso e político do país

1941

Começa sua educação religiosa

1951

Dois anos antes do que rege a tradição tibetana, aos 16 anos, ele é reconhecido como o 14º Dalai e vira chefe de Estado. Tenta diálogo com a China e pede ajuda à ONU

1953

Temendo o avanço chinês, começa a enviar as reservas de ouro do Tibete para a Índia

1954

Depois da recusa de ajuda da ONU, parte para Pequim para um encontro com Mao Tsé-Tung, aos 19 anos

1959

Conclui os estudos. A China se prepara para capturá-lo. Ele foge para a Índia. A China bombardeia Lhasa. Já refugiado, busca novamente ajuda da ONU

1960

Monta uma comunidade de refugiados em Dharamsala, na Índia. Começa a divulgar pelo mundo a situação do Tibete

1963

Promulga, no exílio, a nova Constituição do Tibete

1982

Tenta novo diálogo com a China

1987

Inaugura as Conferências Mente e Vida, encontros bienais com cientistas para discutir a influência do espírito na mente e no corpo.

1989

Recebe o Prêmio Nobel da Paz

1991

Pede ajuda ao Congresso dos EUA. Os americanos reconhecem o Tibete como parte da China

1992

Visita o Brasil pela primeira vez, participando da conferência Eco 92

1999

Visita o Brasil pela segunda vez

2001

Encontra o presidente americano George W. Bush, que o recebe como líder religioso e não como líder político, e promete ajuda na tentativa de diálogo com a China

A briga com o Dragão que come gente

No fim dos anos 40 havia cerca de 7 milhões de tibetanos. Hoje eles são apenas 2,5 milhões, segundo levantamento do United States Census Bureau, órgão recenseador internacional sediado nos Estados Unidos. A invasão chinesa, perpetrada em 1950, anexou o Tibete ao mapa da China e inaugurou um longo processo de genocídio cultural no país.

Pelo seu caráter pacífico e isolado geograficamente, o Tibete era um alvo fácil para os ideais de expansão territorial chineses. O país, rico em recursos minerais, despertava há tempos a cobiça do grande vizinho. A razão alegada pelos chineses para a anexação é o fato de que o Tibete foi parte da China até meados do século XVII. Naquela época, o governo chinês, enfraquecido pelas constantes invasões estrangeiras em busca de novos territórios no Oriente, assistiu ao quinto Dalai Lama ser proclamado rei e declarar a região um país independente.

A Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung, iniciada em 1949, foi o estopim para a reanexação do antigo território. Para a China, era preciso acabar com o budismo, que impedia o Tibete de se desenvolver. Na tradição tibetana, baseada no budismo havia cerca de 1 000 anos, a religião e a política eram uma coisa só. O Potala, residência oficial dos Dalai Lama, concentrava também a administração política, a educação e o atendimento médico na capital tibetana.

A tomada do Tibete por Pequim foi violenta. O insignificante exército tibetano mal conseguia se manter em pé. A resistência deu-se em tentativas de diálogo por parte do Dalai Lama. Poucos países apoiaram o Tibete e os que o fizeram, como a Índia, agiram de forma discreta e nem sempre oficial.

Aproximadamente 6 000 mosteiros foram destruídos, 95% do total. Pessoas foram espancadas e mortas nas ruas. As crianças foram enviadas para as escolas chinesas – e voltavam treinadas para vigiar os próprios pais. Começou então um movimento de emigração: multidões passaram a atravessar as montanhas geladas do Himalaia em direção ao Nepal e à India. Milhares morreram pelo caminho.

O Dalai Lama fugiu para a Índia em 1959, pedindo ajuda internacional, quando foi decretada a sua transferência para a China. O impasse existe até hoje. O Dalai é um chefe de Estado no exílio – situação que não é de todo reconhecida, porque a maior parte da comunidade internacional, inclusive o Brasil, vê o Tibete como território chinês. Mapas, como os da National Geographic, apontam o Tibete como parte da China.

“Em 1992, na Eco 92, a delegação chinesa ameaçou não comparecer ao evento, realizado no Rio de Janeiro, se o Dalai Lama desembarcasse por aqui”, afirma Lia Diskin, responsável pelas duas visitas do Dalai Lama ao Brasil. Ela lembra que o Itamarati dificultou ao máximo o visto do Dalai e que foi necessária a ajuda do deputado federal Fernando Gabeira para que os empecilhos fossem desembaraçados. “Em 1999, em visita ao país, outra vez a burocracia brasileira complicou as coisas”, diz Lia. Naquela ocasião, o presidente Fernando Henrique Cardoso não recebeu o Dalai Lama no Palácio da Alvorada. Só aceitou conversar com o Dalai fora do círculo oficial, em uma visita informal à casa do então senador Antônio Carlos Magalhães, na Bahia.

O Dalai em frases

• “Grande parte do sofrimento é criado por nós mesmos”

• “Nada garante que no futuro teremos uma vida melhor e mais feliz do que a que vivemos hoje”

• “O medo é útil quando ele nos deixa alerta”

• “Transformar nosso coração e mente é compreender como funcionam os pensamentos e as emoções”

• “Não existe nada absoluto, tudo é relativo. Por isso devemos julgar de acordo com as circunstâncias”

• “É ilógico esperar sorrisos dos outros se nós mesmos não sorrimos”

• “Para lidar com o sofrimento é preciso perceber que ele faz parte da nossa vida”

• “Um inimigo externo não tem como destruir a nossa tranqüilidade de espírito”

• “Reagir com raiva costuma não dar certo. Sem ódio, agimos de modo mais eficaz”

• “Tenho certeza de que se eu sorrisse menos teria menos amigos”

• “A compaixão não é um sentimento que transforma os outros em seres inferiores”

• “As transformações mentais demoram e não são fáceis. Demandam um esforço constante”

• “Se você quer transformar o mundo, mexa primeiro em seu interior”

• “É muito importante que o homem tenha ideais. Sem eles não se vai a parte alguma”

• “A arte de escutar é como uma luz que dissipa a escuridão da ignorância”

• “Aprimorar a paciência requer alguém que nos faça mal e nos permita praticar a tolerância”

• “É triste passar pela vida causando problemas a outras pessoas e ao ambiente”

• “O maior juiz de seus atos deve ser você mesmo e não a sociedade”

• “A responsabilidade de todos é o único caminho para a sobrevivência humana”

• “A opressão nunca conseguiu suprimir nas pessoas o desejo de viver em liberdade”

• “O apego é cheio de parcialidade. O amor e a compaixão são imparciais”

• “A vingança não vai reduzir ou prevenir o mal, porque ele já aconteceu”

• “Uma poderosa ferramenta para nos ajudar a gerir com habilidade a nossa vida é perguntar antes de cada ato se isso nos trará felicidade. Isso vale desde a hora de decidir se vamos ou não usar drogas até se vamos ou não comer aquele terceiro pedaço de torta de banana com creme”

Para saber mais

Na livraria: Uma Ética para o Novo Milênio

Sua Santidade, o Dalai Lama, Tradução de Maria Luiza Newlands. Editora Sextante

A Arte da Felicidade, Um Manual Para a Vida

Sua Santidade, o Dalai Lama e Howard C. Cutler. Tradução de Waldéa Barcellos. Editora Martins Fontes

Minha Terra, Meu Povo

Tenzin Gyatso. Editora Palas Athena

A Arte de Lidar com a Raiva

Sua Santidade, o Dalai Lama. Tradução de A. B. Pinheiro de Lemos. Editora Campus

Transformando a Mente

Sua Santidade, o Dalai Lama. Tradução de Waldéa Barcellos. Editora Martins Fontes

O Caminho da Tranqüilidade

Sua Santidade, o Dalai Lama. Tradução de Maria Luiza Newlands Silveira e Márcia Cláudia Alves. Editora Sextante

Vídeos

• Sete Anos no Tibete

• Kundum

• Compaixão no Exílio

Internet

https://www.dalailama.com

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