Adeus, 999
No último dia do primeiro milênio, o médico mais importante de Córdoba, uma das maiores cidades medievais, trabalhou normalmente. Para ele - e para a maioria da população mundial - não foi um dia especial.
André Santoro
Não havia uma folhinha na casa do cirurgião Abu Al-Qasin Al-Zahravi (936-1013), conhecido pelos cristãos como Albucasis. Todo pintado de branco, confortável, seu imóvel ficava na periferia de Córdoba, no sul da Espanha de hoje, provavelmente a maior cidade da Europa de então. Se houvesse um calendário cristão por lá, ele estaria marcando domingo, 31 de dezembro de 999. Mas ninguém se preocupava com a data. Simplesmente não passava por nenhuma cabeça que aquele fosse o último dia do ano, menos ainda de um ano especial. A contagem do tempo era uma confusão (leia Por que 2000?, na página 30). Além disso, desde que Córdoba fora conquistada pelos muçulmanos, em 756, toda Al-Andalus, a região mais tarde conhecida como Andaluzia, incorporara a cultura islâmica, cujo calendário é diferente do cristão.
Como o descanso semanal dos muçulmanos é na sexta-feira, naquele domingo Albucasis acordou cedo para ir visitar pacientes, um deles o próprio califa Al-Hakam II. Antes de sair, porém, tomou o café da manhã ao lado das esposas e dos filhos (veja o infográfico) e colheu, no pátio interno da casa, algumas folhas para preparar um chá digestivo ou um remédio. “Especialistas da época costumavam plantar suas ervas medicinais”, contou à SUPER a historiadora da ciência Ana Alfonso-Goldfarb, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Aos 64 anos, idade avançada num século em que a expectativa de vida na Europa ficava em 35, Albucasis era um privilegiado. Com cerca de 250 000 habitantes, Córdoba era um centro cultural da Europa só comparável a Constantinopla, a capital do Império Bizantino. E, naquele momento, a Andaluzia vivia em paz e prosperidade. “Os cristãos e os judeus não podiam construir novos templos, mas sua religião era respeitada e eles tinham permissão para realizar cultos nos espaços já existentes”, explica o historiador Marco Antônio de Oliveira Pais, da Universidade Federal de Minas Gerais. A convivência e a troca entre culturas era comum. Podia não haver festa de ano-novo, mas sobravam motivos para alegria.
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Algo mais
Os cristãos ibéricos, que viviam em território controlado pelos muçulmanos, adotando a cultura e a linguagem árabe, eram chamados de moçárabes. Como a conversão ao islamismo não era obrigatória, eles conservavam seus cultos religiosos.
Jeito oriental
Há 1 000 anos, o centro do mundo civilizado era árabe.
Água fresca
Poços artesianos eram comuns em Córdoba. As casas mais luxuosas tinham até fonte. A cidade também dispunha de rede de esgotos. O único problema era que ela levava os dejetos para um rio muito próximo.
Destino
Criadas para os afazeres domésticos, as meninas não tinham acesso à educação formal. Aos meninos era ensinado o Corão, o livro sagrado do Islã. Depois eles podiam ir para uma madraza, o centro de estudos superiores dos muçulmanos.
Banquete
De manhã, muçulmanos de classe média na Peninsula Ibérica comiam pão e frutas secas e tomavam água ou leite. Sua dieta incluía também cereais, carnes (apesar das restrições religiosas), vinho e pescado. Eram 6 000 calorias, um exagero. A fome atingia mais vilas menores.
Como acontece até hoje na cultura islâmica, os homens podiam ter quantas esposas conseguissem sustentar.
Castigo
Prisioneiros de guerra se tornavam escravos. Em Córdoba havia servos africanos, cristãos e judeus, muitos capturados em guerras.
Sem trânsito
O burro só era usado para transportar mercadorias ou aqueles que vinham de longe, do lado de fora das muralhas da cidade. Os demais andavam a pé.
Profissão
Na época, os ofícios eram aprendidos em estágios não remunerados. Quem não escolhia a ciência podia optar por ser artesão, fazendo armas, roupas e outras quinquilharias, trabalhar na construção civil ou para o califa.
Shopping center
A maioria das lojas pertencia a mercadores judeus. Tudo, de azeite a seda, podia ser comprado no mesmo estabelecimento.
Bordel
A prostituição era comum, apesar do costume da poligamia. Os homens não se preocupavam em se esconder quando iam procurá-la.
Vielas
Nem mesmo carroças passavam nas ruas estreitas e bem calçadas do centro da cidade. Algumas têm, até hoje, 1,5 metro de largura.
Olho no céu
Na virada do milênio, a astronomia e a matemática se desenvolveram muito no mundo islâmico. Surgiram novos tratados de Álgebra e catálogos de localização das estrelas.
Coleção rara
Córdoba era famosa por suas bibliotecas. No ano 1000, a do califa, com 400 000 volumes, ostentava o título de maior do mundo. Mas quase todos os livros se perderam após a ocupação cristã da Península Ibérica.
Patrimônio
Os estudiosos tinham boa retaguarda. Trabalhos de pensadores gregos como Platão e Aristóteles foram traduzidos para o árabe por volta do século IX e influenciaram bastante a ciência muçulmana.
Um dia de trabalho e estudo
Com as plantas medicinais no alforje, Albucasis montou um jumento e seguiu para o hospital. Sim, havia hospitais em Córdoba, assim como em outras grandes cidades européias. Dentro deles, os doentes ficavam separados pelo tipo de mal, mais ou menos como hoje. Mas os médicos não eram especialistas. Tratavam de tudo. De esquizofrenia a dor de dente. Alguns davam aulas e também consultas nas madrazas, as escolas superiores. Outros recebiam doentes em suas próprias casas.
Pacientes nobres tinham atendimento em domicílio. Por isso, Albucasis às vezes ia ao Alcazar, o palácio do califa Al-Hakam II, o sucessor de Abd Ar- Rahman III. Este, em 929, se declarou independente de Bagdá, a capital do império dos sultões abássidas (750-1258), que dominava desde o Oriente Médio até a Península Ibérica, passando por todo o norte da África. A paz e a prosperidade do período só acabariam pouco antes da morte de Albucasis. Em 1031, após uma guerra civil de 22 anos, o califado de Córdoba, por sua vez, seria desmembrado novamente em vários emirados, unidades menores que voltaram a obedecer a Bagdá.
Nosso médico nem imaginava que tamanha confusão viesse a acontecer enquanto caminhava pela cidade rumo ao trabalho. Ia olhando as lojas, a maioria de propriedade de comerciantes judeus, que vendiam artigos de couro e azeite, entre produtos locais e importados, como os temperos da Índia e a seda da China. Córdoba era cosmopolita.
Desemprego, ali, quase não existia. Além dos ofícios comuns, a cidade dispunha de funcionários públicos. Eles trabalhavam no controle do comércio e nos serviços urbanos, como a limpeza. Mas não eram lá muito bons nisso. “Apesar de os muçulmanos se preocuparem com a higiene, as ruas pareceriam um bocado sujas para nós”, pondera a historiadora Olivia Remie Constable, da Universidade de Notre Dame, no Estado americano de Indiana. Nas ruas, naquele entardecer, últimas horas de 999, o movimento era o de costume.
A Nova York ibérica
Córdoba era um lugar atípico na Idade Média. A maioria da população tinha acesso às condições mínimas de sobrevivência. “A cidade guardava tantas semelhanças com as vilas rurais da França e ou da Alemanha quanto uma tribo africana se parece com Nova York hoje”, compara a historiadora Ana Alfonso-Goldfarb. Não que fosse a única. As maiores cidades do mundo eram Kaifeng (hoje na China), Constantinopla (hoje na Turquia), Angkor (no Camboja) e Kyoto (no Japão). Ofereciam conforto e sofisticação, mas todas jogavam esgotos em rios próximos e em nenhuma a limpeza urbana era o forte. As tropas de animais usados no transporte de gente e mercadoria não ajudavam muito.
Ninguém sentiu falta de festa
No fim do dia, em vez de voltar para casa, Albucasis, como de hábito, foi para a biblioteca do califa, um belo prédio, erguido em 961, que abrigava 400 000 volumes. Ele andava trabalhando em sua principal obra, intitulada Al-Tasrif (“O Método”), uma enciclopédia médica de trinta volumes que tratava de temas tão diversos quanto a preparação de remédios e cirurgias de olhos.
O intenso trabalho intelectual e prático do cirurgião – que já desenvolvera instrumentos médicos como boticões e pinças para a retirada de tumores – refletia a efervescência científica e cultural da cidade. Embora a Idade Média tenha ficado conhecida como a Era das Trevas, isso nunca valeu para as cidades muçulmanas ibéricas. “Em Córdoba, livros didáticos e instrumentos cirúrgicos eram facilmente encontrados nas lojas, o que não acontecia em qualquer lugar”, diz a historiadora Olivia Constable. “Vinha gente de longe, até do Egito, para estudar em uma de suas duas madrazas.”
Matemática, Astronomia, Botânica, Agronomia e Alquimia eram as ciências da moda. Entre os intelectuais famosos destacava-se o astrônomo Al-Majriti (?-1008), que escreveu um tratado sobre o astrolábio, instrumento usado para calcular a posição dos astros acima do horizonte. Por suas façanhas, chegou a ser chamado, ainda na época, de Euclides do Oriente, numa referência ao matemático grego do século III antes de Cristo.
Albucasis não teve a mesma sorte. Apesar de famoso localmente, nunca foi considerado um grande sábio por seus patrícios. Seu prestígio só despontou no século XII, quando, traduzido para o latim, o Al-Tasrif virou a bíblia dos médicos europeus. Seu trabalho revelou-se um marco. Os ensinamentos contidos nele só seriam considerados ultrapassados bem mais tarde. A última edição foi feita em 1778, em Oxford, Inglaterra.
Pouco preocupado com o futuro, o velho cirurgião gastou algumas horas estudando e escrevendo e deixou a biblioteca, voltando de burrico para seu lar distante. As ruas de Córdoba já estavam desertas. Nem mesmo os cristãos, que poderiam comemorar aquele dia 31 de dezembro de 999, davam bola para o fato. Azar deles. Perderam a oportunidade de fazer um belo réveillon. Em compensação, tinham o privilégio de morar na mesma metrópole que abrigava o grande Albucasis.
Para saber mais
O ano 1000 – A Vida no Início do Primeiro Milênio, Robert Lacey e Danny Danziger, Editora Campus, Rio de Janeiro, 1999