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Afinal, o que é o amor?

A fascinante viagem dessa palavra e dos seus múltiplos significados ao longo do tempo

Por José Augusto Lemos
Atualizado em 9 dez 2016, 20h04 - Publicado em 30 jun 2001, 22h00

O poema de amor mais famoso de todos os tempos é também um dos livros mais enigmáticos da Bíblia. Raros estudiosos acreditam nisto, mas o Cântico dos Cânticos, livro do Antigo Testamento, começa atribuindo sua autoria ao rei Salomão. (Tendo ou não sido o autor do poema, Salomão devia entender do tema – tinha um harém de 700 esposas e 300 concubinas.)

“Beija-me com teus beijos! Tuas carícias são melhores que o vinho!”, são os versos que inauguram o Cântico dos Cânticos, um longo diálogo entre um jovem casal apaixonado. Tanto entre judeus quanto entre cristãos não faltaram polêmicas sobre a inclusão ou não do poema nas Escrituras Sagradas – assim como não faltaram traduções e interpretações que buscavam minimizar, ou até eliminar, seu erotismo elegante mas desinibido.

Na tradução mais moderna – de longe, a mais fácil e agradável de ler –, The Song of Songs – A New Translation (O Cântico dos Cânticos – Uma Nova Tradução), lançada em 1995 nos Estados Unidos, os autores Ariel e Chana Bloch rechaçam definitivamente as antigas leituras de que o fervor retratado no poema fosse, na verdade, uma alegoria do amor entre Deus e Israel (na versão judaica), ou entre Cristo e a Igreja (na versão cristã). A palavra original traduzida acima como “carícias” – ou simplesmente como “amor” em algumas versões – é o hebraico dodim, termo específico para o contato sexual, segundo o casal de tradutores.

Afinal, o que é o amor?
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Outro estudo clássico sobre o Cântico – The Song of Songs and the Ancient Egyptian Love Songs (O Cântico dos Cânticos e as Antigas Canções de Amor Egípcias), de Michael Fox, lançado em 1985 nos Estados Unidos e ainda inédito no Brasil – se transforma numa fascinante investigação sobre os primeiros registros de poesia romântica na história. Um dos maiores especialistas em línguas e religiões do Oriente Médio, Fox detecta no Cântico a mesma linguagem metafórica das canções de amor do Antigo Egito – um festival de comparações entre partes do corpo do ser amado e frutas, flores, ervas aromáticas e pedras preciosas. Ninguém duvide que, quando ouvimos hoje expressões como “lábios de mel” ou “olhos de jabuticaba”, estamos escutando ecos de uma tradição poética de mais de 3 000 anos, inaugurada, ao que tudo indica, pelos escribas egípcios e, portanto, tão antiga quanto a própria civilização.

Ninguém duvide também que a palavra “amor” sofreu uma metamorfose tremenda com a entrada em cena do Novo Testamento. “Deus é amor”, proclama São João em sua Primeira Epístola, talvez a manifestação mais clara de que o termo antes usado para se referir à atração entre homem e mulher muda de sentido e é adotado como base de toda uma nova religião.

Essa revolução só pode realmente ser compreendida quando descobrimos que nada menos que três palavras diferentes do original grego do Novo Testamento foram traduzidas como “amor”. Vem daí a inspiração de um dos livros mais interessantes e injustamente esquecidos do século XX: The Four Loves (Os Quatro Amores), escrito em 1960 pelo irlandês C.S. Lewis (1898-1963) e inexplicavelmente inédito no Brasil. Professor de literatura medieval e renascentista da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, o autor usa quatro termos gregos para classificar tipos distintos de amor. O único não encontrado no Novo Testamento original é justamente o primeiro que costumamos associar à palavra: eros, o amor-paixão, com conotação sexual ou romântica. Os outros termos são philia (amizade), storgé (afeto natural, como o amor entre familiares) e agape (o amor desinteressado, de doação sem espera de recompensa: caridade).

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Afinal, o que é o amor?
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Esse último termo é o utilizado por São João – e também por São Paulo, no célebre capítulo 13 de Coríntios, transformado em balada pop por Renato Russo na canção “Monte Castelo”: “Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos… e tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda tivesse toda a fé… se não tivesse amor, eu não nada seria”. Assim, dá para entender finalmente porque em várias edições do Novo Testamento esse trecho aparece com a palavra “caridade” no lugar de “amor”.

A influência grega nessa espiritualização do conceito de amor não foi pequena. A prova principal está na expressão “amor platônico”, que entrou para o vocabulário popular do mundo todo com seu sentido distorcido. Vale a pena voltar à fonte – O Banquete, escrito por Platão no século IV a.C. – simplesmente porque ela é um dos textos-chaves da cultura clássica ocidental e um dos mais saborosos tratados filosóficos que um leigo como eu e você podemos encarar.

Na estrutura narrativa, O Banquete lembra o Cântico dos Cânticos: a obra é montada em diálogos, pode ser lida como uma peça de teatro. O cenário e os personagens é que são radicalmente diferentes, a começar pelo ambiente – uma aristocrática mansão ateniense onde se realiza um symposium (título original do livro), tradição grega que, de uma forma ou de outra, nunca morreu: debates intelectuais em torno de um jantar regado a vinho. Entre os convivas, Platão coloca duas das figuras mais célebres da Grécia antiga: seu mestre Sócrates e o dramaturgo Aristófanes, o rei da comédia helênica. O tema da noitada é justamente o amor – ou melhor, eros, o desejo sexual, que a mitologia grega representava como uma divindade matreira, o tempo todo flechando o coração da moçada (não precisa nem lembrar que o coração flechado permanece até hoje o símbolo dos apaixonados).

A idéia das “almas gêmeas” e da “cara metade” aparece talvez pela primeira vez na cultura ocidental nesse texto, quando Aristófanes recorre justamente à mitologia para explicar o impulso amoroso. Segundo ele, o ser humano era inicialmente um andrógino de duas cabeças, quatro pernas e quatro braços. Temendo que seu poder ameaçasse os deuses, Zeus dividira essa estranha criatura em duas – e desde então carregamos a sensação de estarmos sempre incompletos, desejando a união com outro. Sócrates, que descartava os mitos como mera superstição, obviamente rejeita a versão de Aristófanes e a discussão progride na direção do conceito original de amor platônico. O helenista José Cavalcanti de Souza, professor aposentado da Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo (USP) e autor daquela que é considerada a melhor tradução brasileira de O Banquete, resume a obra assim: “Eros é uma divindade, uma força divina que intervém na vida humana, mas que precisa ser orientada pela inteligência.

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O desejo se manifesta primeiro como amor por um corpo bonito, mas evolui para o amor por belas atividades e ocupações. O que é digno de ser amado? Essa é a questão que Platão coloca, como responsabilidade do ser humano, para dar ascensão intelectual e espiritual à força de Eros”.

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A idéia que temos hoje de amor platônico é a da afeição sem contato físico. Mas o conceito original não é bem esse. Se você perguntasse a Platão, ele diria que o amor deve ser a afeição elevada a um plano ideal que transcende o contato físico, mas não o exclui. “A distinção entre corpo e alma que herdamos não existia para os gregos. Eles acreditavam numa continuidade, não numa ruptura”, afirma José Cavalcanti. “Mas a ascensão do amor era uma questão de inteligência e, portanto, para eles, essencialmente masculina. Os gregos tinham um grande preconceito contra a mulher.”

Por isso mesmo, muitos lêem em O Banquete de Platão uma apologia do homossexualismo, não só comum entre os gregos da época como considerado parte da relação mestre-discípulo entre os rapazes e os mais velhos. Os anfitriões do jantar narrado pelo filósofo formam um casal masculino e a festa chega a ser interrompida, a certa altura, pelo jovem Alcebíades, que entra bêbado, declarando sua paixão por Sócrates com grande estardalhaço. No fim, porém,é a parceria intelectual que é considerada a união perfeita – entre homens, é claro. Nesse ponto, o contraste com o Cântico dos Cânticos é total e absoluto, já que um dos traços mais marcantes do poema bíblico é apresentar homem e mulher manifestando seu desejo sexual em pé de igualdade. O fato de a sociedade judaica representada na Bíblia ter sido também fortemente patriarcal torna isso mais surpreendente ainda.

As mulheres conquistariam uma posição social um pouco melhor no Império Romano, cujos textos mais representativos sobre o amor são os poemas de Ovídio (43 a.C. – 17 d.C.). Sua estréia literária, com as elegias apaixonadas reunidas em Amores, o transformou instantaneamente em uma das maiores celebridades da alta sociedade romana. A obra seguinte, em compensação, acabou custando seu exílio da capital imperial. Também escrita em versos, A Arte de Amar é um manual de sedução que nada deve aos guias de paquera encontrados nas revistas masculinas de hoje – não falta nem um roteiro dos melhores lugares da cidade para conhecer mulheres. O livro foi considerado o máximo da imoralidade pelo imperador Augusto, que estava tão empenhado em uma campanha contra a luxúria romana que acabara de banir a própria filha por adultério.

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Essa história tem uma última volta surpreendente: parece ter havido uma ligação entre a expulsão de Ovídio e a de Júlia, a filha de Augusto, mas ela continua sendo um dos maiores mistérios da história, tema de muita especulação detetivesca.

A vingança do poeta que abalou Roma viria séculos depois, com sua enorme influência sobre os trovadores medievais – que, para a maioria dos estudiosos, seriam os verdadeiros inventores do romantismo que ainda hoje domina a música popular, o cinema e as telenovelas. As Cruzadas haviam levado muitos nobres europeus para longe de casa, o que deu às mulheres da época um poder político inédito na história. Elas se tornaram, então, simultaneamente patronas e musas dos poetas e menestréis responsáveis por uma nova literatura, que abrange dos romances de cavalaria às baladas e madrigais derramados de amor.

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A própria palavra “romance”, hoje um termo universal, nasceu com esse movimento, que brotou primeiro no sul da França, no final do século XI. “Essa palavra vem do latim vulgar romanice, em oposição ao latim literário. Transformou-se em romans, no provençal, dialeto da região, designando o gênero narrativo das histórias de cavaleiros e donzelas”, afirma o etimólogo Deonísio da Silva, da Universidade Federal de São Carlos.

O mais interessante é que esse culto ao amor acabou extrapolando a poesia para se transformar num código de ética: o chamado amour courtois (amor cortês) ou fin’amors (amor refinado). Sua grande novidade foi colocar o homem numa posição subalterna à mulher, para cortejar e servir àquela que até então era uma cidadã de segunda classe e mais uma posse masculina em quase todas as culturas. “Comparada a essa revolução, a Renascença parece uma marola”, escreveu o já citado C.S. Lewis em The Allegory of Love (A Alegoria do Amor), de 1936, um dos dois estudos clássicos publicados sobre o tema no século XX. O outro é L’Amour et L’Occident (O Amor e o Ocidente), de 1939, do suíço Denis de Rougemont (1906-1985), que desemboca num curioso manifesto sobre a incompatibilidade entre a paixão romântica e o casamento.

Não por acaso, uma das bases do amor cortês é justificar o adultério, tanto em suas leis de conduta quanto em casais arquetípicos como Tristão e Isolda (ele era primo e ela esposa do rei) e Sir Lancelot e Guinnevere (a esposa do rei Artur e seu guerreiro mais valoroso).

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Os historiadores, porém, são os primeiros a alertar que não se deve generalizar o amor cortês. Havia de tudo ali, desde versos apaixonados e debates sobre etiqueta social, até textos que parecem uma versão ocidental do Kama Sutra – como o trecho do famoso poema francês do século XIII Romance da Rosa que ensina a importância de os amantes atingirem o orgasmo em conjunto: “Quando fizerem amor, cada um deve usar toda habilidade para que o prazer seja mútuo e que nenhum dos dois pare de navegar enquanto não chegarem juntos ao porto”.

O fervor amoroso dos trovadores medievais alçou o amor a um patamar de emoção cultuada, prenunciando a adoração casta de poetas renascentistas como os italianos Dante Alighieri e Petrarca às suas musas Beatriz e Laura. O mesmo culto antecipou o romantismo do século XIX, que venerava a agonia do apaixonado acima de qualquer prazer. O significado original de paixão, aliás, é exatamente esse: a conexão inevitável entre o amor e o sofrimento. “Passio é outra palavra latina, que significa sofrer por amor. Isso está até no latim eclesiástico: a expressão Sexta-Feira da Paixão endossa que Jesus morreu por amor à humanidade”, diz Deonísio da Silva.

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Também foram os velhos trovadores medievais que espalharam as sementes da visão trágica e fatalista do amor impossível, que une Tristão e Isolda a Romeu e Julieta a Werther, romance do alemão Goethe (1749-1832) que provocou uma epidemia de suicídios na Europa do século XIX. Mas quem melhor define esse movimento literário é uma simples frase do francês Stendhal (1783-1842), em seu tratado Do Amor, autobiografia de uma paixão não correspondida: “Possuir é nada, desejar é tudo”. Aí está, resumida em uma cápsula, uma idéia central entre os artistas da época: o sofrimento intenso é sinal de uma alma sensível e o gozo, apenas frivolidade medíocre.

Existe um outro laço entre as dores dos escritores românticos e a celebração do adultério pelos trovadores medievais. Só no novo mundo inaugurado pela Revolução Francesa no fim do século XVIII é que as pessoas começaram realmente a poder escolher com quem iriam casar. Toda a história anterior do matrimônio é uma sucessão de alianças políticas e econômicas ditadas pelas famílias dos noivos, que muitas vezes só se conheciam no altar. O culto ao amour fou (amor louco), como os franceses batizaram a paixão incontrolável que derruba todas as barreiras e convenções, sempre foi uma resistência à interferência da sociedade na vida afetiva de cada um.

E o que se tornou o amor hoje? O mais difícil é explicar como o romantismo continua vivo em pleno século XXI, mesmo após todas as investidas científicas – da psicologia à antropologia à bioquímica – dispostas a esfriá-lo, dissecá-lo e decifrar o que existe além da atração sexual e do instinto procriativo. As principais teorias psicológicas são conflitantes: enquanto o complexo de Édipo, de Freud, propõe que a escolha amorosa é determinada já na infância pelos modelos paternos e maternos, Jung acredita que homens e mulheres carregam no inconsciente arquétipos ideais do sexo oposto, animus e anima, sempre buscando uma complementariedade. Pessoas mais racionais se sentiriam, assim, atraídas por parceiros mais sentimentais. Mas pelo menos em um ponto a teoria freudiana lembra a espiritualização do amor encontrada nos ideais platônicos e cristãos: o conceito de sublimação, segundo o qual a libido, energia vital e sexual, é desviada para outras atividades.

“O amor passa a ser dirigido a uma idéia, a uma causa, a uma atividade, em vez de a uma pessoa”, afirma o psicanalista Renato Mezan, professor da PUC-SP. Para Freud, toda a civilização foi construída assim, usando como matéria-prima a repressão dos instintos sexuais. Se o velho doutor vienense, tão criticado por reduzir toda nossa existência ao sexo, tiver mesmo razão, fica mais fácil entender por que é impossível fugir do amor. Ele está em toda parte, seja lá o que for esse sentimento que, no final das contas, tem resistido, século após século, a todas as tentativas de explicação.

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