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Aristóteles – Máquina de pensar

Nada que fosse humano lhe era estranho - nem o que se passava no céu ou na terra. Fundador da ciência, ensinou há 2 300 anos que o conhecimento depende da razão assim como dos sentidos.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h09 - Publicado em 30 nov 1990, 22h00

Luiz Weis

Os fatos (sobre a reprodução das abelhas) ainda não foram suficientemente estabelecidos. Se um dia o forem, o crédito deverá ser dado à observação mais do que às teorias — e às teorias apenas na medida em que tiverem sido confirmadas pelos fatos observados.
Aristóteles, Da geração dos animais

A Terra está imóvel no centro do Universo. O cérebro serve para esfriar o sangue. Casais jovens têm filhos mais fracos. O olho se torna colorido ao enxergar a cor. Os objetos pesados caem mais depressa do que os leves. A mulher é por natureza inferior ao homem. O coração é o órgão da consciência. O autor de tais disparates é considerado o maior pensador que o gênero humano produziu em aproximadamente 2000 anos, se não em todos os tempos — e nessa avaliação não há nenhum disparate. Pois, apesar dos enormes enganos que propagou, ninguém como o filósofo grego Aristóteles pesquisou, refletiu, organizou o conhecimento e escreveu sobre tantos e tão diversos assuntos deste mundo.

A sua obra, um formidável empreendimento intelectual que se esparramou por quatro centenas de pergaminhos, é invariavelmente comparada a uma enciclopédia, a Britânica do século IV antes de Cristo. Nela, de fato, com esses ou outros nomes, se fala de Astronomia a Zoologia, passando por Biologia, Ética, Física, Lógica, Metafísica, Política e Teologia. Em suma, a vida e suas implicações devidamente catalogadas. Ainda assim, Aristóteles talvez valha menos pelo muito que pensou do que pelo modo com que pensou: ao ensinar, já então, que a verdade última de uma teoria deve ser buscada, não em pressupostos arbitrários, mas na observação dos fatos de que ela trata, e ao praticar diligentemente o que pregava, tornou-se para todos os efeitos o fundador de uma atividade que marcaria fundo o destino do homem — a ciência.

Cientista revolucionário na atitude e arcaico pela pobreza das ferramentas de trabalho ao dispor de seu tempo, astrônomo sem luneta, biólogo sem microscópio, Aristóteles escreveu elegantes tolices sobre corpos celestes e terrestres em meio a engenhosas concepções a respeito da natureza das coisas (physis, como dizia). Procurou desatar o nó em que se enredara a Filosofia ao encarar o enigma da transformação da matéria com uma requintada teoria sobre o sentido e as causas do movimento. Percebeu, com extraordinária sagacidade, que nos seres vivos os traços comuns a um gênero precedem as características próprias de uma espécie; preso na camisa-de-força de sua rígida classificação hierárquica das formas vivas, por um triz não atinou com a evolução. Foi o primeiro a distinguir os fenômenos puramente físicos que causam a sensação da experiência propriamente dita da sensação; não separá-los, argumentava, equivaleria a acreditar que os espelhos enxergam.

Libertou o estudo da Ética do abraço estéril das abstrações místicas para ancorá-lo nas realidades do cotidiano, a começar dos fatos que dizem respeito à vida em comunidade (polis). Nesse sentido, ensinou para todo o sempre, o homem é zoon polytikon, animal político. Não obstante racista, conservador e escravocrata, o rol de temas sociais sobre os quais se manifestou com espírito afiado continua ainda hoje a confrontar as ciências humanas. Dos conceitos que utilizou para explicar o mundo — como gênero e espécie, forma e matéria, substância e organismo, causa e finalidade— formou-se o vocabulário científico que ajudaria a encaminhar gerações de pesquisadores no rumo seguro da descoberta e da invenção. As regras que governam o raciocínio também foram originalmente codificadas por ele, tanto para policiar o trabalho da mente, na paz da meditação filosófica, quanto para desmontar a lábia dos demagogos, na agitação da Assembléia ateniense.

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Não por acaso: as preocupações de Aristóteles, como as de seu mestre Platão, embora tivessem a cabeça nas nuvens das eternas indagações sobre a origem das coisas e a natureza dos seres, fincavam os pés no chão próximo das questões relativas aos caprichos da conduta humana, às leis e às formas mais adequadas de governo — e essa dupla militância tem a cara do lugar e da época em que viviam. A interrogação primeira era antiga. Desde o século VI a.C., com efeito, os gregos jônios se destacavam ao buscar uma explicação natural para o Universo. Filósofos como Tales de Mileto, Anaximandro, Anaximenes, Anaxágoras, Heráclito, Parmênides, Empédocles, Demócrito — os chamados pré-socráticos — entraram para a História por terem tentado dizer, sem recorrer à religião, o que é e como funciona o mundo.

Mas, com a ascensão e posterior crise das cidades-estados autônomas, como Atenas, Esparta, Tebas, os homens de pensamento foram inevitavelmente atraídos também pelos problemas que iriam compor o repertório de uma ciência voltada exclusivamente para a política. O tempo de Aristóteles é o do entardecer das cidades-estados gregas em geral e de Atenas em particular. Quando ele nasceu, no verão de 384 a.C., vinte anos tinham se passado desde o fim da Guerra do Peloponeso, em que, após três décadas de desgraças, Esparta finalmente, firmou sua hegemonia sobre Atenas, sinalizando o inimigo da lenta decadência daquela que um século antes tinha alcançado o apogeu nas leis, nas artes e na cultura entre todas as sociedades da Antiguidade.

Mesmo depois da derrota, porém, não havia na Grécia inteira cidade que se lhe comparasse e que tanto fascínio pudesse exercer sobre um jovem de boa cabeça e boa família — como era o caso de Aristóteles. De origem jônica, sua terra natal era Estagira, pequena colônia helênica na Península Calcifica, na costa setentrional do Mar Egeu, região dominada pelos macedônios, cerca de 320 quilômetros ao norte de Atenas. Criou-se em Pela, capital da Macedônia, onde seu pai, Nicômaco, era médico do rei Amintas III, que viria a ser pai de Filipe II e avô de Alexandre, o Grande. Ocupação tradicional em certas famílias, a Medicina passava de geração em geração pelo aprendizado prático. Supõe-se, portanto, que Aristóteles aprendeu ao menos os rudimentos da atividade médica — e esse teria sido o germe de seu gosto pela Biologia.

Por volta dos 17 anos, depois da morte do pai, o tutor Proxeno fez a coisa certa —mandou-o estudar na melhor escola da melhor cidade grega, a Academia de Atenas. Fundada por Platão três anos antes do nascimento de Aristóteles, a Academia tanta importância dava às matemáticas que desaconselhava o ingresso nela “de quem não soubesse Geometria”. É duvidoso que o jovem de Estagira tivesse maior intimidade com o mundo dos teoremas, como é certo que o futuro cientista jamais demonstraria especial apreço pelos números. De todo modo, quando se matriculou na instituição, Platão estava em Siracusa, na Sicília, tentando incutir no tirano local, Dionisio II, os ensinamentos capazes de transformá-lo em algo parecido ao ideal platônico do rei-filósofo.

Só cerca de um ano depois, o grande pensador e o estudante promissor foram apresentados um ao outro. Começou aí uma bela amizade, um convívio duradouro e uma ligação intelectual tão intrincada, no que teve de convergências e divergências, a ponto de se tornar um perene motivo de pesquisas e polêmicas entre os historiadores da Filosofia. Montanhas de teses já foram escritas sobre o indomável mistério da proporção exata de platonismo e de antiplatonismo na química das idéias aristotélicas, até porque menos de um terço dos trabalhos específicos de Aristóteles sobreviveram até os tempos atuais. Para alguns investigadores, Aristóteles operou um rompimento revolucionário com as rarefeitas abstrações do mestre — e a ciência só teria a lhe agradecer por isso. Para outros, ele não passa de um Platão diluído pelo senso comum. Para outros ainda, talvez mais imaginosos, Aristóteles foi platônico de cabo a rabo; antiplatônico mesmo teria sido seu sucessor Teofrasto, o verdadeiro autor da maioria dos tratados atribuídos a Aristóteles.

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Platão dizia que o mundo que o homem percebe, caótico e mutável, é apenas uma sombra deformada do perfeito e inabalável Mundo das Idéias — e este é o único que interessa conhecer. Daí a importância da Matemática, toda ela uma coreografia mental de conceitos puros, como os números e as formas geométricas. Aristóteles, embora concordasse que o objeto último do saber é a essência das coisas, sustentava que o mundo aparente era plenamente real — e estava ao alcance da razão humana. Daí a importância da observação empírica das manifestações da natureza.

Platão, de outro lado, acreditava na existência da alma imortal. Aristóteles também acreditava na alma, porém como parte do corpo, que morre com ele. Na sociedade ideal de Platão não havia lugar nem para a família nem para a propriedade privada. Na sociedade desejada por Aristóteles, uma e outra eram indispensáveis.

É indiscutível que o professor Platão tinha na mais alta conta seu aluno do norte, a quem chamava “o leitor”, pelo entusiasmo com que se dava aos textos e pelo prazer em colecioná-los, e “a mente”, pelo vigor de seu intelecto. “Minha Academia compõe-se de duas partes: o corpo dos estudantes e o cérebro de Aristóteles”, deslumbrava-se o dono da escola. A maioria dos historiadores afirma que ele permaneceu ali até a morte de Platão, em 348 ou 347 a.C., passados vinte anos de sua chegada a Atenas. Segundo outra versão Aristóteles deixara a Academia bem antes, por conta das discordâncias entre eles. Ressentido, o mestre teria feito então um pesado desabafo: “Aristóteles me despreza como o potro que escoiceia a mãe que o deu à luz”.

O sucessor de Platão no comando da instituição foi seu sobrinho Espeusipo. Junto com os amigos e colegas Teofrasto e Xenócrates, Aristóteles deixou Atenas — e só voltaria dali a doze anos. Diz-se que a nomeação de Espeusipo frustrara Aristóteles. Na verdade, na condição de meteco, isto é, não-ateniense, pelas leis da cidade ele não poderia ser dono de escola (ou de coisa alguma). Ademais, simpatizantes de macedônios, como Aristóteles, haviam se tornado malvistos em Atenas em seguida ao recente saque da cidade estado de Olinto, ordenado por Filipe II. Aristóteles foi morar em Assos, recém-construída cidade litorânea da Ásia Menor (hoje Turquia), a leste da Ilha de Lesbos, no Mar Egeu.

Hérmias de Atarneu, um antigo escravo transformado em aventureiro, havia tomado o poder na região, governando um pequeno estado vassalo do Império Persa. Ex-integrante da Academia, queria propagar a cultura e a filosofia helênicas em terras asiáticas e para isso convidou Aristóteles e o platônico radical Xenócrates. Lecionando em Assos, ali também se casou, aos 37 anos, com Pítias, não se sabe se filha adotiva ou sobrinha de Hérmias. Não seria de admirar se Pítias tivesse 18 anos. Afinal, na Política, o filósofo escreveria que a época ideal para o homem casar-se era aos 37 e, para a mulher, aos 18. Foi, porém, um casamento breve, pois a mulher morreu ainda jovem, depois de lhe dar uma filha, batizada com o nome da mãe. Ele se casaria pela segunda vez com uma certa Hérpilis, com quem teve um filho, ao qual deu o nome do avô paterno, Nicômaco. Hérpilis sobreviveu a Aristóteles e dele recebeu uma polpuda herança, “em reconhecimento à constante afeição que ela me demonstrou”, como justificou em seu testamento.

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Os traços de Aristóteles nos bustos que dele existem são os de um homem bonito, de feições refinadas. Consta, no entanto, que ele tinha olhos miúdos, pernas finas como varetas e ainda por cima ciciava ao falar. Talvez para compensar, vestia-se muito bem, com túnicas e sandálias da melhor qualidade, e gostava de usar anéis. Segundo um relato, costumava aplicar compressas de óleo quente no estômago para acalmar uma dor crônica. A pacata vida em Assos foi bruscamente interrompida em 344, quando Hérmias foi aprisionado e condenado à morte pelos persas, sob a acusação de conspirar com a Macedônia contra o Grande Rei Artaxerxes. Aristóteles compôs um hino arrebatado em seu louvor, o que muito tempo depois lhe traria graves dissabores.

Prudentemente, mudou-se para Mitilene, capital de Lesbos, onde vivia seu amigo Teofrasto. Quem ganhou com isso foi a ciência. Pois ali ele se dedicou às pesquisas biológicas, estudando meticulosamente a anatomia e o comportamento de numerosas espécies marinhas. Certos órgãos do ouriço do-mar, a propósito, ficaram conhecidos como “lanternas de Aristóteles”, devido à cuidadosa descrição que fez deles. Isso indica que suas pesquisas incluíam a prática da dissecação. Foi ainda o pioneiro da Embriologia, ao observar e analisar as transformações em embriões de pintos. No fim de 343 ou no início de 342 a.C., na casa dos 42 anos, reconhecido como a maior figura intelectual da Grécia, voltou a Pela, a capital da Macedônia, para atender a um convite do rei Filipe II, ser tutor de seu filho adolescente Alexandre, destinado pelo pai a liderar o já unificado mundo grego contra o Império Persa.

Como preceptor de um príncipe, Aristóteles exercia uma atividade que Platão, coerente com a sua utopia do rei- filósofo, teria sabido apreciar. Mas o que devia tornar o emprego atraente para Aristóteles estava na oportunidade de transmitir a um monarca macedônio, além da cultura grega, a sua apaixonada convicção da superioridade da raça helênica sobre todas as demais. Aristóteles acreditava piamente — e convenientemente —que os gregos eram os únicos dotados pela natureza para uma vida elevada, dedicada à arte, às ciências, às leis, à contemplação filosófica, cabendo aos bárbaros, também naturalmente, pegar no pesado como servos ou escravos. A tal ponto ia o racismo de Aristóteles, que ele aconselhava Alexandre a evitar casamentos entre gregos e não-gregos. Os historiadores, contudo, tendem a duvidar que o filósofo tenha tido alguma influência digna do nome sobre o futuro conquistador do mundo — que, por sinal, casou-se com uma nobre persa.

Em 338 a.C., os macedônios derrotam os atenienses na Batalha de Queronéia, encerrando o extraordinário período da Grécia Antiga caracterizado pelas cidades-estados independentes e inaugurando a era imperial. Mais de um historiador já chamou a atenção para o fato de que o foco do pensamento político de Aristóteles nunca deixou de ser a cidade-estado, mesmo quando até as pedras da Acrópole sabiam que a instituição estava à beira do aniquilamento. Ele deixou Pela em 336 a.C.,. ano em que Filipe II morreu assassinado e Alexandre subiu ao trono. A julgar pelo que se conhece de seus escritos, o filósofo não parece ter-se dado conta em momento algum das colossais mudanças políticas desencadeadas pelos feitos do imperador macedônio.

Depois de uma temporada de recolhimento na propriedade paterna em Estagira, Aristóteles voltou enfim a Atenas. Tinha quase 50 anos; os doze seguintes seriam os mais fecundos de sua vida intelectual. Homem de posses, tomou a decisão de abrir uma escola rival da Academia, então dirigida pelo velho amigo Xenócrates. Surgiu desse modo o Liceu, assim chamado por localizar-se numa edificação vizinha ao templo de Apolo Liceano, num bosque próximo à cidade, mencionado por Platão como um dos lugares preferidos por Sócrates para suas reflexões. Na melhor tradição socrática, o método de ensino no Liceu era o do diálogo dialético lético em vez do monólogo da aula magisterial. Havia um pátio coberto, operipatos (passeio, em grego), por onde mestres e discípulos caminhavam entretidos em altas indagações. Daí o nome, peripatética, pela qual a escola se tornou conhecida.

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Aristóteles organizou o Liceu como um centro de pesquisa e de elaboração teórica nas mais diversas áreas do conhecimento — mas sempre com ênfase na Biologia e nas ciências naturais. Do velho hábito dos tempos da Academia, colecionar manuscritos, organizou uma biblioteca, talvez a primeira da História, onde ficavam também todos os materiais necessários à pesquisa, além dos espécimes animais e vegetais estudados. Era um ambiente muito mais parecido com um estabelecimento científico moderno do que com um templo dedicado à Filosofia pura. Autor prolífico, Aristóteles escrevia tanto para o consumo interno dos liceanos como para o consumo externo do grande público —e sabia ajustar o estilo ao leitor. Do conjunto de sua obra referida na Antiguidade (mais de 170 trabalhos independentes), apenas 47 alcançaram o homem moderno. Em 1831, foram editados em Berlim, no original grego, ocupando dois volumes.

Sistematizador e meticuloso como nenhum outro pensador antes dele e como poucos depois, redigia à maneira de “um professor profissional, não um profeta inspirado”, na sugestiva comparação do filósofo e matemático inglês Bertrand Russell (1872-1970). Ainda bem, talvez fosse o caso de dizer, porque seu cuidado em começar a análise de qualquer assunto pela exposição das idéias manifestadas a respeito pelos antecessores fez dele o primeiro historiador da Filosofia, graças a quem foi possível conhecer como os pioneiros do pensamento racional — os pré- socráticos — concebiam a matéria, o movimento e o Universo. Em seguida, ele expunha sucessivamente os próprios pontos de vista preliminares sobre o assunto, os argumentos e objeções de terceiros, as conclusões finais a que chegava e as dúvidas que eventualmente permaneciam. O conjunto, embora uma chatice como leitura, tem a rara virtude de mostrar ao vivo um filósofo filosofando.

No verão de 323 a.C., atônita e perplexa, Atenas recebeu a incrível notícia da morte de Alexandre, o Grande, aos 33 anos. Passado o pasmo, seguiu-se uma onda antimacedônica que acabaria por atingir Aristóteles em cheio. Querendo punir o antigo preceptor de Alexandre por suas ligações presentes com o governador macedônico local, Antípater, assacaram contra ele a temível acusação de impiedade (ofensa aos deuses), a mesma que levara Sócrates à morte 76 anos antes. O pretexto não podia ser mais exótico — o poema com que, duas décadas atrás, Aristóteles havia praticamente deificado a memória do amigo Hérmias, o rei de Assos executado pelos persas. Para salvar a pele, aceitou exilar-se voluntariamente em Calcis, na Península de Eubéia, cerca de 60 quilômetros ao norte de Atenas, dizendo que assim poupava os atenienses de cometer “um segundo crime contra a Filosofia”. Ali morreu em 322 a.C., aos 62 ou 63 anos, vítima talvez da doença do estômago que o teria acompanhado pela vida afora. O Liceu sobreviveu a Aristóteles mais de 250 anos. O trabalho de seu fundador, passados dois milênios, continua vivo.

Encyclopaedia Aristotelica
Lições de um filósofo sobre o mundo, a mente, a matéria, a vida e o homem

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LÓGICA

A Constituição do raciocínio

Para usar uma palavra que Aristóteles apreciava, a “substância” do método de filosofar e fazer ciência era, a seu ver, a Lógica — ou, como preferia dizer, a analytika (que designava originalmente a atividade de desenrolar e acabou gerando analisar e análise). Ferramenta para o conhecimento, não um conhecimento em si, ela estabelece as leis do raciocínio, a maneira certa pela qual a razão deve operar, pouco importando se o raciocínio tem ou não fundamento na realidade. Por isso, veio a chamar-se Lógica Formal. Para muitos estudiosos, representa a jóia da coroa do currículo de Aristóteles. Dela também se disse não haver nada tão enfadonho nem tão importante. Seu mecanismo básico é a dedução, de acordo com a teoria aristotélica do conhecimento, que vai do geral ao particular. Como no exemplo clássico: todos os homens são mortais; se Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal.

O raciocínio em si continuaria correto mesmo que na vida real só alguns homens fossem mortais ou mesmo que todos fossem imortais. O silogismo, como se chamam as conexões entre o ponto de partida e a conclusão, separa aquilo que precisa ser provado em qualquer argumento — no caso, a premissa de que todos os homens são mortais — e aquilo que é apenas decorrência: Sócrates é mortal. A Lógica de Aristóteles dominou o pensamento ocidental durante quase 2 000 anos, até que a indução, o percurso do particular para o geral, se tornasse o alicerce do método científico. Mais recentemente, no começo do século, apareceu a Lógica Simbólica, de base matemática.

METAFÍSICA

Um Deus que é puro pensamento

A obra filosófica por excelência de Aristóteles é a Metafísica — e este nome, com seu ar de inútil divagação estratosférica, que ele mesmo nunca utilizou, é responsável por uma das maiores confusões sobre o que é a Filosofia em geral e a de Aristóteles em particular. Tudo porque, ao fazer a primeira e cuidadosa edição completa dos textos do filósofo, dois séculos depois de sua morte, Andrônico de Rodes agrupou os escritos relativos aos princípios gerais dos seres sob a rubrica Metafísica, querendo com isso simplesmente situá-los no lugar adequado entre os trabalhos do mestre— ou, em bom grego, meta tà physiká, depois dos tratados da Física.

Construtor de um pensamento que ambicionava ser puramente racional e não se envergonhava de comerciar com a realidade percebida pelos sentidos, Aristóteles desenvolve em sua Metafísica uma teoria que passa longe da religião. Quando diz, por exemplo, que a forma é a substância (essência) da matéria e que a alma é a forma do corpo, ou seja, aquilo que lhe dá unidade e sentido, não está sendo “metafísico”. Biólogo acima de tudo, Aristóteles sustentava inovadoramente que só é possível compreender a alma unida ao corpo mediante o qual ela se manifesta, assim como só é possível compreender a visão levando em conta o olho, sem o qual ela não funcionaria.

As transformações por que passam as coisas consistem na passagem da potência ao ato — o movimento rumo à realização mais plena possível (ato) dos atributos próprios de cada ser (potência), da mesma maneira como a árvore que resulta de sua semente. O movimento tem quatro tipos de causas: causa material, causa formal, causa eficiente e causa final. Numa estátua, a causa material é o mármore; a causa formal, a essência da estátua a ser esculpida; a causa eficiente é o artista com seu cinzel; e a causa final, como a palavra indica, a finalidade da estátua. Deus, pensamento puro, eterno, ato plenamente realizado, só toma conhecimento de si próprio. Ainda assim, é a causa final de todo movimento, pois tudo aspira à plena atualização das potencialidades, o que vem a ser a perfeição. “Deus”, comparou o filósofo numa frase que se tornaria clássica, “move como o objeto do desejo.”

ASTRONOMIA

A hierarquia das eternas esferas

Com toda a certeza, o mais prejudicial dos erros que Aristóteles cometeu está na sua idéia do Universo como uma coleção hierarquicamente organizada de esferas concêntricas em volta de uma Terra em esplêndido repouso no centro de tudo. Adotada como dogma pela Igreja depois que São Tomás de Aquino cristianizou o aristotelismo, no século XIII, a concepção geocêntrica do Cosmo virtualmente imobilizou a Astronomia até que, quase 300 anos depois, o polonês Nicolau Copérnico afirmasse que a Terra gira em torno do Sol e que o alemão Johannes Kepler demonstrasse que os planetas descrevem órbitas elípticas.

As esferas de Aristóteles conteriam de fora para dentro, sucessivamente, as estrelas fixas, os planetas Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno, o Sol e a Lua. Elas teriam uma substância puríssima, invisível, eterna e inalterável, a quintessência, assim chamada para distingui-la das quatro essências que, segundo Empédocles (492-432 a.C.) formariam o mundo — a terra, a água, o ar e o fogo —, todas sujeitas a decadência e renovação. Aristóteles assegurava que cada esfera gira ao redor de um eixo e arrasta consigo as respectivas estrelas e planetas, em um movimento impecavelmente circular, o supra-sumo da perfeição. Essa fantasmagoria atravessou os tempos, iludindo até luminares do porte de Copérnico, que acreditava na perfeição dos movimentos circulares.

BIOLOGIA

Uma escala para os seres vivos

No mundo extremamente ordenado de Aristóteles, cada coisa ocupa o seu lugar. Entre os seres vivos, quanto mais complexo um organismo, mais alta a sua posição na escala: as plantas ficam abaixo dos animais irracionais e estes, abaixo do homem. Naturalista de mão-cheia, ele descreveu leões e elefantes, acabando com a lenda de que os paquidermes só dormiam encostados em árvores. Estudou minuciosamente o mundo das abelhas, embora não se tivesse dado conta de que a colméia é governada por uma rainha, investigou como os insetos se acasalam e como os pássaros fazem os ninhos, deu nome e pôs em ordem hierárquica meio milhar de espécies. Herdeiro da preocupação socrática com as definições, classificou as formas de vida segundo a combinação de dois critérios, o geral (gênero) e o específico (espécie). Assim, pôde definir o homem como animal (gênero) racional (característica específica). Foi o primeiro a afirmar que quanto mais complexa for uma espécie, menos numerosa será a sua descendência a cada nascimento.

ÉTICA

No meio-termo, a excelência

Aristóteles manifesta um agudo senso prático quando trata da Moral. Não é seu alvo “que saibamos o que é a virtude, mas que possamos ser virtuosos”, escreveu na Ética a Nicômaco. Virtude, para ele, quer dizer essencialmente areté, excelência, a realização melhor possível das potencialidades humanas. “As virtudes formam-se com a prática dos atos”, ensinava. “O homem não faz o bem porque é bom, mas é bom porque faz o bem ” Somos potencialmente bons e maus e temos a faculdade de escolher racionalmente o que desejamos ser. Aqui entra em cena a teoria aristotélica do meio-termo, herdeira da idéia de equilíbrio que marcou por inteiro a cultura grega. Toda virtude, acreditava o filósofo, é o justo meio-termo entre dois defeitos. Assim, a coragem fica entre a covardia e a temeridade; entre a prodigalidade e a mesquinharia, fica a generosidade; e assim por diante.

O meio-termo varia de uma pessoa a outra, conforme a natureza de cada qual e as circunstâncias. Os homens de Aristóteles não nascem livres e iguais em direitos — porém segundo uma hierarquia que horroriza o ideal democrático. “É naturalmente escravo quem tem tão pouca alma e tão poucos meios que deve depender de outrem”, sentenciava. “E a mulher é para o homem o que o servo é para o amo.”

O homem superior de Aristóteles é bom no mais elevado grau, consciente de seu valor, incapaz de um ato vergonhoso, distribui favores mas se peja de recebê- los, altivo diante dos poderosos, modesto diante dos outros, caminha devagar, fala com voz grave. Ou seja, uma miragem. A prática da excelência faz a felicidade e a felicidade plena é a Filosofia — o exercício contemplativo da razão. “A atividade da mente é vida”, regozija-se Aristóteles. Como notou Bertrand Russell, “os sofrimentos da humanidade não o comovem; há na Ética uma pobreza emocional que não se encontra nos filósofos antigos”.

POLÍTICA

Estado, família e propriedade

O pensamento político de Aristóteles é parente próximo da Ética. Ela mesma se subordina à política, pois não há vida humana fora da polis, a comunidade. “Na ordem da natureza, o Estado se coloca antes da família e antes de cada indivíduo, pois o todo deve forçosamente ser colocado antes das partes”, argumentava. “Aquele que não pode viver em sociedade, ou que de nada precisa para bastar- se a si próprio, não faz parte do Estado; ou é um bruto ou um deus.” A filosofia política de Aristóteles nasceu e viveu em função da cidade-estado onde o governo e a elaboração das leis requeriam a participação ativa dos cidadãos—excluídos os menores de 35 anos, os estrangeiros e seus descendentes diretos, as mulheres e os escravos. Ao contrário da utópica República de Platão, a Politéia, a igualmente imaginária cidade feliz de Aristóteles, valoriza a família e a propriedade privada, embora o excesso de riqueza seja tido como tão indesejável quanto o de pobreza.

A monarquia (o governo de um só), a aristocracia (o governo de poucos) e a democracia (o governo de muitos) têm todas suas vantagens e desvantagens, arroladas pelo sempre sistemático pensador — e os argumentos que enlaçam esse debate permanecem firmes ainda hoje. Aristóteles, que comparou as constituições das cidades-estados gregas, não escondia suas simpatias pelo governo aristocrático dos mais esclarecidos e mais capazes. Francamente conservador, ele advertia: “O hábito de mudar facilmente as leis é um mal. O cidadão ganhará menos com a mudança do que perderá adquirindo o hábito da insubordinação”. E finalmente: “Os homens são induzidos a crer que existe algum modo miraculoso de todos se tornarem mutuamente amigos, sobretudo após a enumeração dos males que dizem ser causados pela propriedade particular. Estes males, porém, derivam de outra fonte — a natureza humana”.

Atual, ainda

— Temos de expulsar Aristóteles de nós.
—Mas eu nem sequer o li, por que razão tenho de expulsá-lo de mim?
—A prova de seu domínio sobre o homem ocidental é que ele domina o pensamento de gente que nunca ouviu falar a seu respeito.
Do romance Reuben, Reuben (1964), do escritor americano Peter de Vries

Poucos filósofos terão recebido tantos elogios e críticas como Aristóteles. Para os medievais dos séculos XIII e XIV ele era O Filósofo por excelência; para os pais da ciência moderna, do século XVII, o culpado de cerca de 2 000 anos de atraso científico. Às vezes, o mesmo autor concede um elogio com uma das mãos e o retira com a outra. O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), que lhe tributa o louvor, um pouco exagerado, de ter feito em matéria de lógica tudo que se podia e devia fazer, considera que sua lista de categorias era um tanto desconchavada. Mereceu o respeito explícito de Charles Darwin como biólogo e de Karl Marx como teórico da Economia. Muitas vezes, depois dos xingamentos de praxe, foi repetido ou reinventado. Veja-se o artigo primeiro de As paixões da alma, de 1649, do francês René Descartes .

Na atualidade assistimos a um impressionante retorno de Aristóteles à cena filosófica, por diversos caminhos. Consideremos apenas o que diz respeito à “lógica da ação”. Aqui mesmo no Brasil, um livro recente, Escritos de Filosofia II – Ética e cultura, publicado em 1988 por Henrique Cláudio de Lima Vaz, ex-professor de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, relembrou de maneira inequívoca a importância de Aristóteles neste domínio, central sem dúvida numa época tão desorientada como a nossa. De fato, o autor argumenta que podemos encontrar em Aristóteles, não soluções prontas, mas princípios válidos para equacionar as perplexidades éticas que pairam no nosso horizonte. Até pelo motivo de que, não fazendo ele apelo a nenhum critério religioso, se torna mais acessível ao mundo atual.

Aristóteles coloca no centro de sua ética e de sua política o conceito de excelência e vincula estreitamente os dois domínios: sua ética é a do cidadão, o habitante da polis. Nesta perspectiva, podemos construir uma lógica da ação no centro da qual estaria a forma de excelência denominada discernimento, cujo ato próprio é a decisão lúcida. Esta é tanto escolha adequada dos meios quanto concretização do princípio universal do agir humano — a busca da vida mais desejável e satisfatória. Não tendo se deixado levar nem pela sedução de associar a ação política à sabedoria teórica suprema nem pela tentação de fazer da política um ato técnico sem compromissos éticos, Aristóteles habilmente livrou-se de obstáculos constantes da cultura ocidental.

Sempre houve e sempre há alguém pretendendo fazer da política ou ciência rigorosa ou objeto de técnicas manipulatórias. É justamente nesse ponto (se não em outros) que Aristóteles ainda pode ser O Filósofo. Pois um dos nossos dramas é compreender que a conduta humana pode ser racional. Uma racionalidade original que supõe a memória da experiência passada, a compreensão da situação presente e a previsão do futuro. Ainda tem sentido ler o velho grego.

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